Pós Tempos Modernos


Vamos começar assim: os filmes de Charles Chaplin não são uma crítica ao capitalismo, mas uma crítica à sociedade industrial como um todo. Este mal entendido custou vários dissabores a Chaplin, como a sua saída dos EUA e o ostracismo que Hollywood insistia em colocá-lo, até se render à sua genialidade e lhe ofertar um Oscar pelo conjunto de sua obra e contribuição para o cinema mundial. Prêmio, aliás, que ele não queria receber, não fosse a insistência de sua família e amigos, bem como o apoio recebido de intelectuais e fãs do mundo inteiro.
Chaplin e seu personagem Carlitos, o eterno vagabundo, escondia uma crítica maior e representa, ainda hoje, uma denúncia muito mais profunda e radical aos sistemas tecnocientíficos e tecnocratas modernos. Os sistemas modernos escondem pretensões totalitárias, são sistemas montados para a disciplina, controle e contemporaneamente para a vigilância cibernética. O que Chaplin descobria com seu personagem é a fuga desse maquineismo, dessa domesticação produtiva. Carlitos é um adorável vagabundo, possivelmente o primeiro vagabundo que foi adorado, que podia ser adorado. Ele estava fora dos argumentos da ordem, do lado de lá da legalidade, além da conformidade do sensato e desejável. Como tal, tinha tudo para ser perseguido, como é permanentemente nos filmes, mas por não ser “normal” pode ser tolerado, ou por ser “insano” pode ser amado em sua mais profunda sensibilidade e amor. E, nessa tolerância ele pode, do lado de fora do controle e da adequação, fazer a seu modo a denúncia da perversidade que se comete com o humano, seu corpo e sua alma, com objetivos de captação e gestão de sua energia criativa e produtiva. Carlitos é a fuga possível da logística do controle e das redes de vigilância e adequação comunicativa moderna. Ele representa o que poderíamos ser e ao mesmo tempo encarna o desejo da liberdade que sabemos não possuir mais, perdidos em meio aos jogos de poder e saber que Carlitos parece insistir em ignorar.
Pegue-se como exemplo o filme Tempos Modernos. Ali o Carlitos operário é tratado como rebanho – de carneiros no início do filme – dentro da fábrica que desumaniza reduzindo o humano a uma peça de máquina industrial. Esses operários fazem tarefas que de tão simples são insanas e brutalizantes, submetidos a tempos e métodos fordistas de produção, obrigados a trabalharem na velocidade da esteira controlada pelo patrão. O tempo é um só para todos, onde o mais rápido dita a velocidade produtiva de todos, e o mais lento será engolido pela máquina. Esse patrão também vê tudo o que acontece - inclusive no banheiro! -, e expede ordens para os capatazes que precisam garantir a adequação da força de trabalho à exaustão e distorção fisiológica do humano. No filme, onde a repetição incontável do movimento não abandona a musculatura do operário mesmo em seu momento de descanso, como no lanche etc.
Quando criança recordo que sempre me fazia confusão ver o Carlitos ser engolido pela máquina e não morrer. Ele vai para dentro dela, roda por suas engrenagens e volta sem se ferir. Por quê? Porque ele é uma peça de máquina! Como tal pode transitar em suas entranhas de ferragens, suas roldanas dentadas, que trituram, mas não sofre danos porque ele mesmo se transformou em uma peça, uma ferramenta, uma engrenagem fria e mecânica. Como fugir desta “escravidão”?
Bem, Carlitos não morre na máquina, ele ainda é humano. Apesar de todo o aparelho e maquinaria produtiva a lhe retirar a energia e o desejo, ele ainda é humano. Talvez por ser apenas um pacato e desconcertado vagabundo, ele pode enlouquecer, ele pode surtar e desdenhar toda a aparelhagem e dispositivos de controle. O surto de Carlitos em Tempos Modernos é o grito de liberdade que gostaríamos poder dar e fugir. A insanidade é genial e põe a fábrica de cabeça para baixo. Ele destrói as máquinas e os aparelhos que tutelam e extraem a criatividade e a potência do homem. Mas não o podem fazer com o insano, porque ele está fora do controle, porque ele não se adéqua, ele não pertence, não está contido, não foi padronizado. Então Carlitos é hospitalizado e algum tempo depois só lhe resta voltar a ser o eterno vagabundo. Como vagabundo ele permanece do lado de fora do controle, da rede de micropoderes e maquinarias de controle. O herói precisa ficar do lado de lá.
Sociologicamente existe um detalhe importante nessa bipolaridade que Chaplin insistentemente parece fazer prevalecer nos filmes de Carlitos: o pertencer e o não pertencer. O homem nas sociedades industriais e informacionais de hoje só são importantes enquanto produtores ou consumidores, números na verdade, e valem pouco quando estão fora dessa rede de produção-consumo. Do lado de lá das estatísticas socioeconômicas o humano está sozinho, mas, paradoxalmente, pode ser humano, demonstrar sentimentos, amor ao próximo, chorar e compadecer-se com o sofrimento alheio, querendo sempre ajudar. O homem atrás da maquina é apenas um apêndice dela. Longe dessa maquinaria está sozinho. Quando pertence é um pedaço de engrenagem produtiva, quando não pertence é um número que consome. Nos dois casos ele está incluso.
Carlitos parece sempre terminar sozinho, mas pronto para outra aventura humana. Uma aventura solitária porque ele está do lado daquilo que parece não interessar ao poder. Por isso ele é ao mesmo tempo a liberdade, a fuga, a contestação e a refutação do sistema de adequação e formatação da alma. Aquele vagabundo é pura humanidade, é o que temos de melhor e o que perdemos sempre nas artimanhas do saber-poder industrial de nossas vidas. Ele é por isso o farol e a aposta que rotas de fuga rumo à humanidade são possíveis.
Aquela bipolaridade foi pioneiramente percebida com antecipação por Durkheim, muito antes da Escola de Frankfurt e dos filósofos franceses pós-guerra, como Foucault ou Deleuze, e pode ser assim traduzida: inserido no processo produtivo o homem se especializa e atomiza. Como átomo a sua importância só pode ser instrumental, quer dizer, como parte de uma engrenagem produtiva maior. Sua “importância” só se verifica enquanto peça, pois se ela faltar ou falhar, a engrenagem toda para. No entanto, fora da fábrica, do escritório, da repartição, na sua vida privada ele está completamente só, e sua utilidade como parte da engrenagem desaparece. O pouco de solidariedade que pode obter no âmbito da produção deixa de existir quando ele se encontra fora. Este é o motivo pelo qual as pessoas oferecem sua potencialidade energética ao mundo da produção, trabalham como nunca e se viciam na produção de coisas, muitas delas absolutamente desnecessários ou mesmo nocivas. As pessoas procuram solidariedade, o átomo procura se juntar aos demais átomos e sentir que faz parte de algo maior, busca o sentido de sua existência. Fora daí o sistema lhes dá absoluta liberdade para ficarem sós, isoladas e com sua saúde mental comprometida, dispostas a encontrarem a felicidade no consumo desenfreado das coisas fúteis. A este ambiente industrial moderno de desvalorização das instituições tradicionais – família, igreja, escola(solidariedade mecânica pré-industrial) – e hipervalorização das relações produtivas e de consumo, Durkheim cunhou de solidariedade orgânica (o átomo adquire algum sentido no órgão). Nela impera o cálculo, o ótimo de Pareto, a estatística, o padrão, o algoritmo, o binário, tudo a favor do controle e extração do potencial inovativo do ser, ao que corresponde a adequação de sua alma e a codificação contemporânea de seus desejos.
Aparentemente existe mais liberdade nas sociedades de rede digitais e informacionais hodiérnicas. Esta sensação apenas superficial é sentida na proporção inversa em que sobre os indivíduos incide menos solidariedade, ou sociologicamente, a liberdade individual é maior quando as instituições educacionais são fluidas ou mesmo desprestigiadas, com o esfacelamento da consciência coletiva, e vice-versa. O problema das sociedades pós-modernas – agora as de controle cibernético, que apelidei de solidariedade cívico-digital – é a liberdade sem limites ansiada insistentemente pelos indivíduos sujeitados, e quanto mais são sujeitados e mais se lhes dá essa pseudoliberdade, mais grassa entre nós todo o tipo de violência e patologias doentias inerentes possivelmente à parte mais obscura de nossas almas.
Durkheim, já no século XIX, previu que isto aconteceria, e haveria um incremento substancial na confecção de leis e no controle externo do Estado. A tendência à anomia é sempre exponencial. Para conter os apetites exacerbados e a violência, como forma mesma de compensar a extrema exploração dos desejos e energias humanas – as pessoas estão mais violentas porque estão mais frustradas e mais frustradas porque estão mais solitárias; mais solitárias porque estão mais condicionadas a serem desumanizadas e espoliadas no mundo do trabalho global -, a legalidade e a força policial só crescem. As grandes instituições de nossa época são o Direito e o Estado. Sobre todos o poder oficial, a perscrutação da vida pessoal legalizada, a liberdade normativa, a violência apreciada do Estado, a justiça e o consentimento prescritivo do código, uma existência vigiada e definida digitalmente pelos aparelhos e maquinarias do poder, em todas as organizações e nos mais despercebidos rincões do cotidiano, na rua, nos escritórios e fábricas, em nossas casas, dentro de nós. Em um mundo assim, não existe liberdade de fato, a não ser a violência oficial totalitária do poder, do Estado e de seus prepostos. Chegará o dia, à luz desta realidade, em que nem sequer o ordenamento jurídico nos servirá de proteção, porque ao totalitarismo basta o terror e a ideia de uma vida sem traumas, sem tensões, sem obrigações, sem responsabilidades, o mundo da felicidade nas coisas, dominado por elas e pelo fim dos conflitos inerentes à circunstância humana.
Da mesma forma que Durkheim anteviu o futuro totalitário do século XX, Chaplin retratou em arte a desumanização também do século XXI. Mas nos deixou a esperança do palhaço, a contestação criativa do adorável vagabundo, a recusa revolucionária do louco, o poder de transformação da solidariedade, a nobreza e a humildade contida na pobreza e a possibilidade superior de ser apenas humano.

Comentários

  1. Fiquei realmente comovida e, ao mesmo tempo, encantada com o artigo escrito pelo prof. Sacadura "Pós Tempos Modernos", pela clareza das idéias, pela elegância da escrita e também pelo modo esclarecedor como foram colocadas as idéias de Durkheim. A leitura me remeteu a uma época em que trabalhei no escritório de uma indústria e pude acompanhar de perto a exploração dos trabalhadores e a mecanização do seu árduo trabalho no chão da fábrica.A matéria me permitiu repensar sobre as questões sociais e sobre os valores que regem a nossa sociedade hoje. Não é difícil perceber o quanto a busca exacerbada pelo lucro oprime o operário e o reduz a uma mera máquina de gerar riquezas para o capitalista.

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