Direito e Ética:O Caso das Células Tronco Embrionárias


Jamais o homem chegou tão perto do sonho de ser eterno. Jamais o homem chegou tão perto de ser senhor de sua existência. Por isso mesmo, jamais tivemos tantas dúvidas e medo sobre o que fazer, assim como jamais tivemos tantas certezas que o precisamos fazer. Mais liberdade exige mais responsabilidade, o que não necessariamente significa mais felicidade.
Agora estamos diante da discussão sobre a possibilidade de manipular para fins terapêuticos células-tronco embrionárias, aquelas que se encontram, por exemplo, em embriões congelados e que são descartados quando não aproveitados em fecundação assistida. Este é o caso de casais que por diversas razões não podem conceber filhos de forma natural. No entanto, essas células em estágio de desenvolvimento prematuro, possuem a propriedade natural de se desmembrarem em várias outras células especializadas, quer dizer, células que podem dar origem a órgãos complexos do corpo humano, como coração, pulmão, fígado, rim, medula óssea, pele, nervos etc. Segundo os cientistas essas células embrionárias se distinguem das células adultas – as que podem ser coletadas em um adulto - porque apresentam uma capacidade de diferenciação muito maior exatamente por estarem um estágio inicial de desenvolvimento.
Existem os que são contra esse aproveitamento e essa manipulação, argumentando que ali, mesmo no estágio embrionário, no inicio da fecundação, já existe vida, e que esta tem que ser preservada. Alegam os direitos naturais à vida humana como preceito moral-religioso e também o disposto na Constituição. Os que são a favor do uso terapêutico dessas células em estágio embrionário alegam que o Brasil tem tecnologia para desenvolver esses estudos colocando-se a par do desenvolvimento científico mais avançado já existente e autorizado em outros países, além do fato de constatarem que muitos desses embriões são descartados. Estes estudos podem mais tarde possibilitar a recuperação de milhares de pessoas doentes lesadas por acidentes ou mesmo os que precisam de transplante de órgãos.
A vida não é apenas a matéria corpórea, esse invólucro de carne, ossos e sangue. A vida também é o imaterial da vontade da mente e dos sentimentos imprevisíveis e etéreos. Daí, quando estamos presentes a inovações que recolocam em discussão paradigmas sobre nossa existência, a polêmica se instala, haja vista que, não obstante, corpo e alma formam um único ser. Este ser quer usar a inteligência de sua mente para prolongar a vida, quiçá ser eterno, mas essa mesma mente jamais o autorizou, e autorizará, a fazê-lo sem se perguntar, sem se indagar se essa inteligência pode prescindir dos valores pelos quais esse corpo e alma caminham juntos. Assim é absolutamente legítimo e natural que a discussão aflore.
Aliás, esta discussão faz parte de nós mesmos. Sempre os homens estabeleceram e questionaram o que é certo ou errado, o que seja o bem e o mal, qual o comportamento aceitável ou reprovável, sem jamais, contudo, chegarem a uma conclusão finita. Assim nasceu a Filosofia: quem eu sou, para onde vou e de onde venho - para me entender como ser; e a Deontologia: o que é certo ou errado, onde está o bem e o mal, o que fazer ou deixar de fazer - para me entender com as coisas e os meus semelhantes. E quando penso que alcanço a paz, eis que descubro que o meu ser não existe além do mundo que me cerca, nada além das possibilidades e forças nem sempre controláveis da natureza e potências subjetivas de meus semelhantes. Aqui a primeira e sempre presente situação jusfilosófica e ética: minha existência é tão sagrada como a de tudo o que me cerca, e não existe direito natural ou direito posto que me possa livrar desta situação de não ser eu mesmo em toda sua amplitude e desejo. Todas as regras morais e todo o Direito conspiram contra a liberdade do ser. Será que mais uma vez o controverso da questão não é, antes de tudo, a frustração da perda de mais um pedaço da liberdade que teimosamente tentamos alargar com a contribuição de nosso engenho?
Por outro lado, aprendemos a reconhecer e conviver com a noção que um conjunto de máximas morais é o melhor caminho para usufruirmos uma vida criativa e produtiva em meio ao ambiente natural e social, “inóspito”, que nos rodeia. A partir dessas máximas engendramos os meios e formas de sobrevivência, construímos culturas, edificamos monumentos, pajeamos os deuses, curvamo-nos ao poder alheio. Então o paradoxo se instaura: ao invés de sermos mais fortes e corajosos para assumirmos, nós mesmos, nosso projeto de vida com liberdade e responsabilidade, tendemos sempre a remeter as grandes questões ao crivo de terceiros: ao domínio dos Deuses – com o medo presumível do juízo e da punição no além -, ao domínio do Estado – com o medo do juízo e punição dos homens. Só não consultamos a nós mesmos. Em suma, cada um de nós deve decidir. O pior que se pode fazer é deixar que a discussão sobre a possibilidade de manipulação de células-tronco embrionárias fique restrita aos meios acadêmicos, às entidades eclesiásticas e ao Estado.
A muitos parece razoável que se defenda a vida presumível contra a pesquisa com células-tronco embrionárias, mas não lhes é razoável a pesquisa com células-tronco embrionárias em nome da vida real daqueles que sonham com o dia em que sua aplicação terapêutica os pode salvar de uma sub-existência de dor e sofrimento? Nem sempre a responsabilidade ética se coloca aos homens de forma simples, nem sempre a decisão se coloca entre ser ou não ético, mas muitas vezes decide-se o que parece ser mais correto fazer diante de certas circunstâncias. E, destarte nossos esforços em realizar certas máximas morais, muitas vezes o correto pode ser o “mal menor”. Uma vida boa não prescinde de máximas ideais como as que ao Direito se propõe: “A liberdade de cada um termina onde começa a do outro”; “Não fazer ao outro o que não gostaria que fizessem comigo”; “Se for preciso, absolver o culpado para não punir o inocente”; “É moralmente elevado preferir sofrer o dano a infligi-lo a outro”; “O interesse coletivo deve prevalecer sobre o interesse particular” etc. E não se podem abandonar o bom-senso e sensibilidade circunstanciada. Qual a responsabilidade maior? Não será ela com a vida dos enfermos de hoje e de amanhã?
Tenho a impressão que esta discussão, mais do que discutir o direito á vida, deve discutir que vida se quer ter. Na base da defesa da vida existente em células-tronco embrionárias ainda reside uma gama infinita de rancor, autopunição e medo do além. O rancor que nos condena a procurar permanentemente o mal nos outros, já que as ações humanas são “irmãs” do pecado; a autopunição para expiar o medo de nós mesmos e amarfanhar nossas potencialidades; o medo do além como ideal ascético a nos reduzir e nos obrigar a recorrer sempre ao perdão bestial. Será que os que defendem tanto a vida em um punhado de células pretendem nos libertar das ansiedades e angústias milenares de submissão e enfraquecimento moral, ou ao contrário, pretendem perpetuar nossos medos e nossa dependência do incognoscível que nos atormenta com a possibilidade do inferno definitivo?
No entanto, já bloqueamos a vida quando descartamos os embriões que não foram aproveitados na fecundação in vitro, já matamos doentes quando detectamos inatividade cerebral mesmo estando seus órgãos plenamente sãos, já eliminamos fetos quando a gravidez é proveniente de estupro, outras sociedades punem com a morte em cadeira elétrica e injeção letal certos crimes, e em outras ainda é um direito humano que pacientes terminais possam praticar eutanásia assistida. De forma geral estamos sempre a matar um pedaço da natureza e de alguma coisa para renascermos das cinzas do que destruímos: assim é a vida do Universo, desde a mais ínfima partícula a galáxias inteiras. Evidentemente que mais uma vez se trata antes de definir em que casos se podem aceitar a morte do que propriamente discutir a vida. Logo existirão bancos de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos constituídos a partir de doações voluntárias, da mesma forma que é extremamente ético constituir estoques a partir de doadores de sangue, de medula óssea ou mesmo de órgãos. Porquê os casais que procuram as clínicas de fertilidade assistida não podem escolher se o material genético não aproveitável pode ser usado para pesquisa terapêutica?
O Brasil tem capital intelectual, tecnologia e infra-estrutura para pesquisar e desenvolver novos conhecimentos na área de biogenética. Iremos de novo pagar e remeter divisas aos países e às empresas estrangeiras para cuidar de nossos concidadãos? Fazer a coisa certa nem sempre acarreta tranqüilidade espiritual. De qualquer forma, seja qual for a decisão da Suprema Corte, os baluartes dos bons costumes continuarão a afirmar que não se mexe com os desígnios de Deus e continuarão a soprar as trombetas do apocalipse sobre nós.

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