Considerações acerca do decrescimento e pós-extrativismo

 

Imagem: definicion.de/   

I – Considerações acerca do "decrescimento" e "pós-extrativismo" segundo a dialética histórica além do empreendimento capitalista/   

1 – Crescimento e desenvolvimento não são iguais: pode existir crescimento (PIB) sem desenvolvimento (Bem-estar social para a população), mas é quase impossível pensar desenvolvimento sem crescimento; desenvolvimento sem crescimento é pobreza para muitos e acumulação para poucos, porque em algum momento a riqueza produzida será sofrível para atender dignamente as necessidades de todos (pensar assim faz parte de narrativas do poder); mas crescer e distribuir devem ser concomitantes com visada de recursos “limitados”, racionalidade produtiva, ciclo permanente de sustentabilidade, responsabilidade ecológica, para as quais o desenvolvimento das forças produtivas é necessário; desenvolvimento tecnocientífico é “infinito”, enquanto os recursos da natureza para isso podem ser “finitos”; as categorias “limitado” e “ilimitado” podem não ser adequadas, porque envolvem também noções de valores culturais (morais, éticos), ou particulares, de identidade, ou que envolvem a raça humana - as populações e as comunidades podem optar viver com "pouco", mas a menos que assim o desejem, não tem sentido privá-las das melhores condições de acesso ao desenvolvimento do conhecimento e ciências humanas, pois disto pode resultar jornadas de trabalho imensas com pobreza extrema e condições de saúde e educação francamente reduzidas; portanto, isto é algo que não pode ser decidido "de fora", por Estado ou partidos, ou por "movimentos"; se o limite interno é viver condignamente (material e imaterialmente), o limite externo é a imposição de formas de vida indignas e desnecessárias.

2 – O socialismo é um processo, demanda liberdade e desenvolvimento das tecnociências para aprimorar os meios de produção e os meios de trabalho coletivos e individuais, e com isto aprimorar as formas de fazer; o desenvolvimento das forças produtivas (tecnociências, engenharia dos modos de fazer) agilizam e aprofundam o processo de socialismo ou socialização, são essenciais agora para superar o capitalismo, e depois durante o socialismo [em ato], e já que este é apenas a fase de transição ao comunismo; desta forma, a ideia autonomista de autogestão comunitária/ associativa não é incompatível com o crescimento com desenvolvimento, não é incompatível nem mesmo com grandeza do PIB e do IDH, ao contrário.

3 – O trabalho é, com o desenvolvimento tecnocientífico, aplicado à produção e aos meios de trabalho, e como tal reforma as formas de saber e do fazer, mas, essencialmente, gera a potencialidade do tempo livre ou tempo de trabalho disponível; devido ao crescimento de capital fixo (mudança na composição orgânica do capital [Marx: O Capital; Grundrisse]), afasta-se na prática o homem do trabalho imediato compulsório, por dentro do capitalismo mesmo, com a possibilidade de "recriação” de formas de consciência além do tecnicismo, economicismo, produtivismo e consumismo, p. ex., para desempregados, subempregados, precarizados; a forma cooperada e associativa é uma possibilidade, então, com esta base, como um incremento real a atividades antissistêmicas, anticapitalistas, materiais (serviços, cuidados, economia solidária, reciclagem infinita, da coleta a substituição de materiais), e imateriais (como nas artes).

4 – A tese II, do socialismo autonomista em ato, responde aos problemas do crescimento verde ou neoextrativismo progressista, não em sua dimensão incontornável capitalista, não irracionalmente, não como tarefa necessária da reprodução do capital nas sociedades administradas; mas agilizar e potencializar as formas de fazer, o poder-fazer das subjetividades (identidades), e romper com o ciclo de espetacularização dos modos de vida; mesmo as iniciativas derivadas de escolhas individuais, de forma imediata e cotidiana contribuem para o “fluxo de fazer” da totalidade ; o autonomismo remete a complexidade da urgência ecológica e a transição energética extrativista (fóssil, mineral e de alimentos) para a comunidade, desvincula-a da penetração do Estado e da incontornável luta pelo Poder (culturas, grupos, Estados, regiões); a ideia que do capitalismo NÃO se pode esperar nada além de reprodução irracional e predatória da “razão instrumental” com vistas à acumulação de capital, que por dentro dele estão esgotadas (teorias finalistas) as possibilidades de superar a agenda e a gestão regressiva do processo industrial social, NÃO leva de fato a grandes possibilidades de resolução dos problemas energéticos e de sobrevivência da vida de forma sustentável, servindo mais para suscitar formas de regulação incorporadas pela indústria estabilizada; TODAVIA, centenas de milhares de pessoas no mundo vivem hoje à margem do sistema de mercado, muitos nos limites da sua sobrevivência, e sobre elas também não incide a dominação do poder-sobre do capital; estes indivíduos mostram o poder associativo, a criatividade antissistêmica, a capacidade de autogestão, a disposição de existir e exigir o direito de viver de outra forma; a par da questão da consciência, os fazeres no fluxo da vida além do capital estão dentro do capitalismo, e seria banal considerar que as lutas políticas não estejam acontecendo contra a forma de vida capitalista no caso de algumas centenas de milhares de indivíduos – a luta contra o capitalismo é ao mesmo tempo a luta contra o PODER, contra a BUROCRACIA, contra a RAZÃO INSTRUMENTAL [logo, a autogestão de pessoas livres quer superar os aspectos superficiais do capitalismo verde e do ecossocialismo regressivo]; REFREAR O DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS TECNOCIENTÍFICAS PODE TORNAR SOFRÍVEL A VIDA, P. EX., NA EDUCAÇÃO, NA SAÚDE, NA SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA E PROTECAO DO PLANETA – O QUE DEPREDA E EXPLORA É O CAPITALISMO, NÃO O HUMANO, O HOMEM CAPITALISTA, NÃO O HUMANO).

5 – É falsa a ideia que a dialética materialista marxista seja predominantemente economicista [não é como a vemos em Lukács, Korsch, Rosa, Gramsci, Althusser], e que a ênfase em certas leis da reprodução do capital (como a reprodução ampliada (mais-valia relativa, capital fixo, queda da taxa de lucro), e concorrência (Marx: O Capital; Grundrisse) desconsidere: 1) a forma da luta revolucionária dos trabalhadores, formação de consciência etc.; 2) desconsidere as relações sociais; mesmo que se queira considerar  o lado econômico da equação do processo de superação do capitalismo, parte-se da premissa marxista que quando se opera na dimensão das forças de produção, imediatamente se opera nas relações sociais relativas a essa produção, pois elas são os dois lados da atividade produtiva (estrutura); portanto, a ideia de desenvolvimento tecnocientífico incorpora em si a ideia de alteração das relações sociais: na fórmula marxiana, da convulsão da incompatibilidade entre os meios e as formas, e entre os meios e as relações enquanto tal (Marx: Prefácio à Crítica à Economia Política; O Manifesto Comunista); como totalidade, isto significa a mesma "convulsão" para as demais esferas e dimensões da vida social (superestrutura); não se trata de desconsiderar nenhuma forma de luta (processo não significa “sem luta”) em nenhuma atividade possível contra o capitalismo, pelo contrário, SÓ SE REFORÇA O PAPEL DE CERTAS LEIS DO CAPITALISMO [ECONÔMICAS] NA MEDIDA DE SUA PERTINÊNCIA E INFLUÊNCIA [POLÍTICA] POR MEIO DAS AÇÕES CONSCIENTES DOS AGENTES SOCIAIS, POR MEIO DE SUAS ATIVIDADES ANTISSISTÊMICAS E ANTICAPITALISTAS, SUBJETIVAS OU NÃO, INDIVIDUAIS OU NÃO, COTIDIANAS NA MEDIDA DE SUAS POSSIBILIDADES IMEDIATAS; por este motivo, se diz “luta de classes ampliada”.

6 – Não é necessário novos conceitos, de há muito a sociologia sabe que crescimento não é desenvolvimento social, distribuição, bem viver – por isso foi desenvolvido o índice de desenvolvimento humano IDH; de forma que distinguir decrescimento de crescimento é o mesmo que distinguir crescimento de desenvolvimento, mas ao escrever decrescimento, confunde-se e deprecia-se o próprio desenvolvimento (humano) e decorre disto que as lutas anticapitalistas ficam “emparedadas” em uma visão determinada (marxista-leninista), sem a oportunidade de pensar como aproveitar o desenvolvimento científico como necessário para o IDH e Bem Viver (pratica-se um tipo reverso de negacionismo, na medida da negação da racionalidade objetiva, positivista); o mesmo acontece com a expressão “neoextrativismo”, para se usar distintamente no lugar pós-extrativismo, o que dá a entender a negação de todo e qualquer extrativismo (veja-se: “É necessário estar atento ao que já existe no mundo” — Entrevista com Gabriela Cabaña e Alberto Acosta | Revista Rosa 12), mas existem milhares de pessoas nos países menos desenvolvidos da América Latina, da África e da Ásia, que têm sua sobrevivência ligada às atividades extrativistas, NÃO NECESSARIAMENTE COMO COMMODITIES, e não é por acaso que seja exatamente nestes países que se encontram as maiores transformações nas ecovilas, nos movimentos por terra, ou por moradia e trabalho, quase sempre autogestionários, associativos, cooperados e autonomistas; a radicalidade que se pretende nos estudos de decrescimento e pós-extrativismo pode considerar algo mais imediato, como por exemplo, levar inclusão digital às periferias do sistema, em nossas cidades e no campo, conseguir água potável e saneamento básico; há que se encontrar formas que não confundam e não desconsiderem a realidade existencial das populações (inclusive culturais), não confundam os meios com as formas, no sentido que o desenvolvimento para o socialismo autonomista carece de desenvolvimento científico e tecnológico, como meios que crescem (dialeticamente) PARA MAIS TEMPO LIVRE, PARA MAIS EDUCAÇÃO E ARTES; não é verdadeiro (é falso) que o desenvolvimento para o Bem Viver tem que ser necessariamente do tipo de “tecnologia fraca” e “pobreza para todos” – o que acontece é que em certos movimentos ecológicos do campo da esquerda se desconsidera a perspectiva da dialética no materialismo histórico, com a visão errada que o aspecto qualitativo da dialética seja apenas característica do socialismo?! (p. ex.,  os países da "cortina de ferro" (sob domínio da ex-URSS) sem meios de produção mais desenvolvidos não tinham como aumentar o PIB, mantendo os trabalhadores sob regime severo de trabalho (até 14hs por dia), e sem perspectiva para os jovens casais que se negavam a ter muitos filhos, apesar dos programas dos governos para subsidiar a educação deles (em muitos casos, retirando as crianças das famílias): os pais não queriam que os filhos fossem ter tais condições de vida; por este motivo o dinheiro da UE fez a diferença e esses países acabaram aderindo ao neoliberalismo capitalista, como no caso da Hungria, da Bulgária, ou da Grécia e Portugal).

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II - Quadro comparativo que organiza os principais elementos para construir a autonomia [Jérôme Baschet: Adeus ao Capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária, GLAC edições, 2021]

Aspecto

Capitalismo

Autonomismo

Organização da vida

Baseada no mercado e no Estado, que regulam produção e consumo.

Baseada em práticas comunitárias e autogestão, com decisões coletivas.

Trabalho

Assalariado, subordinado à lógica do lucro e da produtividade.

Trabalho voltado à reprodução da vida, cuidado e cooperação, sem centralidade do lucro.

Recursos

Apropriados privadamente, transformados em mercadorias.

Compartilhados como bens comuns, geridos coletivamente.

Decisão política

Exercida por instituições estatais e elites econômicas.

Exercida por assembleias, conselhos e formas horizontais de deliberação.

Relações sociais

Competitivas, individualistas, mediadas pelo dinheiro.

Solidárias, cooperativas, centradas em vínculos comunitários.

Horizonte histórico

Apresentado como inevitável e sem alternativas.

Aberto à pluralidade de caminhos, experimentação e construção de novas formas de vida.*


* c/ recurso de IA




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