Precarização do Trabalho Parte 3: Ócio estético valioso (LEIA TAMBÉM EM FORENSE/GEN)
A produção material, onde se insere todo o trabalho
econômico, em todas as épocas, entra em processo de transformação inevitável
quando as forças produtivas, como as máquinas, os autômatos e as ciências da
natureza e de comunicação, exigem em sua produtividade novas relações entre os
fazedores (igualmente entre si) e os gestores, entre eles e os donos do
capital. Estas novas relações e dinâmicas entre trabalhadores, planejadores e
possuidores acabam por exigir às demais formas culturais e ideológicas outros
arranjos e tomadas de poder de comando disputadas como novos espaços a serem
tomados nos circuitos do movimento social total.
As análises derivacionistas[1]
parecem insuficientes por vezes, se quedam tendencialmente diante do que julgam
ser a impossibilidade de transformação dos sistemas de livre mercado, tanto do
ponto de vista da dialética social
como do ponto de vista da dinâmica da economia, em si mesma submetida às leis
de mercado, que revolucionam junto todas as demais formas sociais. Ou dito de
outra forma, a critica do sistema capitalista deve avançar como crítica do
valor, como Marx (2011, p. 587) o explicitou objetivamente: “A troca de
trabalho vivo por trabalho objetivado [trabalho morto; máquinas e ciência
aplicada à produção], i.e., o pôr do trabalho social na forma de oposição entre
capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada
no valor”.
Nessa transformação, o que aparece como sustentação
da produção e da riqueza não é mais o trabalho humano imediato e nem o tempo de
trabalho excedente não remunerado, mas a apropriação da sua força produtiva
através da construção e utilização social da ciência e tecnologia corporificadas em avançados métodos e
equipamentos produtivos – as máquinas, a química industrial e os modernos
mecanismos de comunicação à distância, são
como a transformação do corpo do trabalhador em um corpo social, por
conseguinte, o ápice do desenvolvimento do indivíduo social. Quanto mais se
desenvolvem o estado da arte e a ciência, e se cristalizam nas máquinas e nos
autômatos, nos sistemas automatizados e na apropriação industrial dos processos
químicos e físicos da natureza, mais o
homem é um homem genérico livre da economia, ainda que mais dependente dela
tal liberdade. Quanto mais desenvolvida a produção automatizada e cientifica,
mais o indivíduo é um indivíduo social, produto do conhecimento de muitas
gerações anteriores, e, igualmente, portanto, mais a produção da riqueza se
socializa e mais contraditoriamente se encarna a sua apropriação de forma
privada[2].
A partir daqui mais o problema social de
distributividade é um problema de economia política, quer dizer, da
determinação e planejamento de como essa riqueza crescente e libertadora será
benéfica para toda a sociedade. “O trabalho
excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza
geral, assim como o não trabalho dos
poucos deixa de ser condição do desenvolvimento das forças gerais do
cérebro humana” (MARX, 2011, p.588). Nesse momento, esvai-se a produção de
valores de troca (a não ser pelo fato que a ciência ainda comporta, nitidamente, por um período, trabalho
humano expropriado anteriormente), e de forma acelerada a produção material
mais imediata se despe da brutalidade e precariedade anteriores. Está-se no
limiar do fim da contradição entre o poder-fazer
e o poder-sobre, e da contradição
mercantil entre sua necessidade de reinvestimento em capital fixo e extração de
mais valor do capital circulante (variável ou mão de obra). E agora, o tempo
excedente, o tempo de trabalho disponível, que deixa de ser apenas condensado
nas atividades de muitos poucos, passa a orientar o saber para o fazer de
grandes contingentes de indivíduos, em grupos ou individualmente como já
acontece hoje: “Dá-se o livre desenvolvimento das individualidades e, em
consequência, a redução do tempo de trabalho necessário não para pôr trabalho
excedente, mas para a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo
a um mínimo, que corresponde então à forma artística, científica etc. dos
indivíduos por meio do tempo liberado e dos meios criados por todos eles.”
(MARX, 2011, p. 588).
Eis que da luta incessante pela sobrevivência
material imediata desde sempre, a humanidade se aproxima, afinal, do grande
objetivo de trabalhar, acabar, por assim dizer, com o próprio trabalho
compulsório. E, então, cessa a autarquia dos que sempre usaram o poder e
fizeram da política não o bem viver da sociedade, mas forma de “não trabalho”,
explorando, por decorrência, e outras vilidades, a força de trabalho das massas
populares, dos escravos, dos servos, dos aprendizes, assalariadas e
assalariados. Cessa, pois, a oposição, do ponto de vista da economia burguesa,
entre o trabalho imediato e o tempo livre, e as demais oposições abstratas para
o saber e o fazer, o poder-fazer e o poder-sobre. Daí que o que está em jogo
não é simplesmente uma distribuição
superior da riqueza social geral, mas a superação do modo de produção
mercantilista nos termos fundados para o regime de acumulação “superprivada” de
dinheiro.
Daqui vem a mais essencial tese de nosso trabalho, o
surgimento de um outro sujeito, quer
dizer uma outra forma social pelo fazer como ociosidade criativa, o “ócio
estético valioso”[3]
expresso pela Arte, assim explicado por Marx (2011, p. 594): “O tempo livre,
que é tanto tempo de ócio quanto tempo para atividades mais elevadas,
naturalmente transformou o seu possuidor em outro sujeito, e é inclusive como
este outro sujeito que ele então ingressa no processo de produção imediato”.
[1] Pode-se dizer
que os grupos de autores pós-estruturalistas marxianos se dividem em dois
grandes grupos. As concepções à direita
de Joachim Hirsch e Bob Jessop resgatam uma certa ideia de “luta de classes”
como determinante das relações sociais, como se por conta dessa luta seja
possível ir “modulando” essas relações sociais a ponto de modificar as demais
formas sociais política e jurídica. Na impossibilidade de contar com os grandes
movimentos revolucionários de massas, este derivacionismo desloca a luta de
classes para a “guerrilha” de grupos, aqui e ali, minorias e marcadores de
desigualdade, contestações mais ou menos acintosas dentro das possibilidades do
modo de regulação estatal pós-fordista. Acho que mais ou menos neste sentido se
enquadram autores contemporâneos como Antonio Negri (as “multidões”
paupérrimas, desassistidas, estrangeiras), ou John Holloway (as “massas”
excluídas, desprezadas, indígenas). As concepções derivacionistas à esquerda, são derivações via “crítica
do valor” que alimentaram mais fortemente a ideia de “lei geral do valor” na
teoria marxiana deste trabalho. Autores como Robert Kurz e Anselm Jappe vão
partir da forma mercadoria, e, portanto, afirmar que a luta de classes não leva
à superação do capitalismo nas sociedades de livre mercado. Baseando-se na
experiência do “socialismo real” e nas modernas modulações do neocapitalismo
global, estes autores afirmam que as posições com relação ao papel das lutas dos
trabalhadores e minorias levam, no limite, à formação de capitalismos de Estado,
e não à superação das leis do valor e de mercado.
[2] Marx chega a afirmar em uma
intuição excepcional que “Do ponto de vista do processo de produção imediato, a
poupança de tempo de trabalho pode ser considerada como produção de capital fixo; este capital fixo sendo o
próprio ser humano” (2011, p. 594), isto é, que todo o trabalho humano material
imediato e necessário à produção, está contido, pelo aporte histórico e contínuo
do conhecimento social das artes e das ciências, nas tecnociências usadas pela
produção no atual estágio de desenvolvimento civilizatório. (MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo:Boitempo, 2011).
[3] Título do livro da professora espanhola
Maria Luisa Amigo Fernandéz de Arroyabe, edições SESC, 2018.
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