Sobre a Responsabilidade


Philip Pettit, iminente professor irlandês, atualmente professor em Princeton, afirma que “O grupo pode estar adequado para ser considerado responsável por uma ação dada, os indivíduos estar adequados para ser considerados responsáveis por suas contribuições particulares e ainda pode não fazer sentido em dividir a responsabilidade pela ação do grupo entre os indivíduos” (Teoria da Liberdade, DelRey, 2007, p.170). Quer dizer que nem sempre um indivíduo pode ser responsabilizado pelas decisões coletivas do grupo no qual participa ativamente. Tese interessante!

O exemplo que Pettit nos dá em seu livro é a votação de uma assembleia de operários onde se vota em decidir se os salários devem ser prejudicados em favor de alguma garantia para o grupo, por exemplo, a manutenção dos níveis de emprego. O voto é individual de cada membro do grupo, mas a decisão é coletiva. Isto quer dizer que se for aprovada a proposta de “sacrifício” dos salários os responsáveis são os indivíduos que votaram? Na opinião do autor não necessariamente, vez que os indivíduos não podiam prever o resultado da votação – apenas exerceram o seu direito de liberdade de escolha. E os que porventura se abstiveram de votar são responsáveis pelo resultado? Também não, obviamente porque votariam sob condições análogas, sem saber previamente o resultado, e, além disso, não se sabe o que eles votariam. Então se houver uma responsabilidade a ser imputada, a quem responsabilizar? Unicamente ao próprio grupo, diz o autor, na medida em que ele é um “sujeito coletivo”. A tese de Pettit então é que “sujeitos coletivos não são as sombras projetadas de seus membros individuais, mas têm capacidade de funcionar, por direito próprio, como agentes livres e responsáveis” (p.170).

Claro que se um determinado grupo ou associação for constituído juridicamente, quer dizer, se possuir uma “personalidade jurídica”, se for uma entidade de direito público ou privado, pode-se, do ponto de vista jurídico pelo menos, imputar responsabilidades e coibir suas atitudes ou punir suas ações de acordo com a lei. É caso dos sindicatos que em muitos casos preferem não serem legalizados exatamente para que a responsabilidade fique sempre parecendo dos sujeitos tomados individualmente. Quando pensamos em grupos, devemos ter presente que na vida social todo o tempo os indivíduos fazem parte de grupos que não são entidades de direito assim constituídas. Neste caso a responsabilização fica aparentemente abstrata e a contrapartida da liberdade do sujeito coletivo difusa. Daqui derivam problemas complexos e decisões difíceis para a vida social que, em última análise, envolve atitudes e comportamentos individuais.

Vou tomar emprestado outro exemplo muito comum na docência. Um determinado aluno costumeiramente apresenta um comportamento inadequado e despropositado em sala de aula. As objeções do professor não têm funcionado. Um dia o professor pede à sala um esforço de atenção em uma conclusão importante sobre a matéria apresentada. O horário de aula não findou e em três minutos a aula estaria terminada. O tal aluno faz uma brincadeira e alguns alunos riem e distraem a sala. O professor senta-se, interrompe a conclusão, e avisa a sala que vai fazer a chamada. A aula terminou. Agora a sala está prestando atenção ao professor. O professor diz: “Peço desculpas por não ter entendido mais depressa o recado da sala. Compreendo que a sala não esteja mais disposta para a aula. Aceito a decisão coletiva. Faço a chamada”. Mas um outro aluno, sente-se prejudicado: “Professor, por causa de um o senhor vai prejudicar todos. Não são todos que estão desinteressados.” O professor sabe desta argumentação que é recorrente em tais situações. Ela tem, aparentemente, seu valor. O que fazer? Como responsabilizar e não penalizar indistintamente?

A diferença do nosso caso para o exemplo de Philip Pettit é que aqui o voto está sendo declarado. O grupo, o sujeito coletivo sabe quem é o indivíduo que age impropriamente, considerando que o sujeito coletivo ache esse comportamento impróprio. O aluno que argumenta estar sendo prejudicado reconhece o comportamento e o indivíduo inadequado. Só não sabemos quantos são os de um lado ou de outro lado. Só não sabemos de fato quantos lados temos aqui. Então o professor pergunta ao reclamante: “O que você acha que eu devo fazer?” Responde o aluno: “Ponha para fora da sala o colega que fez a brincadeira!” E agora?

Voltemos à questão da responsabilização do sujeito coletivo e da não responsabilização do indivíduo quando está agindo no grupo. Aparentemente a “sugestão” do aluno reclamante pode funcionar, parece até adequada. O problema é que aqui existe uma punição; e o pior, a punição cabe ao professor. Agora a adequação do comportamento deve ser exemplar e deve recair sobre dois indivíduos: o que teve o comportamento indesejado (e em momento algum o grupo parece ter dúvidas sobre isso, tal é o silêncio geral!), e o professor transformado involuntariamente em agente com poder de polícia. Temos na melhor das hipóteses três atores no processo judicial: o aluno acusado (já transformado em réu!, tanto pela condenação do reclamante quanto pela omissão do grupo na figura dos demais agentes envolvidos), o aluno reclamante (que parece ser o porta-voz da consciência coletiva!?), e o professor (transformado de professor em juiz!). Um detalhe!?, a sala tem 60 alunos. Esse sujeito coletivo tem 60 indivíduos.

Considerações rápidas: 1. Onde foi parar a responsabilidade dos alunos que atenderam, portanto, reforçaram o comportamento inadequado?; 2. Por que só agora o reclamante se manifestou, se o comportamento é recorrente?; 3. O que pensa o restante do grupo, que permanece omisso – eles aprovam e desejam o quê exatamente?; 4. Qual a legitimidade de uma punição ao aluno tomado individualmente se ele é membro do grupo e convive diariamente dentre desse sujeito coletivo?; 5. Ainda que o professor tenha “autoridade” para expulsar o aluno da sala, quem defenderá o professor quando esse aluno de réu virar vítima?; 6. Alguém perguntou ao professor se ele quer ser juiz desse dilema, se ele se pretende ser o algoz, se lhe compraz ser o centralizador da responsabilidade e autoridade coletiva?; 7. E que direito, por outro lado, depois do professor sofrer o desrespeito, e diante da omissão da maioria, tem o grupo ou mesmo o reclamante de tirar o direito do professor, transformado em algoz, de decidir pela interpretação que a omissão e o reforço que o grupo, ou parte dele pelo menos, deu ao comportamento inadequado, é para terminar a aula?

A proposta de Pettit é que o grupo, o sujeito coletivo pode assumir na verdade, de direito, a responsabilidade e que em situações específicas o comportamento do grupo ganha vida própria em relação à simples somatória de comportamentos individuais mesmo quando executados individualmente. A sociologia há muito provou que o comportamento é social quando sobre ele age a consciência coletiva independentemente se ele é executado em conjunto, no conjunto ou isoladamente. Quando o sujeito coletivo se cala, se omite, sempre fica impossível saber se a punição deve ser executada legitimamente, se essa legitimidade é apenas para achar um bode-expiatório, ou se a situação não exige sanção. Que responsabilidade deve ser atribuída a uns e a outros? E com que direito o grupo acredita poder se omitir e deixar a guilhotina do algoz nas mãos de um único indivíduo?

Se não houver responsabilidade do sujeito coletivo sempre haverá o algoz e o supliciado para absolverem a todos. O problema, o perigo a assombrar permanentemente a liberdade é que, diante da irresponsabilidade do grupo, sempre existem indivíduos dispostos a comportamentos inadequados e, pior, tiranos prontos a encarnar o “sacrifício” de serem os justiceiros das massas. As tiranias de sempre e principalmente as que nos dizimaram modernamente tinham os mesmos princípios autoritários, a começar pela omissão do sujeito coletivo, pela responsabilidade difusa, pela encarnação do mal absoluto em alguém ou em alguma minoria, e do surgimento, no meio do vácuo deixado pela liberdade irresponsável, de um “salvador” e “defensor” do povo.

Ou a ordem é responsabilidade coletiva, ou não haverá jamais liberdade. Ilusoriamente quando atribuímos poderes exacerbados a terceiros, mais tarde ou mais cedo a tirania de uns poucos, ou de um único “eleito”, assombrará nossas vidas e quando menos esperarmos esse poder tirânico baterá em nossas portas.

Infelizmente, o povo brasileiro continua sendo educado para a irresponsabilidade enquanto sujeito coletivo, o que, no fundo, concretiza o processo colonial permanente de dependência, alienação, medo e subserviência. Sempre imputamos o poder e o saber a forças exteriores a nós e à nossa convivência social. Fazemos a vida social, o direito, a política e a sobrevivência material, cativos e subjugados ao poder que se impõe de cima para baixo. Não conquistamos a cidadania!

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Livro Ética no Direito

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