Considerações acerca do decrescimento e pós-extrativismo
I – Considerações acerca do "decrescimento" e "pós-extrativismo" segundo a dialética histórica além do empreendimento capitalista/
1 – Crescimento e desenvolvimento
não são iguais: pode existir crescimento (PIB) sem desenvolvimento (Bem-estar
social para a população), mas é quase impossível pensar desenvolvimento sem crescimento;
desenvolvimento sem crescimento é pobreza para muitos e acumulação para poucos,
porque em algum momento a riqueza produzida será sofrível para atender
dignamente as necessidades de todos (pensar assim faz parte de narrativas do poder); mas
crescer e distribuir devem ser concomitantes com visada de recursos “limitados”,
racionalidade produtiva, ciclo permanente de sustentabilidade, responsabilidade
ecológica, para as quais o desenvolvimento das forças produtivas é necessário;
desenvolvimento tecnocientífico é “infinito”, enquanto os recursos da
natureza para isso podem ser “finitos”; as categorias “limitado” e “ilimitado”
podem não ser adequadas, porque envolvem também noções de valores culturais
(morais, éticos), ou particulares, de identidade, ou que envolvem a raça
humana - as populações e as comunidades podem optar viver com "pouco", mas a menos que assim o desejem, não tem sentido privá-las das melhores condições de acesso ao desenvolvimento do conhecimento e ciências humanas, pois disto pode resultar jornadas de trabalho imensas com pobreza extrema e condições de saúde e educação francamente reduzidas; portanto, isto é algo que não pode ser decidido "de fora", por Estado ou partidos, ou por "movimentos"; se o limite interno é viver condignamente (material e imaterialmente), o limite externo é a imposição de formas de vida indignas e desnecessárias.
2 – O socialismo é um processo, demanda liberdade e desenvolvimento das tecnociências para aprimorar os meios
de produção e os meios de trabalho coletivos e individuais, e com isto aprimorar
as formas de fazer; o desenvolvimento das forças produtivas (tecnociências,
engenharia dos modos de fazer) agilizam e aprofundam o processo de socialismo
ou socialização, são essenciais agora para superar o capitalismo, e depois durante o socialismo [em ato],
e já que este é apenas a fase de transição ao comunismo; desta forma, a ideia autonomista
de autogestão comunitária/ associativa não é incompatível com o crescimento com desenvolvimento,
não é incompatível nem mesmo com grandeza do PIB e do IDH, ao contrário.
3 – O trabalho é, com o
desenvolvimento tecnocientífico, aplicado à produção e aos meios de trabalho, e como tal reforma as formas de saber e do fazer, mas, essencialmente, gera a potencialidade do tempo livre
ou tempo de trabalho disponível; devido ao crescimento de capital fixo
(mudança na composição orgânica do capital [Marx: O Capital; Grundrisse]), afasta-se na prática o homem do
trabalho imediato compulsório, por dentro do capitalismo mesmo, com a
possibilidade de "recriação” de formas de consciência além do tecnicismo,
economicismo, produtivismo e consumismo, p. ex., para
desempregados, subempregados, precarizados; a forma cooperada e associativa é
uma possibilidade, então, com esta base, como um incremento real a atividades
antissistêmicas, anticapitalistas, materiais (serviços, cuidados, economia solidária,
reciclagem infinita, da coleta a substituição de materiais), e imateriais (como nas
artes).
4 – A tese II, do socialismo autonomista
em ato, responde aos problemas do crescimento verde ou neoextrativismo
progressista, não em sua dimensão incontornável capitalista, não irracionalmente,
não como tarefa necessária da reprodução do capital nas sociedades
administradas; mas agilizar e potencializar as formas de fazer, o poder-fazer das
subjetividades (identidades), e romper com o ciclo de espetacularização dos
modos de vida; mesmo as iniciativas derivadas de escolhas individuais, de forma
imediata e cotidiana contribuem para o “fluxo de fazer” da totalidade
;
o autonomismo remete a complexidade da urgência ecológica e a transição
energética extrativista (fóssil, mineral e de alimentos) para a comunidade, desvincula-a da
penetração do Estado e da incontornável luta pelo Poder (culturas, grupos, Estados, regiões); a ideia que do capitalismo NÃO se pode esperar nada além de reprodução
irracional e predatória da “razão instrumental” com vistas à acumulação de
capital, que por dentro dele estão esgotadas (teorias finalistas) as
possibilidades de superar a agenda e a gestão regressiva do processo industrial
social, NÃO leva de fato a grandes possibilidades de resolução dos
problemas energéticos e de sobrevivência da vida de forma sustentável, servindo
mais para suscitar formas de regulação incorporadas pela indústria estabilizada;
TODAVIA, centenas de milhares de pessoas no mundo vivem hoje à margem do
sistema de mercado, muitos nos limites da sua sobrevivência, e sobre elas também não
incide a dominação do poder-sobre do capital; estes indivíduos mostram o
poder associativo, a criatividade antissistêmica, a capacidade de autogestão, a
disposição de existir e exigir o direito de viver de outra forma; a par da
questão da consciência, os fazeres no fluxo da vida além do capital estão dentro
do capitalismo, e seria banal considerar que as lutas políticas não estejam
acontecendo contra a forma de vida capitalista no caso de algumas centenas de
milhares de indivíduos – a luta contra o capitalismo é ao mesmo tempo a luta
contra o PODER, contra a BUROCRACIA, contra a RAZÃO INSTRUMENTAL [logo, a autogestão
de pessoas livres quer superar os aspectos superficiais do capitalismo verde e
do ecossocialismo regressivo]; REFREAR O DESENVOLVIMENTO DAS
FORÇAS PRODUTIVAS TECNOCIENTÍFICAS PODE TORNAR SOFRÍVEL A VIDA,
P. EX., NA EDUCAÇÃO, NA SAÚDE, NA SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA E PROTECAO DO
PLANETA – O QUE DEPREDA E EXPLORA É O CAPITALISMO, NÃO O HUMANO, O HOMEM CAPITALISTA, NÃO O HUMANO).
5 – É falsa a ideia que a dialética
materialista marxista seja predominantemente economicista [não é como a
vemos em Lukács, Korsch, Rosa, Gramsci, Althusser], e que a ênfase em
certas leis da reprodução do capital (como a reprodução ampliada (mais-valia
relativa, capital fixo, queda da taxa de lucro), e concorrência (Marx: O Capital; Grundrisse) desconsidere: 1)
a forma da luta revolucionária dos trabalhadores, formação de consciência etc.; 2)
desconsidere as relações sociais; mesmo que se queira considerar o lado econômico da equação
do processo de superação do capitalismo, parte-se da premissa marxista que quando
se opera na dimensão das forças de produção, imediatamente se opera nas relações
sociais relativas a essa produção, pois elas são os dois lados da atividade
produtiva (estrutura); portanto, a
ideia de desenvolvimento tecnocientífico incorpora em si a ideia de alteração das
relações sociais: na fórmula marxiana, da convulsão da
incompatibilidade entre os meios e as formas, e entre os meios
e as relações enquanto tal (Marx: Prefácio à Crítica à Economia Política; O Manifesto Comunista); como totalidade, isto significa a mesma "convulsão" para as demais esferas e dimensões da vida social (superestrutura); não
se trata de desconsiderar nenhuma forma de luta (processo não significa “sem
luta”) em nenhuma atividade possível contra o capitalismo, pelo contrário, SÓ
SE REFORÇA O PAPEL DE CERTAS LEIS DO CAPITALISMO [ECONÔMICAS] NA MEDIDA DE SUA
PERTINÊNCIA E INFLUÊNCIA [POLÍTICA] POR MEIO DAS AÇÕES CONSCIENTES DOS AGENTES
SOCIAIS, POR MEIO DE SUAS ATIVIDADES ANTISSISTÊMICAS E ANTICAPITALISTAS,
SUBJETIVAS OU NÃO, INDIVIDUAIS OU NÃO, COTIDIANAS NA MEDIDA DE SUAS
POSSIBILIDADES IMEDIATAS; por este motivo, se diz “luta de classes ampliada”.
6 – Não é necessário novos conceitos, de há muito a sociologia sabe que crescimento não é
desenvolvimento social, distribuição, bem viver – por isso foi desenvolvido o índice
de desenvolvimento humano IDH; de forma que distinguir decrescimento de
crescimento é o mesmo que distinguir crescimento de desenvolvimento, mas ao escrever decrescimento, confunde-se e deprecia-se o próprio
desenvolvimento (humano) e decorre disto
que as lutas anticapitalistas ficam “emparedadas” em uma visão determinada
(marxista-leninista), sem a oportunidade de pensar como aproveitar o
desenvolvimento científico como necessário para o IDH e Bem Viver (pratica-se um tipo
reverso de negacionismo, na medida da negação da racionalidade objetiva,
positivista); o mesmo acontece com a expressão “neoextrativismo”, para se usar
distintamente no lugar pós-extrativismo, o que dá a entender a negação de todo
e qualquer extrativismo (veja-se: “É necessário
estar atento ao que já existe no mundo” — Entrevista com Gabriela Cabaña e
Alberto Acosta | Revista Rosa 12), mas existem milhares de pessoas nos
países menos desenvolvidos da América Latina, da África e da Ásia, que têm sua sobrevivência
ligada às atividades extrativistas, NÃO NECESSARIAMENTE COMO COMMODITIES, e não
é por acaso que seja exatamente nestes países que se encontram as maiores transformações
nas ecovilas, nos movimentos por terra, ou por moradia e trabalho, quase sempre
autogestionários, associativos, cooperados e autonomistas; a radicalidade que
se pretende nos estudos de decrescimento e pós-extrativismo pode
considerar algo mais imediato, como por exemplo, levar inclusão digital às
periferias do sistema, em nossas cidades e no campo, conseguir água potável e
saneamento básico; há que se encontrar formas que não confundam e não desconsiderem
a realidade existencial das populações (inclusive culturais), não confundam os
meios com as formas, no sentido que o desenvolvimento para o socialismo autonomista carece de desenvolvimento científico e tecnológico,
como meios que crescem (dialeticamente) PARA MAIS TEMPO LIVRE, PARA MAIS
EDUCAÇÃO E ARTES; não é verdadeiro (é falso) que o desenvolvimento
para o Bem Viver tem que ser necessariamente do tipo de “tecnologia fraca” e “pobreza para
todos” – o que acontece é que em certos movimentos ecológicos do campo da
esquerda se desconsidera a perspectiva da dialética no materialismo histórico,
com a visão errada que o aspecto qualitativo da dialética seja apenas
característica do socialismo?! (p. ex., os países da "cortina de ferro" (sob domínio da ex-URSS) sem
meios de produção mais desenvolvidos não tinham como aumentar o PIB, mantendo
os trabalhadores sob regime severo de trabalho (até 14hs por dia), e sem perspectiva para os
jovens casais que se negavam a ter muitos filhos, apesar dos programas dos
governos para subsidiar a educação deles (em muitos casos, retirando as
crianças das famílias): os pais não queriam que os filhos fossem ter tais condições
de vida; por este motivo o dinheiro da UE fez a diferença e esses países
acabaram aderindo ao neoliberalismo capitalista, como no caso da Hungria, da Bulgária,
ou da Grécia e Portugal).
II - Quadro
comparativo que organiza os principais elementos para construir a autonomia [Jérôme Baschet: Adeus ao
Capitalismo. São
Paulo: Autonomia Literária, GLAC edições, 2021]
|
Aspecto |
Capitalismo |
Autonomismo |
|
Organização da vida |
Baseada no mercado
e no Estado, que regulam produção e consumo. |
Baseada em práticas
comunitárias e autogestão, com decisões coletivas. |
|
Trabalho |
Assalariado,
subordinado à lógica do lucro e da produtividade. |
Trabalho voltado à
reprodução da vida, cuidado e cooperação, sem centralidade do lucro. |
|
Recursos |
Apropriados privadamente,
transformados em mercadorias. |
Compartilhados como
bens comuns, geridos coletivamente. |
|
Decisão política |
Exercida por
instituições estatais e elites econômicas. |
Exercida por
assembleias, conselhos e formas horizontais de deliberação. |
|
Relações sociais |
Competitivas,
individualistas, mediadas pelo dinheiro. |
Solidárias,
cooperativas, centradas em vínculos comunitários. |
|
Horizonte histórico |
Apresentado como
inevitável e sem alternativas. |
Aberto à pluralidade de caminhos, experimentação e construção de novas formas de vida.* |
