Memória e História em termos Kitsch - Revisitando Blade Runner (2019)
Fonte da foto: IGN.com
Bibliografia:
BORGES, Jorge Luis. A História da eternidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
Uma narrativa contém toda a expressividade da
experiência vivida que varia em grau entre a pessoalidade e impessoalidade,
entre a identidade (particular) e a personalidade (subjetiva a partir do
coletivo); mas de todas as formas tem que ser interpretada. Hayden White (2011,
p. 588) indaga com propriedade: “A história é uma atividade interpretativa,
qual é sua política?” Aquilo que se lê, pelo plano cultural, superestrutural,
portanto, não é o mesmo a cada
momento, o que significa que a cada momento uma historiografia se forma com
base em um repertório que não e só pessoal, mas sobre a influência de uma
memória que não é apenas isso, ela é igualmente impessoal (coletiva). É por
aqui que podemos então afirmar que “coletivamente” a memória funciona como o
elo de continuidade “do já dado”. Mas mesmo sendo assim, parece irrefutável que
para o Ser é inexcusável essa necessidade de recuperação e preservação da
memória, possivelmente não tanto pelo repetir do “já vivido”, por-mim ou
pelo-outro, mas pelo registro e importância de uma experiência tida como “própria”,
como o perpetuar de uma “existência” que se sabe efêmera, mas não abdica de
deixar rastro, de se expressar, construir de alguma forma a “permanência”
diante da finitude.
É
nesse sentido que se pode aproximar a reflexão sobre a memória do filme Blade
Runner (Ridley Scott, 1982). Aqui, ainda que a memória seja coletiva, seja do
Outro, é mais forte a busca pela preservação de uma memória que é única, do Eu,
pois efetivamente no caso do personagem Roy, existe uma experiência que é só
dele e que fatalmente vai-se perder como se perde em todos os humanos, porém
não na “obra humana”. Mas Roy não é humano, e sua “obra” não permanecerá quando
sua experiência se extinguir. Isto o faz pensar na hipótese de permanecer como
uma memória viva ad eternum e ad exemplum, driblando assim o tempo da
existência humana finita. Roy quer ser, desta forma, um “museu vivo”, “uma obra
de arte imperecível”, que não depende da construção dialógica com o passado,
com o que se impõe como o “ensinado”, ou o “repertório do Outro que não é de
ninguém”. Eis que ele não quer ser humano, não quer assumir essa fatalidade
humana, de “estar dentro por dentro” da história pregressa e memória alheia,
porque isso significa precisamente “o fim”. Não por acaso Jorge Luis Borges
disse: “A eternidade é um mero hoje, é o fruir imediato e lúcido das coisas
infinitas.” (2001, p. 123).
Hayden White,
no centro do debate sobre a historiografia nova, está ciente, portanto, da
questão do “interesse”, do poder e da política na formulação da memória histórica,
na perpetuação daquilo que servirá de fundamento para a construção de um
sentido. Com o pretexto da
objetividade e cientificidade, o discurso da pós-Modernidade continua a usar a
memória como promoção de uma ordem específica, mas superficial de fato e de
direito. Historiadores, filósofos, juristas, políticos, gestores e cientistas
sociais de forma geral apelam à memória ora para enaltecer as conquistas do
passado e as lições mais valorativas e morais dos ancestrais, ora como algo
que, em certas condições de interesse, deve ser esquecido, sinônimo que é daquilo
que é velho ou que não tem mais utilidade. A “verdade”, de uma forma ou de
outra, aparece acima do “real”. De uma forma ou de outra, a memória aparece
contemporaneamente como serva, uma memória implantada mais do que refletida,
promovendo verdadeiro corte naquilo que pode e deve ser considerado ou não – de
resto, uma mesma cisão entre o que é pertinente a determinadas classes saberem
e usufruírem ou não, o que podem ou não podem fazer comandadas pelo poder-sobre.
Se um historiador aparece como um sujeito de boa-fé
contando a história “como ela de fato aconteceu, quanto ao mesmo tempo serviam
ao estado ao castrar ou neutralizar ideologias abertas, (...) e agiam como se
não houvesse nenhum componente ideológico em suas próprias obras!” (WHITE,
2011, p. 588), é porque, sob o disfarce da objetividade existe um manto de
manipulação da memória que ao mesmo tempo em que cria o “eu pertenço”, cria a
“má-consciência” de que nos falava Nietzsche (1983). Essa “má-consciência”,
tratada objetivamente para a “ilusão da verdade”, contudo, é conservadora e por
vias das tradições e dos costumes implanta a própria memória sob os auspícios
de grupos e elites nas narrativas monumentais estruturantes “[...] da natureza
da sociedade capitalista avançada, uma sociedade que se torna cada vez mais
estruturada e mais determinante da natureza das escolhas dos indivíduos,
enquanto ao mesmo tempo lhes fornece a sensação de que suas escolhas são
livres!” (WHITE, 2011, p. 580). Ou seja, se se quer pensar em uma ontologia da
história ocidental pós-moderna, ela se encontra por dentro de um modelo de
organização econômica e social específico só encontrado na pós-Modernidade, o
modo de produção capitalista.
Bibliografia:
BORGES, Jorge Luis. A História da eternidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
WHITE, Hayden. O objetivo da interpretação. Entrevista
a Erlend Rogne. Trad. Joaquim Toledo Júnior. Nova História em Perspectiva. v.1.
São Paulo: Cosac Naif, 2011, p. 588.
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. 6. ed. Rio de Janeiro: Gen/ Forense, 2019.
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. 6. ed. Rio de Janeiro: Gen/ Forense, 2019.
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