Filosofia, Ciência, Religião, Direito
Prefácio à 6. ed. do livro "Fundamentos de Filosofia do Direito: o jurídico e o político da Antiguidade a nossos dias" (lançamento em breve pela Editora Juspodivm)
Nos tempos atuais, mais do que
nunca, é necessário pensar!
Embora esta seja uma atividade
natural do homem, pensar nem sempre é uma tarefa fácil, quer dizer, o pensar corretamente exige uma dedicação e uma
intenção que poucas vezes encontramos à nossa disposição no cotidiano. Não é
por acaso que os filósofos gregos identificavam o tempo dedicado a um certo tipo de pensar tão ou mais
importante que o tempo que dedicavam às leis e à política. Esse pensar
compenetrado e dedicado, a elucidar problemas colocados para o espírito humano (por ele mesmo!), portanto permeado de
perguntas e respostas – que levam a outras perguntas e a outras respostas! -,
chama-se Filosofia (do grego philía –
amor, viva afeição + sophia –
sabedoria). Os problemas, que sempre vêm acompanhados de muitas dúvidas e
perguntas, sejam voltados a interesses práticos ou puramente espirituais,
constituem um tipo de “ente” que só pode ser “decifrado” e “resolvido” mediante
a identificação de suas causas e, em
seguida, de uma escolha entre várias
opções – lembre-se sempre que para o espírito reflexivo, não escolher algo
também é escolher algo (escolher não escolher é uma escolha!).
Descobrir as causas de um
problema, se o mesmo for um problema de ordem natural (físico, químico,
orgânico, astrológico), pode ser realizada pela assim chamada Ciência, por
exemplo, através do experimento laboratorial, em um laboratório de física
aplicada, um laboratório de química, um laboratório de biologia, de farmácia,
de astrologia etc. A Ciência não trabalha filosoficamente quando, uma vez
identificada as causas do problema ou fenômeno que investiga, apenas se dedica
a promover a explicação ou a solução prática do objeto que investigou. Ou seja,
não existe aqui uma reflexão que provoque no espírito humano uma fruição
a procurar outras causas e respostas que estejam ligadas à parte espiritual do
homem - por exemplo, quando o homem pensa o que é melhor para os seus
semelhantes, quando pensa se a solução achada pela Ciência é a mais adequada do
ponto de vista ecológico e preservação do planeta, se a própria pesquisa está
de acordo com o código de ética da atividade científica, se as descobertas são
pertinentes e adequadas com relação aos preceitos morais, ou à preservação da cultura
de uma determinada sociedade como nos diria a Jurisprudência de Ihering.
Para os gregos e para Aristóteles, a causa era responsável por toda a realidade de uma coisa, mas para eles,
e foi assim por muitos séculos (até pelo menos o Renascimento, no século XVI), Filosofia
e Ciência sempre andavam juntas, ou seja, o questionamento sobre um problema ou
fenômeno, mesmo que natural, sempre era colocado de forma a que fosse o espírito humano, e não somente o
experimento prático, aquele que deveria se satisfazer
com as causas identificadas (aquelas
e não outras) após esgotar as premissas e as consequências das soluções
determinadas pelo contraditório e pela lógica em favor do coletivo.
Então, com o desenvolvimento da
Ciência e as tecnologias, a partir do século XVI, os conhecimentos se
especializaram, e a especialidade separou a ação reflexiva, por excelência da
Filosofia, das atividades do fazer cotidiano, em grande parte por causa da
expansão das atividades mercantis. Este processo atingiu seu ápice, e não parou
mais, com a extrema divisão e especialização do trabalho na Revolução Industrial
(final do século XVIII), que separou o pensar
criativo do fazer produtivo, unidade
que havia nos mantido na totalidade ontocriativa por milhares de anos (para o
Jusnaturalismo (Grócio, Pufendorf), na verdade, os homens que
viviam nas cavernas pensavam muito
mais do que supomos, e também desenvolveram um conjunto de valores e regras que
os orientavam e os mantiveram vivos até a confecção dos primeiros códigos
escritos por volta do XXI século A.C. (Código de UR-NAMMU)).
Acontece, porém, que se para os homens existe
a fatalidade de voltar a si mesmo
como pensamento refletivo, existe igualmente a condição de que o fazemos sob as
condições concretas de nosso fazer, ou dizendo de outro modo, a consciência de
cada um de nós está para a forma determinada
de nosso trabalho – pensamos conforme
fazemos e não o contrário (apesar do dito por Descartes aparentemente em
contrário: “penso logo existo”, pois o que o filósofo quis dizer foi que o
próprio existir precisa ser reconhecido por mim, ser pensante, e tem pouco a
ver com a relação entre trabalho e consciência conforme o cogito de Karl Marx).
Ao separarmos para instâncias
especiais e para uma disciplina própria o pensar, a reflexão filosófica deixou de ser crítica, em virtude do
fato que, nos modos de viver modernos até hoje, a produção dos bens e víveres
necessários para nossa sobrevivência material, acabaram por condicionar
fortemente nossas consciências e, em consequência, moldar nossos gostos e
qualidades críticas e inovadoras (diríamos poéticas, artísticas!). Devemos
admitir que para a maioria dos indivíduos a Filosofia é um pensamento distante
de seu Senso Comum: precisamente porque o Senso Comum é voltado para a produção
incessante de objetos (o que retira aquele tempo
de “suspensão” inerente à reflexão aprofundada e critica, como a reflexão de
uma obra de arte!), padronização das atividades imediatas ligadas à execução das
práticas repetitivas cotidianas como a produção de coisas (o que nos retira
aquele espaço “vazio” a ser preenchido
pela reflexão aprofundada e crítica!): este é um tipo de conhecimento que não
busca as causas e exige exíguas situações
de escolha para um reproduzir
incessante de materiais. Lembre-se, então, que em um mundo cujo valor moral é
medido pela quantidade de bens e dinheiro (o capital!), pouco espaço e tempo haverá de fato nas consciências dos homens para a Filosofia!
É neste caso que intervém Lacan com sua filosofia psicanalítica,
introduzindo um outro tipo de conhecimento, a Religião. A Religião (para ele só
existe uma verdadeira!) é o tipo de conhecimento que pode ser alcançado toda
vez que a Ciência e a Filosofia “fracassaram” diante do real. O real é o lugar onde os indivíduos põem à prova, digamos assim, onde testam suas convicções – morais,
culturais, ideológicas – e onde colecionam (adquirem para si!) o sucesso ou o
fracasso a reforçar suas condutas e comportamentos.
Diante do real que a Modernidade (principalmente a partir do século XIX) proporcionou
aos sujeitos, diante da brutalização das tecnociências, da desconsideração da
personalidade pelos sistemas de concorrência mercantil e da existência permeada
pelo espetáculo midiático onde o falso e o verdadeiro fazem pouca diferença
para a vida, e uma vez que a Filosofia já colapsou em sua reflexão crítica e
poética espaço-temporal, Lacan afirma que os indivíduos só podem recorrer à
Psicanálise ou refugiar-se na Religião. Por isso o autor acredita que no futuro
saber-se-á qual das duas áreas (Lacan
recusaria chamar a Psicanálise de “conhecimento” formal ou disciplina acadêmica!),
Psicanálise ou Religião, triunfaram e, portanto, qual a opção que verdadeiramente a humanidade fez para si mesma – o autoconhecimento
ou a barbárie do fanatismo.
E então estamos de volta à
fundamental questão humana: o homem é obrigado a escolher, é na escolha que ele
sabe que existe, que dá razão à existência, que toma consciência de sua vontade
e de sua liberdade, ou falta dela. Seja como for, o homem, que vem depois do “verbo”
(ou por vontade dele!, diriam Sto.
Agostinho e Sto. Tomas de Aquino),
quando se põe a pensar corretamente é sempre para procurar um porto seguro para
sua existência - dado que a ele não pertence a certeza nem a explicação de “nada”,
esse pensar, por mais longe que esteja das artimanhas do poder ou do fanatismo,
é sempre e apenas uma possibilidade de se “enganar”, de amenizar sua insegurança, de aportar a algo que lhe parece mais seguro. Mas nunca saberemos
de antemão qual o caminho melhor, portanto qual a escolha correta. É assim que
diante do infortúnio da escolha incerta, do resultado obscuro, que nossa
angústia cresce e procura a decisão que se apresenta de menor sofrimento. Por isso
Sartre podia afirmar que para os
homens é normal esperar o erro, e que o acerto de uma escolha, descartando
tantas outras opções, era humanamente improvável, posto que não somos o “verbo”,
não “estamos” antes do viver, do fazer, do viver fazendo e a escolher.
Imagine-se então a condição
existencial humana diante da soberania da produção mercantil e da opressão
política e jurídica que dela emanam (tais como “propriedade privada” ou “prevenção
geral”)?! Do que trata afinal um livro de filosofia do direito? Trata de pensar
e explicar o motivo pelo qual o direito é de uma forma e não de outra, alimenta
certas crenças em detrimento de outras, justifica-se por elementos de linguagem
adequados a seus atos normativos e processuais, e não por outros tantos
possíveis (como em Kelsen ou Carlos Cossio).
Do ponto de vista das escolas
filosóficas o direito sempre procurou, nas sociedades de livre mercado,
justificar suas políticas e sistemas de justiça pelo pragmatismo da produção de
mercadorias. Os resultados civilizatórios desta pretensão são bastante óbvios
para continuarem a ser cultuados. Temos muito a aprender e muito mais a mudar. Mas
antes é necessário alcançar as noções de justiça, de ética, de verdade, de
igualdade, de liberdade, de beleza e de felicidade. Estas não são meras
expressões do cotidiano, mas conceitos cujos conteúdos não podem ser tratados
de forma simples e nem relativizados sem se considerar sua importância para a
ciência jurídica, e para a “verdade”, conforme nos diria Kant. As escolas filosóficas, desde os pensadores pré-socráticos, sempre
se digladiam para harmonizar a vida humana a estas noções, que como arquétipos povoam
nossos espíritos, nos fazem refletir assim que podemos elevar nossos fazeres à
plenitude do pensamento.
Existem muitas formas de explicar
o direito, de o entender e o justificar ou o criticar. O direito é uma
disciplina, e uma prática, de conhecimento interdisciplinar.
Entre muitas imbricações possíveis estão as sobreposições do direito com a
política (isso fica claro quando pensamos em garantia dos direitos dos
cidadãos!). Lembre-se que a política refere-se a todos os atos dos cidadãos
para realizar a governabilidade da vida coletiva: a pólis, para os gregos, era o centro de todo o pensar e realizar que
interessava aos homens, conforme Hannah
Arendt.
O direito e a política são formas
de pensar filosoficamente em seus termos a causalidade e os efeitos para a vida
humana coletiva. Foi a isto que nos propusemos fazer neste livro desde o inicio:
Fundamentos de Filosofia do Direito: o
jurídico e o político da Antiguidade a nossos dias, estuda o direito e a política
e suas conexões sempre do ponto de vista da vida social e da ética coletiva. Mas
o fizemos de uma forma o mais didática possível, de forma que o direito não fosse
alçado apenas ao entendimento privilegiado de alguns, mas que pudesse em seu
interior (em seus fundamentos) ser compreendido por muitos (por exemplo, através
do Glossário que o livro contém!), mesmo aqueles que o sistema mercantil retira
o tempo e o espaço de reflexão e estudo.
Cada pensador ou escola que este
livro aborda tem algo de importante e único para fazer do direito uma pérola rara
e brilhante, ou de beleza aparente, como o quadro de Dorian Gray. Ao final de
cada capítulo existe um quadro resumo precioso que facilita o entendimento do
direito do ponto de vista de cada autor ou escola filosófica.
Em muitos sentidos a escolha do que
a Filosofia pode emprestar ao direito, portanto, o que o direito pode ser na
prática para seus especialistas, depende das escolhas de cada um que de alguma
forma dedica-se a ele. Uma coisa é certa: se o pensamento só encontra a sua
melhor razão na prática, uma prática que procura fazer a justiça deve
encontrar-se na melhor razão - para ser efetivo o direito só pode fazer seriamente
a justiça com muita dedicação da razão crítica voltada para a ética.
José Manuel de Sacadura Rocha,
Inverno, 2019
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