Trabalho e Saúde Mental no Neoliberalismo
Desenvolvi minha explanação em três pontos que considero fundamentais:
1. O trabalho não era o que entendemos hoje por tal e com as virtudes que
acreditamos o mesmo possuir - existe uma história do trabalho.
Nas grandes
civilizações o trabalho era nitidamente diferenciado do não trabalho ou
ociosidade. Acho que ainda o é!
Desde as mais remotas sociedades esta divisão
conferia status e poder aos ociosos que podiam se dedicar às atividades místicas
e planejar a sobrevivência material na natureza; e em alguns casos também as
atividades ligadas à guerra - nas sociedades primevas os conflitos armados são
atividades políticas.
Na antiguidade, como na Grécia, o trabalho nobre ou
superior era dedicado à filosofia, política, justiça, às artes e aos jogos
(jogos físicos e intelectuais como a poesia e a representação teatral). Os
trabalhos menos nobres eram os dedicados à economia - trabalho na terra e no lar
efetuado por estrangeiros, escravos e em alguns casos atribuídos às mulheres.
Isto não muda substancialmente em Roma, a não ser pelo fato do exército
legionário e as guerras de expansão do Império serem alçadas a nobres após a Lei
das XII Tábuas no séc. V a.C.
Na Idade Média, reis, príncipes, clero e alguns
poucos clientes viviam na ociosidade, enquanto mais de 90% eram servos da gleba
ou trabalhadores braçais, com alguns artesãos. A grande atividade dos nobres era
a guerra, dos membros do clero o pastoreio e a vigilância da obediência às
orientações da igreja.
Um parêntesis eu preciso fazer para uma
observação rápida, mas importante: já perceberam que aqui quando uso a palavra
'trabalho', estou a pensar em atividades econômicas básicas - trabalho aqui são
as atividades necessárias a produzir os bens e víveres necessários à
sobrevivência material dos homens. Por outro lado, quando falo de 'ociosidade'
não estou falando de inatividade, não fazer nada, que é o que as pessoas pensam
de forma comum, como vagabundagem, mas de um tipo de atividade que não objetiva
de forma imediata a produção de bens relacionados diretamente com a
sobrevivência material - é o caso das artes, da filosofia, da religião e da
política (Cf. Aristóteles, Hegel, Marx, Spinoza).
Vamos continuar: O trabalho
no séc. XIX, já ao tempo do pleno desenvolvimento do trabalho industrial,
passará por três fases: emprego de homens, depois de mulheres e crianças, e
novamente de homens (mulheres em casa).
Tudo começa com o homem na fábrica e
a mulher em casa. Mas as primeiras crises e a ânsia de mais lucro com a
diminuição de salários, devido também à resistência dos operários às condições
de trabalho, as fábricas vão empregar mulheres e crianças, uma mão de obra mais
barata e supostamente 'dócil'.
Esta segunda fase foi um desastre social:
homens inativos que ficavam perambulando sem o que fazer, pois não ficavam em
casa e não iam cuidar dos filhos, foram capturados pelos 'vícios' como se falava
na época: pela bebida, roubo, homicídio, negócios ilícitos, prostituição e
doenças.
Então veio a terceira fase, semelhante à primeira, mas agora
planejada para a máxima produtividade industrial e ganhos do capital. Na
terceira fase a mulher não está fora da produção, mas o seu trabalho complementa
e proporciona a exploração da mão de obra fabril, pois são suas atividades que
possibilitam as condições de melhor rentabilidade na fábrica por parte dos
operários, além, é claro, de gerar os futuros operários.
Infelizmente, algo
assim ainda é bastante presente na nossa divisão social do trabalho. E isto,
acho, é o mesmo se se inverte os papeis de gênero no trabalho hoje (Cf. Roswitha
Scholz, este é o conceito de 'dissociação' (O valor é o homem)). Como vocês veem
podemos facilmente nos identificar hoje, quase 200 anos depois, como
permanecendo nesta terceira fase.
Acho que ainda é o mesmo do ponto de vista
da produção e acumulação de capital: um dos cônjuges desempenha a função de
assalariado e o outro cuida das atividades de 'retaguarda' - inverte-se o papel
do marido e da esposa. A sociedade do séc. XXI o permite facilmente. A
exploração ontem é hoje a precarização do Uber ou Ifood! Mas com tecnologia!
A Rev. Francesa (1789) ao apregoar a meritocracia para se opor ao regime aristocrático de
favores, favoreceu a ideia do trabalho que dignifica e liberta, uma ideia
bastante protestante e que depois a burguesia toma como ícone do regime do
capital.
A ideia que o trabalho liberta (como estava escrito no campo de
concentração nazista!), que dignifica o homem, que afasta dele o mal, que é
obrigação moral e um comportamento adequado, ao contrário da 'vagabundagem', foi
se cristalizando na cultura ocidental a partir do séc. XV e ao longo de todo
Renascimento, e tem o objetivo de preparar o homem para o advento da Rev
Industrial (1798), da produção fabril 'confinada' e 'departamentalizada' da produção
mercantil, da produção de mercadorias, da instauração do mercado concorrencial
sob hegemonia da classe burguesa.
Por outro lado, o conceito de trabalho
como exclusivamente material e econômico, possibilita a perseguição,
enclausuramento e barateamento da mão de obra, e controle policial-estatal, e
social, dos que não aderirem a este mundo do trabalho, os tidos como vagabundos
(Michel Foucault (Vigiar e Punir)).
A vida moderna possibilita a troca e
diversidade de papeis sociais e das instituições tradicionais, como o de
mulheres e homens, e da família. Os operários e suas mulheres submetidos ao
trabalho fabril não podiam sequer pensar em algo diferente do que a sociedade
burguesa definia e sustentava como ideal e aceitável. Aliás, não por acaso, o
burguês do séc. XIX é tão conservador: ele não pode ser na família diferente do
que seus negócios capitalistas o exigem na fábrica (contra o qual se insurgem os
jovens seus filhos, em um movimento culturalmente conhecido como Romantismo, que
antecipa no final do séc. XIX, o Modernismo).
Eu acho que precisamos refletir
isto: as conquistas dos chamados direitos civis, dos direitos humanos, dos
movimentos por reconhecimento, nos fizeram mais humanos, saudáveis e felizes?
Nossa adaptação ao mundo tecnológico contemporâneo é algo substancialmente
inovativo e pensado para o bem viver de todas e todos, ou apenas seria uma
contínua adaptação ao regime de acumulação privada mercantilista (ainda no
processo de expansão do regime mercantil)? Podemos refletir sobre isto ficando
em nosso exemplo da troca dos papeis, quanto às atividades dos parceiros
familiares, a precarização do trabalho e das ondas gigantes e incontornáveis do
desemprego, e o que estamos aceitando negociar e nos sujeitar como pessoas e
como trabalhadores?!
2. O trabalho no liberalismo é capitalismo. Conhecemos bem a sociedade de
livre mercado - as características da fábrica se espalham a toda a vida social:
especialização, departamentalização, segmentação voltada para a máxima
produtividade na produção de mercado. Depois vem os 'colarinhos brancos', os
gestores, no começo o proprietário, depois a sua família, finalmente os
gerentes. A par disso devem ser eliminadas as legislações protecionistas do
trabalhador e privatizar os serviços públicos para que as pessoas tenham que
contratar os serviços nos bancos e demais empresas privadas - desde o final dos
anos 80 e virada do milênio assistimos à desregulamentação do papel do Estado e
à privatização de todos os seus serviços públicos. Isto é assim para manter o
mercado global na manutenção da reprodução do capital.
Acontece que não é
isto que gera lucro, mas a exploração, mais valor retirado dos trabalhadores
assalariados (Marx, cap1 d'O Capital; David Harvey, Os limites do capital). E
isto que é a crise do capital sempre: como retirar mais valor dos assalariados
se eles se tornam obsoletos para as tecnologias de automação e
informatização?
Mas gostaria de destacar aqui hoje essa coisa da forma de
trabalho industrial no sistema do capital, o particionamento, segmentação do
trabalho, a redução numérica do humano, a perda da visão de totalidade, a falta
de tempo para a ociosidade criativa. Particionado na fabricação e reduzido na
especialização setorizada, submetido a uma gerência desumana e à máxima
eficiência ditada pelo custo benefício das tecnologias e máquinas, o que é o
trabalhador assalariado, esteja ele onde estiver, seja qual for o seu
ofício?
Ele é um ser alienado, não sabe o que faz e para que faz, não pode
saber além do que lhe está dado de imediato, não pode criar além disso. Ele
perde sua identidade própria, ele perde a visão sistêmica da totalidade, ele
não distingue as coisas, os lugares, as relações, as pessoas, o afeto, o gozo da
vida, porque sendo tudo e todos reduzidos a algo bastante divisível, tudo é
diferente numericamente, mas igual em sua pequenez, em seu particionamento, sem
grande importância. O conceito de Unidimensalidade de Herbert Marcuse explica
bem o que somos na sociedade industrial (A ideologia da sociedade industrial).
Alienação! Queria aqui chamar a atenção para isso, porque tem a ver com
minha sugestão de falar para vocês, com minha hipótese/ tese em relação à saúde
das pessoas, principalmente a saúde espiritual ou mental. E com isso me
encaminho para o final.
3. Nas sociedades industriais modernas, devido à premência da lógica do
lucro e acumulação privada da riqueza, o que só pode acontecer pelo 'consumismo'
desenfreado e irracional das coisas, a vida se torna um cálculo permanente, as
decisões humanas são custo-benefício, o afeto se vende e a felicidade se compra
como na prateleira do supermercado. O homem ele próprio é um número usado e
medido de muitas formas (John Holloway (Mudar o mundo sem tomar o
poder)).
Contudo o homem é uno com o Universo, tudo é uno já nos dizia
Giordano Bruno em 1548: somos um sistema só e tudo está conectado. O homem só é
o homem porque cria, concebe, planeja e faz. Fazer por fazer não é humano e não
nos faz mais humanos, ao contrário. O consumo idem. E aqui espero ter
demonstrado ao menos para nossa reflexão o que é o fazer no mundo do trabalho...
O capital na sua espiral de acumulação consegue a proeza de dividir tudo ao
nível de seus elementos mais simples, reduzir o assalariado ao fazer banal e
mais elementar, porque isso é próprio a gerar mais valor, diminuindo os salários
sempre, quanto muito à cesta básica, só para atender ao consumo das mercadorias.
Ainda o faz assim para as massas de trabalhadoras e trabalhadores, mas com a
ciência e a tecnologia mais avançada, ele cria desemprego, especula, especula
com a extrema produtividade dos que estão empregados, precariza o trabalho, mas
joga todas e todos para fora de seus próprios mecanismos. Paralelamente, o que
produz a redução do humano, que produz a miséria e a barbárie de milhões, pode
vir a libertar o homem da doença e do holocausto (já está em curso a escolha dos
superiores e a eliminação dos demais).
Então eu concluo: para os que estão
tentando sobreviver neste mundo do trabalho mercantil, pelo regime
individualista de distribuição de riqueza, só pode lhes advir um existir 'sem
vida'! Aqui e ali, passa a ser possível começar a experimentar uma outra vida
para que um dia a humanidade volte a sê-lo, a existência seja afinal superior a
simplesmente viver (Heidegger (Ser e tempo)).
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