Nietzsche e Uma Psicofilosofia Curadora

Dois Olhares Sobre o Ser Humano: Filosofia e Psicologia
Uma introdução à psicofilosofia nietzscheana

O ser humano é possivelmente a única entidade capaz de refletir sobre si. Esta reflexão, no entanto, não se dá sempre da mesma forma, quer dizer, sob o mesmo prisma (como um caleidoscópio que nos fornece imagens e cores diferentes do mesmo cristal). O conjunto ordenado das diversas formas como podemos refletir sobre nós mesmos, forma a área de conhecimento humano que chamamos de Ciências Humanas. Assim, para refletir sobre o que somos e o que realizamos, usamos vários enfoques, várias formas de “olhar” o mesmo objeto de estudo, neste caso, o homem. A filosofia é uma disciplina das Ciências Humanas. Existem outras disciplinas que estudam o ser humano, como por exemplo, a sociologia, a história, a antropologia, a ciência política.
Embora a psicologia esteja agregada à área das Ciências da Saúde, por tratar do homem ela não deixa também de ser uma “ciência humana”. Mas a filosofia e a psicologia são disciplinas construídas sobre princípios diferentes para “olharmos” a nós mesmos. A filosofia de forma genérica e universal estuda os grandes questionamentos do ser humano; a psicologia privilegia as interações da mente humana com a realidade concreta, portanto, tende a particularizar sua pesquisa e trabalho. Mas como são apenas formas diferentes de se dedicarem ao “mesmo” homem, a filosofia e a psicologia muitas vezes se “tocam”, quer dizer, ora se opõem ora se complementam, porque afinal o objeto de estudo é um só – o homem.
Por outro lado, as disciplinas podem ter dentro delas conjuntos de princípios e conceitos a partir dos quais os cientistas podem desenvolver suas idéias, que vamos chamar de correntes. Por exemplo, o Idealismo e o Materialismo são correntes filosóficas, enquanto podemos dizer que a Psicanálise e o Behaviorismo são correntes da psicologia. Por vezes as idéias desses pensadores e pesquisadores são tão originais e reconhecidas que formam uma escola. Por exemplo, o platonismo – pensamento de Platão - é uma escola do idealismo na filosofia, como o freudismo – pensamento de Freud – é a escola da psicanálise.
A filosofia empresta conceitos à psicologia – por exemplo, o trabalho de Freud começa e não deixa de ser uma profunda análise da condição humana no mundo moderno (O Mal-Estar Na Civilização). Afinal a psicologia é uma ciência moderna enquanto a filosofia é uma ciência milenar. Por outro lado, a psicologia pode obrigar a filosofia a particularizar e relativizar aforismos universais, resgatando a subjetividade criativa de cada mente humana e o reconhecimento de que cada consciência é uma consciência particular da realidade que a cerca.
Também o caráter do psicólogo pode ser enriquecido pela filosofia – por exemplo, a compreensão da fragilidade e angústia sobre a condição humana, e seus questionamentos existências sobre o sentido da vida contribui para uma visão tolerante e humilde dos problemas que afetam as pessoas. A filosofia “especula” sobre a natureza humana e, portanto, sobre o sentido da vida. Este especular é adverso à psicologia, pois esta procurou desde o inicio se identificar com os processos naturais da mente - o pensamento humano como produto de suas reações fisiológicas mais do que suas reações metafísicas.
No início a psicologia pretende verificar a correlação empírica dos vários tipos de pensamento ou sentimento com condições definidas do cérebro, partindo do princípio de que mentes são individuais e finitas. Esta postura positivista, emprestada das demais ciências naturais do final do século XIX e início do século XX, não é única: a necessidade de se afirmar como ciência autônoma fez acontecer o mesmo, por exemplo, com a sociologia (Auguste Comte). Sempre parece mais adequado a uma nova ciência seguir métodos de experimentação empírica, repetição e seleção de eventos pesquisados, neutralidade e objetividade, que são premissas das ciências naturais e biológicas.
Depois, o progresso científico e industrial verificados nos séculos XIX e XX indicava que longe das especulações metafísicas da filosofia o pensamento e os sentimentos humanos seriam mais bem compreendidos se seguisse os mesmos métodos laboratoriais das demais ciências naturais – afinal o ser humano não deixa de ser um ser natural.
Mas estaria a psicologia e os psicólogos aptos a entenderem o comportamento humano e a consciência em suas várias formas? Está afinal a psicologia capaz de compreender os outros seres humanos? É óbvio que o conhecimento sempre anda próximo do poder. A adequação da psicologia à área de conhecimento das ciências naturais – mais propriamente da saúde -, pode ser cativa da lógica técnico-científica de mercado. Neste sentido a eficiência da psicologia deve se prender a predizer e controlar as ações humanas, como um braço perverso da política e poder do Estado moderno (Michel Foucault)?
Talvez seja necessária mais massa crítica na formação do psicólogo. A finalidade da psicologia, afinal como da filosofia, é proporcionar a felicidade ao ser humano, algo que só pode ser conseguido se forem banidas a ansiedade e angústia a que está submetido o homem moderno. A psicologia é uma ciência moderna porque pretende responder a esta necessidade – esta é uma necessidade real. Afinal, o que distingue mesmo o homem moderno de seus antepassados medievais e antigos, é que a modernidade elevou o potencial de angústia e ansiedade na medida em que o sentido da vida mais e mais pode ser questionado à luz não só das novas descobertas do conhecimento, mas fundamentalmente da depreciação do ser humano.
Neste sentido, a filosofia ajuda na formação de um profissional que não “mecanize” a psicologia e não use o homem como “objeto indolor da terapia de adequação”. “Um modo interessante de lidar com essas questões e de desenvolver habilidades de pensamento crítico é o diálogo com os grandes filósofos, em particular com as teorias sobre natureza e comportamento humano. O diálogo com as idéias psicológicas dos filósofos auxilia na identificação dos elementos que devem compor uma teoria de psicologia, e mostra com clareza as perguntas que uma teoria psicológica deve responder. O distanciamento atual destas teorias permite a realização de um exame crítico indolor, sem patrulhamento e sem proselitismo. Como resultado, nós aprendemos a pensar psicologicamente e não através de determinada teoria psicológica” (William B. Gomes, 2008).
Dissemos que a filosofia tende a universalizar seus estudos, partindo de um homem amplo e comum, enquanto as ciências tendem a particularizar seus experimentos, inclusive o homem. No entanto a filosofia presta-se a formar massa crítica e a ampliar, tanto como a diversificar, os olhares sobre as “verdades”. As ciências tendem a esgotar as possibilidades e a construir paradigmas duradouros. Assim, enquanto o objetivo for compreender o ser humano em todas as suas dimensões, filosofia e psicologia podem emprestar mutuamente campos e olhares específicos sobre o homem, mesmo que fazendo recortes, procurando visões holísticas, sobretudo que possam livrar o ser humano de suas angústias e dores.
Um filósofo que faça leituras adequadas da alma e da consciência humana de forma particular estará dando um salto significativo para entender o sentido da vida; da mesma forma, um psicólogo que esteja familiarizado com o pensamento filosófico estará apto a combater em si a propensão ao tratamento que formata o “homem de rebanho” (Nietzsche). Ambos conhecimentos podem contribuir para um homem mais livre e feliz.
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Gostaria de dar um exemplo magistral da combinação e cumplicidade que filosofia e psicologia podem emprestar como recurso à angústia humana: o eterno Retorno de Nietzsche. Este conceito na filosofia de Nietzsche é o equivalente ao “Big-ban” da astrofísica moderna. Resumidamente pode ser entendido assim: num espaço finito de forças infinitas, as coisas se repetem. Deixando a explicação científica dessa possibilidade de lado – pois verdadeiramente não é essa a questão mais importante para a teoria psicológica e filosofia psicanalítica -, o fato é que se por um momento imaginar essa possibilidade de que haverá um retorno de mim mesmo – pelo menos nada tão “insuspeito” quanto a ressurreição! -, a premissa mais verdadeira e ética é que eu deseje voltar, quer dizer, que eu tenha prazer em voltar. Então, não devo “viver cada momento como se fosse o último”, mas “viver cada momento de forma que o deseje viver novamente”!
Se a melhor vida é a vida que desejo que seja “eterna”, preciso ser feliz a meu modo, primeiro, porque simplesmente não faz sentido viver a vida dos outros e pelos outros se não a vivo por mim mesmo e para gozar plenamente de sua alegria – porque desejaria ser escravo eternamente?; segundo, porque obviamente não vou querer retornar repetindo as mesmas ansiedades, angústias e dores de hoje, onde nada haveria a acrescentar, a progredir. A vida é minha, o retorno na eternidade é meu, e o desejo lógica e racionalmente para capturar plenamente as potencialidades de ser feliz como eu sou, de minha maneira! É neste sentido que Nietzsche vai opor a ação à reação – tipos de forças, a afirmação à negação – qualidades de forças, condenando o niilismo a serviço de todas as formas de condenação e danação da vida – a religião, o poder, o ascetismo. E o que força o ser humano a essa “fraqueza” de atitude, a essa “degenerescência” da vontade”? Basicamente o ressentimento e o remorso.
Agora a filosofia metafísica se corporifica e se apresenta real: trata-se de categorias psicológicas incrustadas na consciência pela moral milenar (de Sócrates a Hegel). O ressentimento enfraquece o homem tanto quanto a preocupação em identificar o outro como culpado; o remorso deprime o homem quando a preocupação é me condenar pelo erro ou “pecado”. Ambos, ressentimento e remorso colocam nos ombros do homem um fardo que não suporta carregar, principalmente porque não precisa carregar. A vida agora lhe parece sem sentido e quanto mais sua ansiedade e angústia o condenam mais e mais a vida lhe é fugidia - nega-se o indivíduo como potencialidade de vir a ser no devir.
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Como a teoria psicológica pode absorver isto? Como a prática da psicologia pode nutrir-se da filosofia – qual o papel da psicofilosofia? Ajudar cada ser humano a resgatar sua auto-estima, ganhar forças para derrotar o sem sentido da vida, livrar-se do peso dos males da condição humana que o oprimem, menos pelos erros de agora, mais pelos erros de sempre. Fortalecer-se, abandonar os fardos e a “beleza” de ser um “crucificado”, livrar-se da “nobreza” de sentir dor e remorso, valorizar seu poder pessoal em construir o seu eu, a sua essência, livremente. Depois, cada um pode oferecer aos outros aquilo que tem genuinamente seu: a ação própria, a subjetivação afirmativa, diante das falsas verdades e das más-consciências de “rebanho”.

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