Pós-Modernidade: a luta por reconhecimento e distributividade
Por
mais que não queiramos o aceitar, o fato é que a construção do Ser é cultural e
histórica, coletiva, assim como a própria identidade. Uma identidade é permeada culturalmente pelo
conjunto de orientações e práticas de uma coletividade, e o Self só muito dificilmente se manifesta
como recusa desse domínio e só em condições favoráveis[1]. Uma
identidade é constituída pelas formas
culturais derivadas do modo específico da produção, quando e na medida em que
foi possível se distanciar da segmentação
individualista do capital. É fato que condições favoráveis na pós-Modernidade
encontraram maiores possibilidades de serem perseguidas pelos movimentos
multiculturais. Mas mesmo que o individualismo desses movimentos tenha
aparecido como estranhamento, o seu
reconhecimento - como ponto de inflexão nas estruturas das sociedades mercantis
modernas e globalizadas - modifica pouco, na prática, a dominação cultural, em
sua forma jurídica, política e educacional, porque falta elaborar melhores
ideias sobre novos projetos de vida coletiva, inseri-los nas melhores ações
defensivas e ofensivas, considerar, por exemplo, a teoria mais realista de
autores como Nancy Fraser (2003)[2] que
recoloca em questão o aspecto da distributividade frente ao reconhecimento e
suas lutas de gênero, raça, orientação sexual, étnicas, religiosas.
Na
visão de Fraser (2001, p.3):
Por outro
lado, não é claro que as lutas para reconhecimento estão servindo para suprir,
“complicar” e enriquecer as lutas por redistribuição igualitária. Pelo
contrário, no contexto de uma ascendência do neoliberalismo, elas podem estar
servindo para atrasá-las. Nesse caso, os recentes ganhos nas políticas
culturais seriam entrelaçados com uma perda trágica. Em vez de chegarem a um
paradigma mais amplo, mais rico que poderia abranger a ambos, redistribuição e
reconhecimento, teríamos conseguido um paradigma truncado por outro – um
economicismo truncado por um culturalismo. Os resultados seriam o caso clássico
de desenvolvimento coeso e desigual: de forma notável os recentes ganhos no
eixo de reconhecimento coincidiriam com o progresso e não perdas totais no eixo
de discriminação.[3]
Um
contundente exemplo desta realidade ambivalente, quer dizer, dos grupos como
portadores ora de rebeldia como de conservadorismo, consequência direta da
bipolaridade e dupla face do sistema capitalista, foi oferecido por Kurz ([Razão sangrenta], 2010,
p. 143) com relação às ações “detestáveis” dos talibãs que destruíram as
estátuas do Buda Gigante no Afeganistão, em março de 2001:
Para os talibãs, é claro, as estátuas de
Buda não significam qualquer objeto de interesse histórico ou estético, mas um
símbolo imediatamente ameaçador e uma mazela atual ocasionada por princípios
hostis a serem ultrapassados. Que se tratou, porém, objetivamente, de uma
simples barbárie, e não de um ato revolucionário ou até mesmo liberador, eis
algo que decorre apenas do fato de os talibãs não representarem nenhum tipo de
movimento transcendente, uma nova sociabilidade ou algum futuro da humanidade,
não passando, antes de mais, de produtos do declínio da própria modernidade:
como todos os fundamentalismos do presente, pseudoreligiosos ou de cunho ético,
são uma regressão tão aterrorizante quanto destrutiva, como se uma parte da
humanidade voltasse a desenvolver, de repente, caudas ou pelos sobre o corpo.
Nas sociedades contemporâneas, dado que o
individualismo e utilitarismo perfazem as representações das mais banais às
mais complexas da reprodução do cotidiano, as manifestações de minorias, grupos
e identidades, reivindicam um reconhecimento que contém estreita relação com o modus vivendi de mercado no qual se
inserem, de acordo com ele. Ao fazerem isto esses movimentos sociais debatem-se
meio a uma circunstância que o humano não pode esquivar-se: se de um lado lhes
move a sensação de descontinuidade,
por outro lado as relações subjacentes e colaterais de suas práticas acomodam-se pela memória, da qual não se
pode fugir totalmente, apenas reinterpretar, conforme os circuitos pós-modernos
monetaristas. Por isso, as discussões em torno dos movimentos sociais na pós-Modernidade
devem ser inseridas nos estudos históricos da cultura ocidental e dos
predicados mercantilistas em tempos de globalização financeira hoje, sem
prejuízo, claro, à sua potencialidade de resistência quando inseridos no
contexto maior da reforma coletiva da sociabilidade.
Mészáros ([Atualidade histórica da ofensiva socialista], 2010, p. 114) resume desta forma a necessidade
de dar conta politicamente dos grupos multiculturais: “Qualquer tentativa de
impor um controle politico direto a tais movimentos, seguindo a tradição
bastante infeliz do passado não tão distante, em vez de ajudar a fortalecer sua
autonomia e sua eficácia, corre os risco de ser contraproducente (por melhores
que sejam as intenções da “politização”)”.
A pós-Modernidade tem revelado movimentos e
presenças de desconstrução com alguma agressividade, de genuinidade
indiscutível. Estes movimentos podem ser, grosso modo, repartidos em dois
grandes grupos, conforme o “ponto de partida”: ou com foco político ou com foco
iminentemente cultural. De certa
forma, todos os movimentos sociais são, ao mesmo tempo, políticos e culturais,
diferenciando-se então a partir da “ciência” ou “conhecimento” prévio escolhido
para suas mobilizações e práticas reivindicatórias. Por exemplo, as
manifestações conhecidas como Zona Autônoma Temporária (TAZ em inglês), são
ostensivamente do tipo resistência política, orientadas por práticas de
liberdade que consideram uma perspectiva próxima ao “anarquismo” ou ao que
alguns autores denominam como “Foucault dos últimos dias”.
Diferentemente, existem movimentos sociais que
partem da teoria cultural e utilizam como fundamento de suas manifestações as
realizações artísticas multiculturais, como o Assume Vivid Astro Focus (AVAF), que segundo uma de suas
fundadoras, a curadora independente Natalie Kovacs: “[...] pelo seu nome avaf
reflete um processo de colaboração, comunicação, investigação, navegação,
educação, elevação e alucinação. A experiência oferece uma oportunidade para
refletir e refratar o interior da arquitetura social, como um meio de
participação ou congregação.” (ARAÚJO, [A questão do Assume Vivid astro focus como expressão da nova linguagem da arte], s/d, paper(b)).
Mas de qualquer forma, o que Slavoj Zizek escreve
serve de advertência e orienta quanto à particularidade de impermanência de
tais movimentos, para os dois casos descritos, dado que este
construir-em-processo é igualmente um consumir-em-processo como essência do
sistema incorporado às suas estratégias de reprodução e dominação. Diz o autor
([Alguém disse totalitarismo?], 2013, p. 85) que:
Durante muito tempo, por exemplo, os libertários
sexuais acreditaram que a repressão sexual monogâmica era necessária para a
sobrevivência do capitalismo – hoje sabemos que os capitalistas não só toleram,
como às vezes incitam e exploram ativamente formas de sexualidade “perversa”,
sem mencionar a satisfação promíscua nos prazeres sexuais. A conclusão a que
devemos chegar não é, no entanto, que
o capitalismo tenha capacidade infindável de integrar, e assim tolher, o vigor
subversivo de todas as demandas particulares – a questão do timing, do “aproveitar o momento”, é
crucial aqui. Uma demanda particular específica, tem, em determinado momento, um poder detonador global; ela
funciona como um substituto metafórico para a revolução global: se insistirmos
nela incondicionalmente, o sistema explodirá; se, no entanto, esperarmos tempo
demais, o curto circuito metafórico entre essa demanda particular e a derrocada
global é dissolvido, e o Sistema pode, com uma satisfação hipócrita e sarcástica,
fazer o gesto do “NÃO ERA ISSO QUE VOCÊ QUERIA? AÍ ESTÁ!”, sem que nada de
realmente radical esteja acontecendo.
Por exemplo, em uma exposição no Tate Liverpool o
AVAF apresentou o projeto Butch queen realness with a twiat in pastel colors
(Rainha sanguinolenta com uma trança em cor pastel); o “movimento” apresentou
“por meio de diversas justaposições: filme, material de vídeo, performances
artísticas, clips de programas
musicais dos anos 70 e 80 e suas imagens. A preocupação do avaf era não
simplesmente mostrar imagens que se referissem ao Psicodélico, mas explorar e
estimular as experiências nos frequentadores da exposição.” (ARAÚJO, s/d, paper(b)). Pode-se ver aqui a
preocupação em evitar uma assimilação imediata de algo que seja tangível, fixo,
definitivo, alçando a experimentação dos performers
ao sensível experimentado dos espectadores, uma relação sempre nova e mutável.
Esta mutabilidade relacional do artístico utilizando as várias possibilidades
de questionar o já dado e esquadrinhado tanto do ponto de vista do erudito como
do popular, evita a produção-consumo e sua apropriação no ciclo de reprodução
das mercadorias – cada experiência é única.
No dia 14 de janeiro de 2019, após ser impedido
pelas autoridades de apresentar a performance
Literatura Expressa, sobre tortura a mulheres, o coletivo cultural És uma
Maluca, da Zona Norte do Rio de Janeiro, decidiu ir para a rua efetuar uma performance de repúdio. Quando escolheu
uma atriz para se deitar perto de uma “boca de lobo” no meio fio, e jogar sobre
ela uma quantidade significativa de baratas, que subiam por sobre suas pernas e
sexo, o coletivo não estava apenas efetuando uma denúncia contra a censura, mas
igualmente contra o poder, desconstruindo um “quadro” de normalidade – deve-se
esconder o corpo de uma mulher, principalmente em via pública, não relatar o
fetiche ocidental pelo corpo da mulher, e as patologias que torturadores
desenvolvem quando têm oportunidade; usando o escatológico (as baratas por cima
do corpo seminu de uma atriz) obrigou-se a outra experiência sensorial fora dos
limites esperados pelas autoridades e pelo público[4].
Não há como negar que o conjunto de tais movimentos,
no enfrentamento com o status quo
sistêmico neoliberal, revela a descrença no projeto iluminista inconcluso,
tanto do ponto de vista do mercado como do logos.
A luta pelo reconhecimento de identidades, que se baseia, segundo Charles Taylor, no universalismo dos direitos humanos, não pode, contudo, se
desvincular da percepção maior que o reconhecimento e o patrimônio cultural
devem estar ao alcance de todos – mais: que é resultado da herança histórica de
muitas gerações anteriores no fazer e saber coletivos.
O sistema de mercado em tempos de pós-Modernidade
não se extingue, modificam-se as formas, virtualizam-se as relações e perdem-se
importantes referenciais teóricos e culturais, a hiperbolização da reprodução
tecnológica avançada e as fusões por conta das necessidades de acumulação
concorrencial não se pautam por objetivos coletivos de distributividade:
Existe
uma forma de política de igual respeito, guardada religiosamente num
liberalismo de direitos, que é hostil à diferença, porque (a) insiste na
aplicação, sem qualquer exceção, uniforme das regras que definem esses
direitos, e porque (b) desconfia dos objetivos colectivos. É evidente que isto
não significa que este modelo procure abolir as diferenças culturais. Afirmá-lo
seria uma acusação absurda. Mas digo que é hostil à diferença, porque não pode
ajustar-se àquilo que os membros das sociedades distintas aspiram realmente: a
sobrevivência. Trata-se de (b) um objetivo colectivo, que (a) irá, e quase
inevitável, necessitar de algumas variações nos tipos de leis que consideramos
admissíveis de um contexto cultural para outro, como no caso do Quebeque
demonstra de forma clara. ([Multiculturalismo], TAYLOR, 1994, p. 81).
Destarte
o reconhecimento inafastável da representatividade de grupos minoritários como
característica da vida social contemporânea, o fato é que tem se mostrado muito
difícil a penetração desses movimentos em termos de resultados que sejam
duradouros do ponto de vista tanto das minorias reivindicatórias como,
principalmente, em relação ao bem estar global e de amplas camadas de
populações, que se apresentam como realmente as maiorias mais excluídas e mais
empobrecidas no mundo hoje. Ao que tudo indica os governos, principalmente
entre os mais desenvolvidos econômica e tecnologicamente, pouco se sentem
motivados em promover mudanças substanciais para atender às necessidades
humanas da maior parte da população do planeta, seus direitos fundamentais, sua
dignidade, além do total desprezo pelas questões ecológicas e de clima que
afetam a todos.
Assim,
observa-se que quando em algum lugar do planeta parece que alguma minoria
disruptiva ou grupo contestatário consegue alcançar uma vitória diante da
barbárie mercantilista e financeira global, suas manifestações costumam ser
forçadamente “encurtadas” (violentamente) e desconsideradas (pelas ações fake multimídias) na ordem social
global, para que pouco impacto exerçam sobre as políticas públicas e
legislações dos Estados e organizações (públicas e privadas). Ou pior, de forma
bastante maquineista, as refutações e resistências são controladas espaçadamente de forma a retardar, em benefício do capital e sua financeirização, as
mudanças que ele não pode refutar, não pode subjugar sem se alterar e subjugar
a si mesmo (questões ambientais e ecológicas, questões sobre imigração e
deslocamentos em massa, o empobrecimento crescente das populações, a
concentração crescente de riqueza em poucos proprietários, a “flexibilização”
dos Estados-nacionais em socorrer o sistema, notadamente os cartéis
financeiros, a eminência de guerras globais por conquista de mercados globais).
Parte
deste “desperdício” intelectual - e da capacidade de mobilização dos indivíduos
e das suas intencionalidades - está ligada ao fato de existir, não por acaso,
um esvaziamento da importância, na pós-Modernidade, dos discursos ideológicos e
das grandes narrativas, principalmente quanto às visões de mundo e projetos
coletivos de sociedade. (As tautologias não são descabidas no tempo que
vivemos!). Não se pode, por outro lado, pensar aqui em um discurso de “alto
nível” como em Habermas, superior, acadêmico, intelectualista acima dos
agentes sociais e dos movimentos específicos pelo reconhecimento da diferença,
mas a necessidade de retornar à reflexão sobre o que consiste o homem enquanto
Ser social, como se constitui por relações sociais determinadas e históricas,
focalizar que a formação de sua identidade é constituída pelo desenvolvimento
cultural social – portanto, está na
história, é parte de uma memória que
constitui uma determinada historiografia coletiva -, voltar a pensar que “o
desenvolvimento orgânico da totalidade” antecede às suas partes e as ações de
suas partes ([Política], ARISTÓTELES, 1985).
A
“liquidez” da pós-Modernidade, seja
qual for o lado do prisma por onde esgueiremos nosso olhar, está comprovada pela
própria “teoria líquida”. Levamos uma “vida líquida” desde o momento em que
esquecemos que na grande arte histórica humana: “O domínio da natureza e o
domínio da conduta estão reciprocamente relacionados, como a transformação da
natureza pelo homem implica também a transformação de sua própria natureza.” ([Obras Escogidas], VYGOTSKI,
1995, p. 94) [5].
O
projeto exitoso do liberalismo de mercado não foi “líquido”, como não o é até hoje: seja qual for a
sua explicação e a teorização sobre suas práticas, onde grassa estruturalmente
a indiferença - o sujeito isolado, o
sujeito de direito (não a dignidade humana), o contrato, o negócio jurídico, a necessidade preventiva que se abate
sobre os disruptivos, a valorização dos bens[6] –
nada pode ir muito rápida e tenazmente contra o poder econômico-político e sua
reprodução mercantil. Mas nada disso configura a “liquidez” (subst. fem., Dicionário
Houaiss, §4 Rubrica: Economia) da sociedade contemporânea, a não ser que
tomemos o verbete como “sale”! Se não o percebemos é porque o mundo funciona
pela “hegemonia cultural” historiográfica oficial ideologizada:
É assim que a ideologia opera na nossa
era de cinismo: não é preciso “crer” nela. Ninguém leva a democracia ou a
justiça a sério, todos nós estamos cientes de como essas instâncias são
corruptas, mas mesmo assim nós participamos delas – em outras palavras, nós
demonstramos nossa crença neles – porque assumimos que elas funcionam mesmo que
nós não acreditemos nelas. O mesmo vale para a religião: nós “realmente cremos”
nelas, apenas seguimos (alguns dos) rituais e costumes religiosos como parte do
respeito pelo “estilo de vida” da comunidade à qual pertencemos (judeus não‑crentes obedecendo as regras da
alimentação kosher “em respeito à tradição”, por exemplo). “No fundo, eu não
acredito nisso, é só parte de minha cultura” parece ser o modo predominante da
crença deslocada característica de nossos tempos. É por isso que dispensamos os
crentes fundamentalistas como “bárbaros” ou “primitivos”, como anticulturais,
como uma ameaça à cultura: eles ousam levar a sério suas crenças. ([A atualidade de Marx], ZIZEK, 2018,
p. 4-5).
É
imperioso, entretanto, afirmar que a defesa do coletivo, da sociedade, na vida
e constituição do homem não impede de
o mesmo se constituir como uma subjetividade[7]
consistente ou personalidade dentro da totalidade social, não impede de
constituir “seus próprios aspectos peculiares que o enquadram em um ou outro
tipo determinado.” (VYGOTSKI, 1995, p. 328).
A
historiografia coletiva não deve ser vista como a impossibilidade do Self, mas como a necessária prevenção memorial,
para que não se reproduzam e repitam os fatos mais caóticos e bárbaros da
Modernidade. Também a partir deles pode-se elaborar um discurso a favor de
práticas promissoras de uma nova liberdade e vida boa para todos. É
possivelmente a equivalência de demandas e necessidades de reconhecimento que
podem objetivar a união de forças em prol de mudanças sociais substanciais,
posição que deve se coadunar com a ideia do protagonismo da classe trabalhadora
e de sua consciência, a “consciência para si” como tradicionalmente foi
teorizada[8].
Ao invés de um grande antagonismo os
pensadores contemporâneos pós-Estruturalistas (John Holloway; Antonio
Negri; István Mészáros) colocam a possibilidade de revolução na
somatória de esforços e lutas críticas, como “negação da negação”, dos direitos
negados de muitos, que com a subordinação midiática e mercadológica deixam de
fruir e usufruir de dignidade, liberdade e expressividade.
Mais
uma vez seguimos os passos de Zizek (2018, p. 3):
(...) precisamente
através de uma série de equivalências entre múltiplas demandas, sempre
radicalmente contingentes e dependentes de um conjunto específico (singular,
até) de circunstâncias, que atinge‑se efetivamente a “massa crítica”
necessária. Uma revolução nunca ocorre quando todos os antagonismos se
reduzirem ao grande antagonismo, mas quando eles combinam sinergicamente
suas forças. O ponto não é apenas que a revolução perdeu o bonde da História e
deixou de seguir as suas leis imanentes, pois na verdade não há História, pois
a história é um processo contingente, aberto.
Da mesma forma que o saber e o fazer (poder-fazer)
dependem dramaticamente do poder-sobre
que se metamorfoseou (que aparentemente
“desaparece” do comando, mas depende daquele fazer), as narrativas e a memória (que
se “esconde” por trás delas) não podem existir uma sem a outra. Um falso
problema se coloca quando se pergunta como historiografar com ubiquidade entre
o que se arrasta do passado para o presente, pois a problemática parece ser a
escolha do que deve constituir uma narrativa que una a dimensionalidade sempre
presente do poder com a sua crítica. O que fará a diferença não é tanto a
quantidade de movimentos culturais ou quais as suas identidades a par da
capacidade do sistema de mercado o “entesourar”, mas de qual perspectiva de
origem se parte e onde se pretende chegar. Por aí se pode chegar a um
contrapoder libertador do humano. A forma de mercado no modo capitalista de
produção exige essas adaptações nas teorias e práticas, haja vista que ele é a
desconstrução e construção permanente de si mesmo até a superação final de sua
acumulação.
Em decorrência da necessidade de comando
sobre o poder-fazer em relação à
extrema divisão do trabalho fabril, seu particionamento e simplificação, o
poder se “dilui” como que por mágica nos processos de manufatura. Esta
subsunção absoluta exige uma organização dos planejadores para evitarem a
anarquia da produção, e a esta voz de comando mais cresce a resistência dos trabalhadores que veem
seu fazer, primeiro reduzido a uma quase desqualificação, depois ao achatamento
atroz dos salários e finalmente ao próprio desemprego. O processo de comando e
subjugação do trabalho assalariado, assim, se dá por dois motivos: a
necessidade inexorável de produção de mais valor, e a necessidade concomitante
de subordinação dos trabalhadores aos planejadores e executores, que são uma
especialidade “preposta” mais específica da própria força de trabalho!
A forma mais adequada de vitalizar a manufatura é levar à hiperbolização
especializada das atividades fabris, com toda a gestão do tempo de trabalho
voltada para a produtividade dos trabalhadores, acompanhada da troca desses
mesmos trabalhadores por máquinas e tecnologias automatizadas. Quanto mais,
porém, esses processos de reengenharia da produção e produtividade, e
investimentos em capital constante, mais as condições dos trabalhadores se
deterioram e desqualificam até o ponto de estes serem totalmente desnecessários.
Marx o afirmou nos seguintes termos ([O capital], 2015, p. 406, grifos nossos):
Primeiramente, o motivo que impulsiona e a
finalidade que determina o processo de produção capitalista é a maior
autovalorização possível do capital, isto é, a maior produção possível de
mais-valor e, portanto, a máxima exploração possível da força de trabalho pelo
capitalista. Conforme a massa dos trabalhadores simultaneamente ocupados
aumenta, aumenta também sua resistência
e, com ela, a pressão do capital para superá-la. O comando do capitalista não é
apenas uma função específica, proveniente da natureza do processo social de
trabalho e, portanto, peculiar a esse processo, mas, ao mesmo tempo, uma função
de exploração de um processo social de trabalho, sendo, por isso, determinada
pelo antagonismo inevitável entre o explorador e a matéria-prima de sua exploração.
Da mesma forma, com o volume dos meios de produção que se apresentam ao
trabalhador assalariado como propriedade alheia aumenta também a necessidade do
controle sobre sua utilização adequada.
Importante, pois, considerar que a “resistência” dos trabalhadores de
chão-de-fábrica era consequência quase
que natural dos processos de desenvolvimento da acumulação de capital, e
que seu aumento é previsível tanto quanto o é o incremento das ciências e
tecnologias de automatização nos complexos fabris. Mas, não estando mais nas
fábricas, os trabalhadores arremessados para fora delas, desqualificados e
vítimas do desemprego estrutural, só tendem a aumentar o descontentamento, sua
aglutinação e organização nos diversos grupos que canalizam essas insatisfações.
O funcionamento das fábricas tinha como primeiro efeito a cooperação dos
assalariados que o capital emprega simultaneamente. Sem trabalho nas fábricas a
cooperação procura novos lugares e novas formas de resistência dos indivíduos
desempregados - eles vão procurar os grupos organizados autonomamente da
sociedade. Fora poucas instituições, como sindicatos e algumas associações de
desempregados, aposentados, direitos humanos, pouco se pode fazer pela
requalificação e reemprego, quando eles não existem. Os movimentos sociais mais
ofensivos, como os sem moradia ou sem terra, ou os que integram as expectativas
multiculturais, estão interessados em cooptar
essas pessoas para seus projetos de reconhecimento.
Desta forma, mais do que o embasamento nos direitos humanos e no mero
formalismo jurídico do constitucionalismo neoliberal, como acontece nas teorias
mais difundidas, por exemplo, em Carlos Wolkmer[9],
então os trabalhadores desempregados e sem expectativas podem encontrar, e
assim o fazem, outras motivações pessoais,
objetivas ou mais subjetivas, para entrarem na “proteção” desses grupos, o que
faz com que eles cresçam em importância e quantidade de associados e adeptos.
Isto deveria ser considerado positivamente pelas teorias, pelos líderes políticos
e pelas políticas públicas.
[1] “Nos complexos do poder sobre a
subjetividade vinculados a aparatos modernos de regulação, “o social” delineou
a topografia de nossa alma. Somos governados através da infiltração delicada e
minuciosa dos sonhos das autoridades e dos entusiasmos dos experts dentro de
nossas realidades, nossos desejos e nossas visões de liberdade.” ([Inventando nossos selfs], ROSE, 2011,
p. 115).
[2] FRASER,
Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution Or
Recognition?: A Political-philosophical Exchange. Nova
York/Londres: Verso, 2003.
[3] “On the other hand, it is by
no means clear that scruggles for recognition are serving to supplernent,
complicate, and enrich struggles for egalitarian redistribu!ion. Rather, in the
context of an ascendan! neoliberalism, they may be serving to displace the
latter. ln that case, the recent gains in political culture would be entwined
with a tragjc loss. lnstead of arriving at a broader. richer paradigm that
could encompass boch redistribution and recogni¡ion, we would have craded one
truncated paradigrn for another a truncated economism for a cruncaced
culEuralism. The results would be a classic case of combined and uneven
development: the remarkable recente gains on the axis of recognition would
coincide with stalled progress if not outright losses on che axis of
discributlon”. (FRASER, Nancy. Social
Justice in the Knowledge Society: Redistribution, Recognition, and
Participation, 2001. Disponível
em: www.wissensgesellschtiaft.org. Acesso em: 23 de janeiro de 2019).
[4]
G1. Performance cancelada pelo Governo do
RJ é realizada no meio da rua do Centro. Em g1.globo.com, 14 de janeiro de
2019. Disponível em:
https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/01/14/performance-cancelada-pelo-governo-do-rj-e-realizada-no-meio-de-rua-do-centr-.ghtml.
Acesso em: 14 de janeiro de 2019.
[5] “El dominio de la naturaleza y el domínio de la conduta están
recíprocamente relacionados, como la transformación de la naturaleza por el
hombre implica también la transformación de su popria naturaliza.”
(VYGOTSKI, 1995, p. 94).
[6] Segundo dados
oficiais, o ano de 2018 terminou com 62,6 milhões de brasileiros inadimplentes,
segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) (UOL ECONOMIA. Cerca de 62,6
milhões de brasileiros fecharam 2018 com o nome sujo, SPC, 15 de janeiro de
2019. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/01/15/dividas-em-atraso-calote-spc-brasil-2018.htm.
Acesso em: 17 de fevereiro de 2019).
[7] Considera-se subjetivismo como conjunto de interesses
equivalentes que podem levar à reivindicação em grupo, ainda que cada pessoa
possua a sua subjetividade que não se
reduz às práticas e estratégias do grupo, ou mesmo podem estar algo dissonante
com a fala deste.
[8] Inicialmente os operários estão
juntos no empreendimento fabril e cooperam entre si como parte dum organismo
produtivo, sem, contudo, relacionarem objetivamente sua condição de classe
(cooperação simples). Mas imediatamente percebem que a sua condição frente ao
capital é comum quanto à sua subordinação e exploração – esta consciência passa
a ser compartilhada e estratégias de luta podem ser articuladas tanto
internamente como externamente. No primeiro caso diz-se que existe uma consciência em si (individual); no
segundo caso passa a existir uma consciência
para si (de classe).
[9] “Nessa perspectiva, o pluralismo
comprometido com a alteridade e com a diversidade cultural projeta-se como
instrumento contra-hegemônico, porquanto mobiliza concretamente a relação mais
direta entre novos sujeitos sociais e poder institucional, favorecendo a
radicalização de um processo comunitário participativo, definindo mecanismos
plurais de exercício democrático e viabilizando cenários de reconhecimento e de
afirmação de Direitos Humanos.” ([Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade], WOLKMER, 2006, p. 117).
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