Se todos os juízes do mundo...
Ainda que todos os
juízes do mundo fossem homens justos, no sentido de serem, todos eles, sem
excepção, rigorosos aplicadores de lei, nem assim o mundo estaria vivendo na
santa paz da justiça. Os juízes formam-se e existem para acatar e fazer acatar
as leis, mas as leis não são justas só por terem o nome de lei: dizer lei sempre
foi o mesmo que dizer justiça. Na história dos povos multiplicam-se exemplos
desta verdade. Muito pior do que isto, porém, é quando num tribunal, chamado a
decidir sobre uma acção presuntivamente criminosa, se vão encontrar reunidas
duas injustiças, a da lei e a do juiz. Já não bastava a hipótese de que o juiz
fosse daqueles que facilmente tapam os ouvidos à voz da sua consciência, no caso
de ainda a terem, aplicando cientemente e à letra, sem o menor gesto de protesto
público, uma lei que já sabiam ser injusta ou, pelo menos, desajustada em
relação ao caso em juízo. Nesta situação corrupta, isto é, reunidas no mesmo
foro as duas injustiças, quer o juiz de antemão prevenido contra o acusado quer
a lei forjada para preparar o caminho à condenação, potenciarão alegremente as
suas mútuas perversões institucionais e morais, começando logo por desprezar
aquele sábio conselho da jurisprudência clássica que determinava que uma dúvida
fundamentada, quando a houvesse, deveria favorecer o réu e não a
pena.
Há casos, contudo,
em que a dúvida não é legítima, nem sequer aceitável à luz clara da razão ou do
simples senso comum, casos em que toda a configuração do processo testemunha,
pelo contrário, a favor do acusado, e, não obstante, lei e juiz, mancomunados,
negam, não já a mera presunção de inocência, mas a própria evidência dela, e
condenam uma pessoa sem culpa.
Se a Justiça, no
Brasil, tal como sucede no resto do mundo, é representada com os olhos vendados,
passámos, a partir daqui, a ter motivo para supor que, se a infeliz está assim,
é para que não possamos aperceber-nos de que lhe arrancaram os
olhos...
José Saramago - Fundação Saramago
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