A Última Fronteira - Imperialismo, Ariano Suassuna, Hegel e Buracos Negros
Enquanto
na Ucrânia separatistas pró-Russia bombardeiam um avião e matam centenas de
civis, e em Gaza, Israel extermina centenas de mulheres e crianças tentando
acabar com os bombardeios do Hamas contra seu território e seus cidadãos, a
guerra na Síria já não recebe tanta atenção e o avanço do grupo islâmico
sunita Isis perdeu espaço, momentaneamente, nos
noticiários mundiais. mas isso é temporário. tudo é temporário. é só esperar que
outras guerras - as de sempre! - ressurgirão ocupando as horas dos noticiários
televisivos e as telas do ciberespaço de nossas casas, nossos trabalhos, cafés e
lanchonetes, onde, presumivelmente, deveríamos estar repousando, criando ou
relaxando?! o conceito de "imperialismo" encontrei há muitos anos atrás, após
terminar a faculdade, na obra de Lenine, Imperialismo Fase Superior do
Capitalismo. nada mudou, o que está aí "animando" nosso espaço e tempo de
vida com tais shows ao vivo - teatro de horrores como reality show -, são as mesmas
guerras, os mesmo genocídios, os mesmo holocaustos, apenas vistos em tempo real
em nossas salas enquanto sentados confortavelmente comemos um sanduíche McDonald
com Coca-Cola zero (de preferência, com limão e gelo!).
No
ciberespaço basta uma tela - de qualquer tamanho! - para não estarmos mais sozinhos e não existirmos fora
desses acontecimentos. não é por acaso que o personagem central de Teorema Zero (filme de Terry Gilliam)
insiste em ficar em casa (uma catedral renascentista!, rodeado de pinturas e
imagens de santos) e referir-se à sua pessoa sempre no plural - "nós". assim,
ele diz, "nós" somos "nós mesmos". depois afirma: "Nós estarmos sozinhos não
significa sermos solitários". a solidão pode ser uma benção, o que fica claro
quando a cena inicial nos mostra o personagem nu diante de uma tela 50' que
mostra um buraco negro em atividade no meio das estrelas do universo, e logo em
seguida ele se vê obrigado a sair do silêncio da catedral para o o ensurdecedor
barulho da rua, onde painéis enormes estão por todo os lados nas fachadas, nas
paredes, nos edifícios, nos postes, nos shoppings, nos restaurantes, nos
escritórios, nas praças, nos transportes, nos carros, por todo o lugar,
anunciando produtos e serviços cibernéticos, realidades virtuais, outros mundos
no ciberespaço, um mundo de trabalhos sem sentido e de fugas piores ainda. um
turbilhão de coisas e de seres sem sentido, mas que também não procuram mais o "sentido", o "sentir". para captar o "sentido" deve-se "sentir"!
Não
por acaso que Qohen Leth, o personagem, refugia-se em sua catedral silenciosa,
imaginando que não está sendo observado (infelizmente está!), que ali ele não é
mais uma "ferramenta" (mas é!), no meio dos santos e dos crucifixos, e ao mesmo tempo
relaxa admirando as forças insondáveis, enigmáticas e indecifráveis do universo.
aliás, este é o grande paradoxo do filme: com tanta tecnologia e sistemas
cibernéticos e informáticos, a máxima inteligência artificial nos paroxismos de
processamento digital ainda não consegue decifrar "o sentido da vida", porque na
"singularidade" de um buraco negro, momento anterior à eclosão de um novo Big Bang, surgimento do universo e de
tudo nele, não existe nada e, portanto, não é possível entender, menos
determinar, como "do nada tudo pode surgir". eis que o acaso não é compatível
com qualquer sentido - só com o "sentir"! -, e do nada não pode surgir algo. este é o teorema zero, o
zero não é zero! a vida não tem "um" sentido, porque o sentido da vida é o
construir do sentido a cada instante! o sentido da vida não é o nonsense, mas o nonsense reconstruído sempre! em
termos de sistemas, o sentido de um sistema é deliberadamente reinventado e
recriado a cada novo elemento atribuído, incorporado ou "nascido" dentro do
próprio sistema, aleatoriamente, o que se convencionou chamar de "teoria do
caos". José Saramago - O Homem
Duplicado - diz que "o caos é
apenas uma ordem ainda não totalmente decifrada". na verdade, o caos é
indecifrável! a vida assim o é!
O
curioso é que mais de 100 anos antes de Einstein, da Física Quântica [CORIFEU Nº. 03] e da Teoria
do Caos, na passagem do século XVIII para o século XIX, um filósofo pensou sobre
esta mesma indefinição do sentido absoluto da vida, negando o formalismo
conceitual e a previsibilidade das coisas e fenômenos. Logo afirmava o "sentir"! Esse autor foi Hegel, e
seu Idealismo Dialético apregoava a conformidade em movimento e o processo
existencial como desenvolvimento do espírito humano: a oposição entre os Eus ou individualidades aprimora as consciências
ao reconhecer que existem limites para os desejos unilaterais, para o
absolutismo na prática - a menos que seres possam ser lobotomizados! -, e que
conceitos como liberdade, igualdade, justiça, ética, são de fato construídos na
relação prática entre os indivíduos, na práxis. assim, as instituições e as
organizações sociais são indecifráveis a priori, e que mesmo as convenções mais formais,
como a Moral, são "dialogadas" e "negociadas" a cada momento como produto dessa
oposição e complementação de vontades, de quereres, no processo de tomada e
aprimoramento de consciência. convenções neste sentido são apenas construções
linguísticas duais, grupais, necessidade comunicativa antes de qualquer
utilidade pragmática, empírica. não da ordem das coisas, mas da desordem
especulativa dos fenômenos a servir de contato, servir "de" e "à"
aproximação. menos silogismo, mais "lógica relacional"!
Então,
por "acaso", dá-me vontade de ler Ariano Suassuna, pego no livro, uma epopeia
sobre a formação do Brasil a partir do Sertão nordestino - afinal o Brasil tem
sua Odisseia! -, e descubro 1 hora depois que o autor está na UTI por causa de
uma AVC. e, por "acaso", vejo no jornal que vai ter um debate sobre Hegel em uma
livraria aqui em São Paulo. Os livros de Suassuna estiveram em minha biblioteca
por anos e não os li, porque algo neles me pareciam morrentes, mortiços. mas um
final de tarde eles fizeram sentido, do "nada". Hegel não me era tão
compreensível, apesar das muitas tentativas que fiz para ver com profundidade a
essência de seus Fenomenologia do
Espírito e Filosofia do Direito. mas, do "nada"
eu vi aquela chamada em um canto, um recorte de 9cm², dias depois de já ter lido
o jornal. para sentir senti!
Suassuna
"morreu". como eu, tenho a impressão que muitos foram ler Suassuna naquela mesma
tarde, do "nada", por "acaso", quando sofreu o AVC e foi hospitalizado em
Recife. me ocorre agora que a luz, uma vez irradiada, ela se propaga em todos os
sentidos e infinitamente, assim, desde o "início" por todo o cosmos:
como eu, tenho a impressão que muitos foram ler Suassuna naquela mesma tarde, do
"nada", por "acaso". dois dias depois lá fomos "nós" ouvir Hegel!
Conforme publicado em 31 julho, 2014
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