Poder, Violência e Direito em Michel Foucault*
Freud
predicou que sistema algum político e jurídico pode eliminar a violência
humana. É conhecida sua afirmação, por exemplo, que o socialismo não resolveria
a violência (Mal-estar na Civilização),
porque ainda que a desigualdade entre as classes fosse eliminada, isso não
eliminaria a agressividade, pois a sua origem não está propriamente nas
condições sociais de vida, mas na vida social como antinomia da liberdade
psíquica. Existe uma frustração sexual reprimida que, em essência, e em muitos casos, dirige-se com violência à "colonização" cultural que a molda.
Existem
muitas formas de violência; de forma geral, a concretude de certas condições da sociabilidade geral são pouco consideradas em um sistema de organização social como o nosso (de mercado): a violência da exploração econômica, a violência do
poder e dos que o detêm, a violência física policial de estado, a violência
simbólica perpassada pelo domínio do conhecimento e da mídia, a violência
psíquica/espiritual do Ser enquanto sujeito cultural. Era desta última que
Freud se empenhava em entender: o que acontece com a força criativa libidinal frente
ao processo civilizatório. Mas nas sociedades contemporâneas de mercado estes tipos de
violência formam uma rede de combinações complementares e subsidiárias de forma
que o Indivíduo dificilmente evita e enfrenta, isto quando o percebe.
Entre aqueles
que primeiramente abordaram esta situação de completude quanto à violência nas
sociedades contemporâneas, estão os estudos dos filósofos da Teoria Crítica, conhecidos
pela Escola de Frankfurt, a partir da década de 30 do século findo. Autores
como Horkheimer, Adorno e Walter Benjamim, acabaram por concordar que o
socialismo e o fascismo - enquanto práticas de planificação social com vistas à
distribuição de recursos e riquezas, e o fim dos privilégios das classes - não
conseguiriam elaborar planos sustentáveis para o fim da violência. Para estes
autores, o mito iluminista de que o conhecimento levaria as sociedades para a
paz e harmonia social, desdobrava-se diante das novas realidades científicas e
tecnológicas de administração das populações (Dialética do Esclarecimento). Por vias do
liberalismo ou por vias de sistemas autoritários outros, a forma de excelência do domínio do Estado
sobre os indivíduos, visa à produção,
distribuição e consumo de mercadorias: isto significa, nesta Escola, a submissão do Ser à racionalidade instrumental não objetiva. Este
estelionato da liberdade e da personalidade humana independe, assim, de sistemas políticos ou jurídicos, pois, de certa forma, reafirma a tese
freudiana de uma energia psíquica que pode ser capturada pela mercadologia técnica da Modernidade.
Esta conformação
das energias e atitudes por meio da necessidade crescente das políticas
públicas irá suscitar, em Michel
Foucault, a tese do racismo e eugenia dos Estados contemporâneos, como
parte de sua Biopolítica.
Outros autores como Herbert Marcuse, Jacques Ellul, Henry Braverman, Habbermas,
Bourdieu, Karel Kosik, entre outros, dedicam-se ao mesmo tema, aproximando-se
mais ou menos, das teorias marxistas sobre alienação, reificação, ideologia,
pseudoconcreticidade, mais-valia.
No entanto,
possivelmente ninguém como Michel
Foucault avançou tanto com relação ao estelionato do Ser pelos mecanismos de
dominação em todas as suas esferas e à necessidade de uma nova filosofia, ao
mesmo tempo desconstrutiva e reconstrutiva do homem contemporâneo. Por isso Heidegger afirmou que a filosofia havia dedicado muito tempo à substância do Ente, mas não do Ser.
Foucault foi
bom entendedor desse mecanismo de subtração e conformidade das forças humanas a
partir de Nietzsche, de Marx e de Freud. Mas no percurso desse entendimento
escutou diferente, leu diferente, viu diferente, para além dos enunciados e
discursos tradicionais da aristocracia e da academia. Depois dele as ciências
sociais jamais foram as mesmas, entre elas o ambiente jurídico.
Substancialmente,
o que Foucault revelou foram as formas reais mais subliminares e sutis com que o
poder é exercido, após o monopólio do despotismo monárquico, para modernamente disciplinar e
controlar os indivíduos. Basicamente, dessa constatação, e da pesquisa empírica
frente à história preterida pelo discurso oficial nas instituições totais - manicômios, presídios,
casernas, conventos -, Foucault alinhavou conceitos como microfísica do poder,
agenciamento, governamentalidade, objetivação, jogos da verdade, tecnologia
política do corpo. Este conjunto de conceitos e outros, do ponto de vista das
políticas do poder público, formam uma estrutura que é conhecida por
Biopolítica.
As opções de
escape a esta situação de usurpação do indivíduo pela política, aqui entendida
como todas as instituições e mecanismos de controle e aproveitamento das
energias humanas, são alvo de propostas diversas desde as utopias do século XVI-XVII
(Moore, Campanella), o iluminismo ético-espiritual do século XVIII (Kant,
Fichte e Hegel), até as propostas materialistas, marxista e anarquista do
século XIX (Marx, Proudhon).
Foucault, no
entanto, vai mais longe para encontrar o que pode ser considerado como o ápice
de sua filosofia, o verdadeiro legado ético comportamental de emancipação dos
sujeitos e redenção da filosofia contemporânea: na antiguidade clássica ele
encontra o “cuidado de si”, uma
verdadeira orientação para a liberdade e a responsabilidade de ser livre para ser-ele-mesmo.
É neste
contexto que o direito, uma das instituições mais imprescindíveis à regulação
nas sociedades de mercado e controle contemporâneas, adquire fundamental importância como
estudo em um panorama, que longe de mostrar eficiência como órgão de justiça e
contra a violência, parece mais propício a reconstruir os mecanismos, por
outras vias institucionais, da injustiça e dessa mesma violência, participando
para a formação mais perene da rede de estelionato humano que esta perpétua. Existe uma solução para a injustiça e seu correlato, a violência? Esta
solução é possível pelos mecanismos tradicionais do Estado e do direito? A resposta
afirmativa a estas questões reside mais no que Foucault denominou de “arquétipos
mentais”, do que nas formas e meios, teorias e instituições tradicionais. O “cuidado de si” é possivelmente a
melhor resposta.
E aqui começa a possibilidade de uma outra história pelo poder-fazer.
* De acordo com texto original de dez. de 2012
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