Ensaio sobre a transmutação do homem burguês: o Estado em John Holloway
Toda
a existência humana, por onde quer que se olhe, é um processo histórico
dos fazeres societários. Quanto mais nos aprofundamos nas contradições e a
barbárie do capitalismo, mais nos assalta a certeza que é possível e necessário
construir processos para relações sociais reais não capitalistas. Tratamos aqui
dos processos do poder-fazer-viver que movimentam o homem burguês ao
socialismo. Tudo acontece no envoltório da cooperação dos diversos indivíduos e
como conjunto de suas atividades conjugadas, porque em sua natureza não existe
nenhuma outra forma do homem fazer-se existir.
I
A
alienação é pragmática, o único “real” no modo de produção capitalista é a
alienação. O capitalismo é um mundo de contradições e ficções. Talvez a maior
delas seja a criação do homem burguês, da consciência burguesa. Isto se dá por
dentro da total transformação de dinheiro, como equivalente geral de
mercadorias, em capital, que é tido como riqueza e privilégios muito superiores
dos que o acumulam em função e detrimento dos que produzem.
Outrora a alienação do fazer-humano, que
sempre nos atravessa e leva algo de nós, estagnava ali na coisa; as coisas eram
para serem utilizadas/ consumidas de imediato, coisas úteis tinham apenas valor
originário de uso, aí incluídas peças artísticas para adorno e adereços. Nas
sociedades de mercado as mercadorias não são fabricadas para nosso uso direto,
mas para consumo de um público imensurável desconhecido, e por isso o trabalho
humano é subsumido naquilo que se troca: ninguém está lá, mas de fato todos lá
estão. Ninguém se vê: a relação social e o trabalho que as fabrica, graças à
extrema divisão especializada do trabalho, escondem-se na aparência das trocas realizadas
estranhamente (porque não é voluntário) por um terceiro não fazedor, o capitalista
proprietário dos meios e formas de produção. Eis porque dizemos que existe uma
“reificação” das mercadorias em nosso espírito.
As mercadorias possuem valor de uso,
mas seu valor de troca é abstratamente definido, na média, pelas condições
genéricas do fazer-como, pelas horas de trabalho do fazedor que não
se vê: o valor de troca define o valor mesmo. À parte o valor de uso, o
valor de troca exige um processo de dominação política e jurídica e exploração
econômica de um valor não pago ao trabalhador.
Nas mercadorias que se trocam - o trabalho
humano trocado que não se vê, a alienação mercantil do fazer mercadorias
(imposta) -, os valores de troca existem, assim, reificando as coisas genericamente
tendo por base, em abstrato, este poder-fazer (e seu saber-fazer)[1] no
modelo de controle e gestão para a reprodução do capital: “Nosso poder-fazer se
torna invisível, o poder se converte em um substantivo, sinônimo do poder do poderoso,
o poder do capital, o poder do sistema.”(HOLLOWAY, 2011, p. 159)[2]. Por
isso tudo se pode falar de uma base limitada (CHASIN, 2013)[3].
Daí, que o homem burguês não existe
a não ser como uma ficção para mercado, quer dizer, ora, ele mesmo, uma
mercadoria quando produz mercadorias, ora como realizador do capital,
quando as compra com seu salário e as consome: o sujeito é uma abstração ao
nível de ferramenta útil (enquanto necessária, para, numa ponta, produzir, e em
outra, consumir) genericamente concebida em função da reprodução infinita de
capital, de mercadorias produzidas e consumidas para o capital. A conversão do
fazer-para-mim (valores de uso) é subsumida pela generalidade impessoal e especializada
do fazer-para-mercado (valores de troca): “Nosso poder como verbo, nosso
ser-capaz-de foi transformado em poder substantivo, uma coisa exterior a nós.”
(HOLLOWAY, 2011, p.158).
A produção de mercadorias, pelo uso de
relações contratuais específicas, desiguais e formais de trabalho, é a forma
acabada do sistema mercantil, de trocas, que transforma no processo dinheiro em
capital. A fabricação de mercadorias pressupõe, em seu processo, a exploração
de mais-valor[4]
extraído do trabalho do fazedor. A média de horas/trabalho de todos os
trabalhos especializados gastos na produção de uma mercadoria, genericamente,
é a medida pela qual se define o valor das mercadorias. Tal só pode acontecer como
uma “abstração” ou “ficção” monetária, visto que a produtividade fabril e as
tecnologias de trabalho disponíveis variam de trabalhador para trabalhador, no
tempo e no espaço, mas o capitalista as considera como iguais e constantes. Quando
visa o mercado o sistema visa, antes de tudo, a reprodução infinita de dinheiro
em capital (que vira dinheiro novamente)[5]. E
neste diapasão, se dá ao mesmo tempo a transformação do trabalhador em objeto
ou coisa transacionada para a produção. Mesmo na esfera da circulação/ troca de
mercadorias os sujeitos são “peças” úteis enquanto consumidores, manipulados
pelos mecanismos de propaganda e crédito: “Vender-lhe-íamos tudo quanto você
necessitasse se não preferíssemos que você precisasse do que temos para
vender-lhe” (SARAMAGO, p. 282)[6]. Logo,
não será no sistema mercantilista-financista, não será no capitalismo que o
Homem poderá ser encontrado. A questão é saber se ele pode se refazer
dada outra realidade de organização social: desta forma se pode falar de uma
liberdade limitada (CHASIN, 2013).
II
Existe
aqui uma exterioridade por todos os lugares, um poder que embora se constitua a
partir de nós, de nosso fazer, é imediatamente transformado em poder do
capitalista sobre nós, sobre nosso fazer, e passa a constituir uma rede
complexa de obrigações, compulsões e realizações. “A exteriorização repetida e
múltipla de nosso poder – e por tanto da metamorfose do poder-fazer em
poder-sobre – cria uma trama complexa de coesão social: as relações sociais
capitalistas.” (HOLLOWAY, 2011, p. 159). Depois de certo tempo esquecemos o que
sabemos, esquecemos de nosso fazer criativo. O poder é materializado no
concreto de nosso fazer, do fazer realmente, ainda que nos apareça em princípio
apenas como poder da narrativa política. Em suma, sentimos esse
despotismo sobre nós, mas não sobre nosso fazer – existe aqui, portanto, uma separação
nefasta entre a política e a economia. Por isso para o socialismo não se trata
apenas de acabar com a propriedade, mas de acabar com a propriedade sobre o
fazer, sobre o como-fazer e o poder-fazer.
O socialismo não pode instituir a
autonomia deste poder-fazer sem questionar o Poder, que se manifesta da
governabilidade à gestão da vida em seu pragmatismo cotidiano, não bastando
para isso a tomada do Estado; a tomada do poder de Estado, mais ou menos
popular e com participação das massas, não garante posterior desfazimento das
velhas formas do fazer, do fim das formas submissas do poder-fazer,
inclusive quanto à gestão criativa autônoma dos saberes. Não se está aqui
a dizer do desnecessário domínio do Poder e do Estado, pelo menos ao tempo da
transição do capitalismo ao socialismo.
Mas que o poder está, e lá permanecerá, na forma concreta de fazer, e,
deste modo, deve-se insistir na retomada do saber-fazer não autocrático
e hierarquizado, do voltar a experimentar criar, fundamentalmente na liberdade
autogestionária organizada na base do poder-fazer contra o poder-sobre
(o fazer).
Também deve-se dar atenção, na base do
mesmo processo, ao fato que nos moldes do capitalismo existe de forma
irrevogável uma “frustração” manifesta ao nível do inconsciente[7], e
que é, ao mesmo tempo, uma contradição entre classes. Primeiro, porque existem de
um lado aqueles que dominam o trabalho abstrato (não criativo, para
mercado)[8]
enquanto um poder-sobre o fazer, por outro lado, dos que estão forçados
a cumprir continuamente esse mesmo trabalho abstrato, porque todo o poder-fazer
depende do comando nas condições históricas materiais (e imateriais)
singulares. Depois, porque existe um circuito infinito de consumo que, deveras,
não pode ser nunca alcançado: a produção incessante de mercadorias, muito delas
supérfluas e danosas ao ambiente, é a forma irrecusável para a reprodução e
acumulação do capital que só existe na medida da exploração do fazer dos trabalhadores.
Para isso, a classe trabalhadora se vê obrigada inexoravelmente a vender
sua força de trabalho, e com isso, seu saber e o poder de fazer, porque está
totalmente destituída de outras formas de sobrevivência. Assim, todos(as)
os(os) assalariados(as) do capital são, por isso, os(as) que estão “melhor
aparelhados” para a constituição de uma consciência que lidere as forças de
mudança substanciais dos modos de organização perversos de nossas sociedades,
e, entretanto, não é tão simples assim quando nos damos conta da importância
dos Modos do Fazer.
III
Pesa
sobre nós quatro modos de submissão de nosso querer-fazer, mesmo
que se considere de posse dos saberes para tal: 1. O nosso querer dominado pela
gestão do capital, sempre voltado à produção de algo como mercadoria passível
de ser realizado no mercado, e com extração de Mais-valor; 2. A sociedade que
nos dita o certo e o errado segundo a lógica de uma hegemonia cultural omnipresente
imoral; trata-se de presentear os indivíduos com conceitos, narrativas e
discursos que os compele à submissão dos costumes por grandes coletivos que
visam a dominação; 3. O dinheiro sem o qual estamos alijados do mercado, quer
dizer, se é nas trocas que encontramos a relação social subsumida pelas
mercadorias, sem ele, estamos fora dessas relações, o que, obviamente, nos
impossibilita a dignidade e a vida; 4. O Estado, tanto do ponto de vista das
políticas públicas, como das proteções de direitos, por um lado, e ainda que
pese por ele a legalidade formal de um sistema dominador de nossas
potencialidade e realizações, exploratório por natureza, de outro. De forma
sucinta, estes são os quatro modos de fetiches que a seu modo nos
enfraquece e labutam contra nós e nossa intenção de mudar o mundo.
Entretanto,
diz Holloway que:
Em cada um destes casos, as gretas, os espaços ou momentos em que rechaçamos
a autoridade externa e afirmamos que “aqui e agora mandamos nós” são
ramificações de lutas ainda limitadas. Nos acercamos ao redor dos limites do
sistema e a ira que é inerente a todo conflito nos impulsiona mais além desses
limites a afirmar uma lógica diferente, uma lógica – ou quiçá uma antilógica –
da autodeterminação. A lógica das demandas cede lugar à simples afirmação de
nosso próprio domínio. (2011, p.26). Trad. Nossa)[9].
Daí, pode-se dizer, devido às
circunstâncias em que se reproduz o capital, que não existe uma separação clara
entre os que possuem uma consciência de classe e os que não a têm. Existe de
fato um espectro variável de consciência onde os agentes acabam por agir
conforme interesses, medindo as consequências/ ressonâncias do fazer como uma
ação planejada, “racional com relação a fins” (WEBER, 1984)[10].
Neste sentido, uma consciência pode estar relacionada indiretamente aos
atos dela mesma, mas aqui não se trata ainda de uma “autodeterminação pura”,
pois está afetada pela sociedade mercantil-financeira da qual fazemos parte e que
em grande parte não controlamos. Ainda assim, os pequenos fazeres que rechaçam o
capitalismo, os fazeres alternativos que se propagam nas contradições e
negações do capitalismo, que militam de alguma forma contra a hegemonia do
sistema mercantil - monetarista, consumista, extrativista predatório, que
promove profunda assimetria social -, provocam “fissuras” e são parte de uma autodeterminação
social, um impulso contra si, além das determinações do capital (HOLLOWAY,
2011).
Da exteriorização de nosso poder, ao
tempo de sua substância capitalista do fazer, de um lado, e da subtração de
nosso fazer criativo, de outro, se cria a dupla dominação sobre a economia e a
política. Esta dominação desenvolve-se em uma metamorfose de nosso poder-fazer
como trabalho abstrato, extraído de nós para o mercado, e, como tal, a
exigir uma instância de controle geral sobra a rede de relações sociais assim
engendradas: esta instância é o Estado. E, assim, é inegável a imbricação a ser
enfrentada entre o poder político e o fazer fabril tanto quanto o nosso fazer
para as coisas cotidianas das quais não podemos fugir.
No pós-capitalismo deve-se,
essencialmente, reconstruir a base social de todos os fazeres de forma livre,
concretamente buscar a liberdade real para todos os fazedores longe da
abstração mercantil-financista-mercadológica do viver. Este distanciamento ou
afastamento (Entfermung) (remoção) da base fabril/ mercantil
nos moldes de produção capitalista é, então, fundamental para a consciência e
luta ampla e contra o poder alheio sobre nosso fazer, a partir dos espaços ou
lacunas nos mais capilares espaços de autonomia e criatividade que podemos
tomar/ ocupar[11].
Esse saber e poder-fazer saído das entranhas do sistema de capital, deve
evitar que, ao fim e ao cabo, não nos frustre o fato que a irracionalidade do
crescimento econômico[12] e
do extrativismo[13]
são profundamente incentivados por nós, nosso consumo, nossa ostentação, nossa
forma de viver. Os freios necessários à produção irracional e predação do
meio-ambiente, passam necessariamente pelo abandono do trabalho abstrato
que nos envolve nos circuitos do capital, trocado pela autogestão da produção,
planejada pela utilidade real ditada então na dimensão das trocas,
extinguindo-se as atividades supérfluas, repetitivas e inúteis - os “trabalhos
de merda.” (GRAEBER, 2022)[14].
No pós-capitalismo deve-se valorizar o fazer concreto e a utilidade real para todos os sujeitos, em uma organização consciente do que se faz e por quê, ou para quem, e ir além, decidir, como tal, o grau de necessidade das coisas para uma vida digna, com liberdade ditada pela organização primordialmente coletivista/ colaborativa/ cooperativista/ solidária dos grupos sociais. O socialismo, por ser essencialmente uma determinada forma do fazer-viver, já se manifesta entre nós, e em muitos casos no mundo é uma realidade escolhida de Bem Viver para milhões de seres humanos e outros seres viventes, dispostos a dizer não às formas de reprodução do capital como trabalho abstrato. “É necessário sinalizar que, agora, existem muitas alternativas que buscam romper com as exigências dos modos de vida predominantes na atualidade.” (ACOSTA; BRAND, 2018, p. 84)[15].
OS FAZERES E OS TRABALHOS DO SOCIALISMO
Tanto
para o capitalismo, como inicialmente para o socialismo, “a vida real de homens
reais” ainda será a que comanda tanto os níveis de consciência como os fetiches
e as coisas reificadas como mercadorias, até que o domínio do fazer mercantil seja
extinto e com ele as práticas e os juízos de valores da sociedade burguesa, o
que não acontece facilmente. É papel fundamental do socialismo programar os
modos operandos de uma nova pedagogia e uma nova gestão dos trabalhos e
atividades produtivas, de serviços e culturais.
Nos referimos aqui às mediações
levadas em consideração no Materialismo Histórico Dialético. O primeiro
fundamento no pensamento marxista, data do momento em que Marx e Engels fazem a
crítica ao idealismo dos jovens hegelianos, entre 1845 e 1846, apresentando os
fundamentos da filosofia materialista histórica e a dialética que nunca
abandonaram. Dizem eles:
Mesmo
as fantasmagorias do cérebro humano são sublimações que resultam,
necessariamente, do seu processo de vida material, que se pode averiguar
empiricamente e que repousa em bases materiais. Devido a esse fato, a moral, a
religião, a metafísica e tudo que resta da ideologia, bem como as formas de
consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente qualquer aparência de
autonomia. (MARX & ENGELS, 1971 [1845-1846], p. 19)[16].
Mas mais tarde, no início de 1875, Marx
pode dizer, em um segundo momento, quando de suas observações críticas ao
programa do futuro partido operário alemão unificado, que:
Do
que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua
própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade
capitalista e que, portanto, apresenta ainda todos os seus aspectos, no
econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas
entranhas procede. (MARX, s/d [1875], p.213)[17].
O segundo pensamento complementa
o primeiro, porque, de fato, se a prática determina a consciência (aforismo
fundante do materialismo e da história), não é menos da práxis constatar
que só muito lentamente, e devido a ações primordiais pedagógicas e práticas,
as mudanças nesse pensar e fazer se estabelecem (e às custas de transformações
profundas nos meios e formas de produção capitalistas), e não há como predizer
em que direção exatamente. A história em seu curso dialético é mais marginal
que obstinada. Assim, Althusser (2015, p. 78)[18] pode
dizer:
Quando
nessa situação entra em jogo, no mesmo jogo, uma prodigiosa acumulação
de “contradições” das quais algumas são radicalmente heterogêneas e não têm
todas a mesma origem, nem o mesmo sentido, nem o mesmo nível e lugar
de aplicação, e que, no entanto, “se fundem” numa unidade de ruptura, não é
mais possível falar da única virtude simples da “contradição” geral.
(Sublinhado nosso).
IV
A
vida social, societária material e imaterial, supõe a necessidade observável e
sensível da necessidade de suprir bens e víveres necessários à sobrevivência
humana, como o é para todos os entes viventes. Existem duas dimensões a serem
transformadas futuramente: do ponto de vista material, sob a égide do
capitalismo, uma contradição entre quem comanda (capitalista) a produção de
capital pelo trabalho abstrato, e os que trabalham produzindo sob as
condições desse mesmo trabalho e submetidos a esse comando (trabalhadores) –
isto pressupõe a inevitável extinção da propriedade privada e da classe
burguesa, e deveria extinguir as demais classes dominantes e toda a dominação;
do ponto de vista imaterial, o que se anseia
transformar, de forma sensível, é a “frustação” e “recalque” em suas formas
“subjetiva” (Eu) e “objetiva” (Nós), o embate entre o que é possível admitir
racionalmente uma consciência diante de sua prática – isto pressupõe
outra pedagogia, a começar pela autogestão coletivista[19].
De qualquer forma, tais contradições só podem ser solucionadas paradigmaticamente
(e temporariamente) por um “acordo novo” ou “convenção nova”[20]
no ambiente socialista, e na medida em que ainda permaneça o homem egoísta, e por
isso, as limitações das liberdades que tendem, contudo, a se esvair nos
ambientes comunitários.
Os princípios basilares do pensamento
hollowaydiano quanto à autonomia e autogoverno das comunidades, encerra em si a
ideia de separação e superação de organização societária do Estado, e de
qualquer governo que não seja o dos indivíduos organizados das comunidades.
Isto marca uma posição bastante definida quanto à ideia de “ditadura do
proletariado”: um tipo de governo que ao instituir o “governo revolucionário”
do proletariado permanece sendo a transposição do nosso saber e poder-fazer
para o comando de uma entidade exterior a nós, portanto, que mais tarde ou mais
cedo tornar-se-á na “morte de todo movimento revolucionário” e exercerá sobre
os agentes sua autoridade arbitrária. Do ponto de vista do saber-fazer e
do poder-fazer qualquer comando exterior aos indivíduos
autodeterminados, mais ou menos consentido, ainda assim será um arbítrio[21].
Separando a política de nosso fazer,
como uma esfera distinta e exterior de poder-sobre nosso fazer – pensar,
saber, querer, amar etc. -, oferecemos ao governo nossa liberdade. Não se
discute aqui a legitimidade, visto que qualquer exercício de poder exterior
sobre nosso fazer é por princípio arbitrário. A aceitação da legitimidade que
entra como uma cunha entre a política e o econômico, serve apenas para
legitimar a dominação arbitrária na produção capitalista. Por isso ela deve ser
negada, e se for o caso real da revolução (daí o temporário), deve ser extinta
o quanto antes, devolvendo o poder do fazer aos indivíduos organizados
socialmente. O saber-poder-fazer doravante unifica o político com o
econômico na liberdade do fazer do indivíduo compartilhando suas práticas com a
comunidade. As separações entre os conceitos e as práticas são sempre
predicados do modo de produção capitalista e não do socialismo.
No pós-capitalismo a vitória de acordos
novos visa à “relação social real”, portanto, está na esfera pública
do poder, enquanto aquela uma consciência procura posições
privadas de poder com vistas às suas propriedades e posses. Isto não significa
a prevalência simples dos conteúdos do espírito (propriedades e posses são bem
reais!), mas apenas que seu egoísmo e as posições privadas que adota enseja por
muito tempo uma contradição real em vista de liberdades burguesas, ou outras
mimeses.
Em Holloway o pós-capitalismo é um processo
de caminhar até o socialismo pela perpetração cotidiana de pequenos movimentos
de negação do capitalismo. Na transição ao socialismo muitas das bases
materiais se modificarão, algumas mais rapidamente do que outras, mas o que é
importante é que a política não abandone as ações revolucionárias cotidianas,
no fazer dos indivíduos, sempre do ponto de vista do coletivo e com
interferência mínima do governo. Isso porque no homem os fazeres, quer dizer,
as relações sociais de base materiais e imateriais permanecem por muito tempo
no pensamento como superestruturas para o querer-fazer, para o saber-fazer
e, principalmente, para o poder-fazer, enquanto não forem esgotadas as
práticas de domínio, controle e comando para a produção e circulação dos bens e
víveres. Isto coloca o approach que a revolução do fazer pode ser
ensejada por dentro dos modos de produção, sem que os agentes sociais aguardem as
condições concretas (específicas) para se sublevarem de forma geral em práticas
profícuas de enfrentamento ao domínio e governança do Estado, ou dos governos,
seja em que momento e além da imposição do autocratismo oficial estabelecido.
No caso do capitalismo, as bases materiais propiciam os fazeres diferentes
individuais ou coletivos que o negam e nele provocam profundas rachaduras[22],
e é preventivo que essas ações e autonomia permaneçam na transição dos modos de
produção.
A preservação e intensificação do
ambiente político como campo do público (coletivo), é a posição transitória
para o fim da política burguesa e do Estado. Para o pensamento marxista o
Estado, enquanto essência da forma política mercantil capitalista,
deve-se extinguir no socialismo. Esta é uma das tarefas primordiais. Neste
ínterim, a vitória dos novos acordos e convenções da organização administrativa-financeira-militar,
vão se afastando das abstrações formais - território nacional (x confederação
global), povo (x estrangeiro), soberania (x ocupação), Estado (x separatismo), cidadania
(x autonomismo), público (x privado) e Poder -, tanto mais e na medida, e nesta
condição, da autonomia do fazer (saber-fazer, querer-fazer,
poder-fazer) e autogestão das comunidades.
Visto que o “acordo” (moral, político,
cultural) é objetivado para cada experiência consciente da razão
subjetiva - e está imerso no “caldo” das escolhas subjetivas com as
necessidades coletivas (Eu com o Nós), e na intersecção societária dos que se
consideram “semelhantes”[23] -,
os acordos primordiais, na esfera privada, são do tipo reprodução de
bens e víveres para manter a vida, coletivamente, ou seja, pela esfera pública
(comunal)[24].
De fato, o homem egoísta que exige direitos para si no sistema do capital, e
que entende por isso a liberdade, é todo o tempo desvelado e contradito pela
necessidade irrecusável de obter satisfatoriamente aqueles bens e víveres para
manter a vida, exteriormente, na coletividade, “e inclusive seu estômago
profano faz com que ele recorde diariamente que o mundo fora dele não é
um mundo vazio, mas sim aquilo que na verdade ele preenche.”
(MARX, 2011, p. 139)[25].
Isto será uma realidade insofismável no socialismo!
Uma configuração da vida social que se
verifica hegemônica na base mercadológica, produz o “recalque”
que tende a encontrar satisfação na violência, na guerra, no “canibalismo”
individualista do Self sobre o Self[26],
já de nada lhe adianta a propriedade e os direitos (humanos!?). A solução de
tal problema “primogênito” foi a criação da entidade “povo”: exatamente
porque o conceito de povo está circunscrito na forma política do Estado-nação,
ele é limitado dada a possibilidade mesma de sua representação política (BORÓN,
2003)[27].
Então ele serve, concomitantemente, de uma coesão (abstrata com vistas à sublimação
de desejos nunca atendidos), como de seu controle (policial/ legal).
*José Manuel de Sacadura Rocha é doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor, entre outros livros, de Antropologia jurídica: para uma filosofia antropológica do direito (Juspodivm) [Antropologia Jurídica - Geral e do Brasil (2022) (editorajuspodivm.com.br)]
Para ler a segunda parte do artigo clique em Ensaio sobre a transmutação do homem burguês: o Estado em John Holloway - Parte II (profsacadura.blogspot.com)
[1]
Os conceitos de poder-fazer (saber-fazer) e poder-sobre
foram desenvolvidos por John Holloway em: “Como Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder”,
Viramundo, 2003 (1ª. edição inglesa de 2002). Parafraseando Holloway, o poder-fazer
é o poder como capacidade (“potência” em Nietzsche) e não como um lugar no
mundo – no capitalismo o poder-fazer (e saber-fazer) é
transformado em poder-sobre como o poder do patrão sobre o
trabalhador assalariado.
[2]
Usamos neste ensaio a publicação em espanhol de John Holloway, Agrietar el
capitalismo: el hacer contra el trabajo. 1a. ed. Buenos Aires: Herramienta,
2011.
[3]
CHASIN, José. A morte da esquerda e o neoliberalismo. In Revista
Verinotio on-line, n.15, ano VIII, abril, 2013.
[4]
Usaremos Mais-valor como sinônimo de Mais-valia, que é o valor adicionado às
mercadorias pelo fazedor e seu dispêndio de energia e conhecimento, e que,
entretanto, não é pago.
[5]
Demonstrado pelas estratégias de mercado, por exemplo, em relação à oferta
sempre manipulada de mercadorias: mais produção, menos produção, mais estoque,
menos estoque, e Price Skimming.
[6]
SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[7] “Para
Freud, o discurso consciente, cuja expressão mais acabada está no discurso da
ciência, está inteiramente impregnado e invadido pelos mecanismos
inconscientes.” (DOR, 1993, p. 33).
[8] Segundo
Marx, o trabalho abstrato é tipicamente a forma capitalista de produção;
vez que o trabalhador foi desprovido dos meios e das formas de fazer, as
mercadorias, em si mesmas, são valores abstratos de uma abstração exteriorizada
do fazer, voltada para mercado, valores de troca com total perda do saber
e do poder-fazer, apenas nos moldes da especialização técnica que
demanda a coisa feita. Ao contrário, o trabalho concreto compreende apenas o
valor de uso, produtos feitos para consumo segundo sua utilidade, e, portanto,
sem a imposição da gestão do capitalista, onde o trabalhador possui seu saber e
poder para fazer segundo a totalidade dos meios e formas de produção. “Todo
trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana em sentido fisiológico, e
graças a essa sua propriedade de trabalho humano igual ou abstrato ele gera o
valor das mercadorias. Por outro lado, todo trabalho é dispêndio de força
humana de trabalho numa forma específica, determinada à realização de um fim,
e, nessa qualidade de trabalho concreto e útil, ele produz valores de uso.” (MARX,
2015, p. 124).
[9]
HOLLOWAY, John. Agrietar el capitalismo: el hacer contra el trabajo.
Buenos Aires, Argentina: Ediciones Herramienta, 2011.
[10]
De acordo com Weber existem quatro tipos de Ação Social: 1. Tradicional –
pautada pelos costumes imemoriais, como a existência de monarquias (do ponto de
vista da Modernidade); 2. Emocional – quando os indivíduos respondem a
fenômenos por seus sentimentos e emoções à parte da razão; 3. Racional com
relação a Valores – usam a razão para estabelecer quais princípios morais e
éticos devem prevalecer em suas ações; 4. Racional com relação a Fins – a razão
estabelece como prioridade determinados objetivos acima de valores e princípios
morais e éticos. Para Weber, as ações do tipo tradicionais e emocionais não são
racionais, não obedecem, pois, à escolha consciente de meios e sobrepesam os
resultados das ações racionais. (WEBER, Max. Economia y Sociedad.
México: Fondo de Cultura Econômica, 1984).
[11]
A mudança estrutural na composição orgânica do capital, a substituição de
capital variável (mão de obra) por capital constante (ciência, tecnologia,
máquinas, robôs), desaloja cada vez mais os trabalhadores da produção e aumenta
exponencialmente o tempo de trabalho social disponível.
[12] O
conceito da teoria crítica contrário ao crescimento irracional do capitalismo é
chamado de “decrescimento”, e está profundamente ligado à ideia de “pós-extrativismo”
ou “não-extrativismo”. O “decrescimento” e o “pós-extrativismo” criticam o crescimento
econômico vinculado ao conceito de dominação sobre a Natureza e que o que dela
provém nunca se esgotará ou não provocará danos às sociedades humanas e ao
planeta. Assim, a revolução industrial e a hegemonia que a classe burguesa
forma a partir de meados do séc. XIX, criaram a ideia que existem recursos
infinitos para produção infinita de bens de consumo, o que garante o bem estar do
homem moderno a partir do livre mercado. Esse modelo esconde, de fato, não
apenas a destruição da Natureza, como a forma de dominação e exploração do
trabalho, uma irracionalidade que favorece sempre mais a classe burguesa
dominante, em detrimento dos assalariados(as) do capital e dos recursos
naturais. Por outro lado, “O decrescimento e o pós-extrativismo são as duas
alternativas mais promissoras ao nosso alcance. O decrescimento, também
denominado pós-crescimento, se dá em países industrializados, sobretudo na
Europa. O pós-extrativismo ocorre na América Latina e também em outras regiões
do indevidamente chamado “mundo desenvolvido”, e está intimamente ligado às
noções de pós-desenvolvimento.” (ACOSTA, A.; BRAND, U. Pós-extrativismo e
decrescimento. São Paulo: Elefante, 2018, p. 21).
[13] “Não
existe um extrativismo bom e um extrativismo ruim. O extrativismo é o que é: um
conjunto de atividades de extração maciça de recursos primários para
exportação, que, dentro do capitalismo, se torna fundamental no contexto da
modalidade de acumulação primário-exportadora.” (ACOSTA, A.; BRAND, U.
Pós-extrativismo e decrescimento. São Paulo: Elefante, 2018, p. 51).
[14]
GRAEBER, David. Trabalhos de merda: uma teoria. São Paulo: Edições 70, 2022.
[15]
ACOSTA, Alberto; BRAND, Ulrich. Pós-extrativismo e decrescimento. São Paulo:
Elefante, 2018.
[16] MARX,
Karl; ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã. In Marx & Engels: Teoria sobre a literatura e a arte.
Lisboa (PT): Editorial Estampa, 1971.
[17] MARX,
karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, s/d.
[18]
ALTHUSSER, Louis. Por Marx. São Paulo: Boitempo, 2015.
[19]
A luta de classes, em princípio, é tida aqui como uma totalidade em que operam
aspectos materiais de propriedade e trabalho (classe trabalhadora e classe
burguesa), e operam aspectos imateriais em parte derivados da hegemonia
burguesa (conhecimento, educação, cultura), e em parte como prenunciadas marcas
psíquicas nos sujeitos (tabus, medos, frustações).
[20]
Nos diz Kropotkin: “Sabemos que revolução e governo são incompatíveis. Um deve
destruir o outro, independente do nome que se dá ao governo: ditadura,
monarquia ou regime parlamentar. Sabemos que o que constitui a força e a
verdade de nosso grupo se encerra nesta fórmula: ‘Só a livre iniciativa do povo
pode fazer algo bom ou verdadeiro, e todo governo tende a destruí-la’.”
(KROPOTKIN, Pedro. Follletos Revolucionarios II: lei e autoridade.
Barcelona (ES): Tusquets Editor, 1977, p. 78).
[21]
Na filosofia do Direito Natural das gentes, existem pensadores que valorizam esta
mesma preposição, a de que qualquer exercício de poder não levado a cabo pelo
indivíduo, constitui-se como arbítrio, iluminando assim as frentes de luta
autonomistas: “As leis imutáveis são assim chamadas porque são naturais e de
tal forma justas sempre e em todo lugar, que nenhuma autoridade as pode alterar
nem abolir; e as leis arbitrárias são aquelas que uma autoridade legítima pode
determinar, mudar ou abolir conforme a necessidade.”(DOMAT, Jean (1625-1696).
In: José R. de Lopes; Rafael M. R. Queiroz & Thiago dos S. Acca. Curso
de História do Direito. São Paulo: GV/ Método, 2006). Portanto, neste caso, a
legitimidade não retira o arbítrio das leis e do governo.
[22]
Este
termo “rachaduras” tem sido aproveitado por outros autores na teoria críticas
marxista, não apenas como um mero sinônimo de ruptura, mas precisamente como
fonte de possibilidades reais de transformação dos modos de vida mercantis
capitaneados pelo capitalismo: “Ao
mesmo tempo, ela critica “a sociedade por não cumprir padrões conceituais” que
ela “não pode deixar de defender” e que, portanto, levam a demandas por “sua
realização social”. A crítica imanente interroga a frieza social desse padrão
normativo. Há rachaduras em tudo e é por meio delas que a luz pode entrar.”
(BONEFELD, Werner. A critical theory of economic compulsion: wealth, suffering,
negation. Oxfordshire, Routledge, 2023, 180 págs. Tradução de Eleutério F. S. Prado. In:
https://aterraeredonda.com.br/uma-teoria-critica-da-compulsao-economica, em
03/04/2024).
[23]
Há que se pensar: “O medo é um elemento que complica o momento de pensar em
transformações sociais. Esse receio à diferença, como tem se observado ao longo da
história, pode ser a origem deste renovado conservadorismo – ou fascismo.”
(ACOSTA; BRAND, 2018, p. 78).
[24] Contudo,
em condições de esgotar o pensamento e o finalizar ideologicamente, de alguma
forma, porque todo o fazer é um “saber” e um “poder” em construção.
[25] MARX,
Karl. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2011.
[26]
KURZ, Robert. Razão Sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da
modernidade capitalista e de seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010.
[27] BORÓN, Atílio B. Império: dos tesis
equivocadas. In: Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n.16, 2003,
p.143-159.
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