Educação Sentimental
Tenho proposto que a abordagem
jurídica contemporânea reveja seus princípios e doutrinas, principalmente
quanto aos mecanismos de punição, desde a reforma dos Códigos quanto da
Jurisprudência pertinente, até a reforma da linguagem acadêmica jurídica. O
conjunto de princípios inovativos que visam uma abordagem zetética e
abolicionista, devem ser capazes de proporcionar uma reflexão que coloque o
Direito no lugar de uma ‘significação jurídica não linear e não literal’.
Não ‘linear’ quer dizer que as
alternativas ao Direito posto devem conviver com lugares rebelados e não
povoados pelos ditames convencionais da justiça, lugares de escape, lugares
infames, lugares de desvario. Nesses rincões jurídicos, onde o Estado mal chega
ou onde é desconhecido pelos indivíduos, normalmente desprezado por eles, é
comum verificar-se um preenchimento de justiça que foge muito às interpetações
e aplicações da justiça civilizatória; neste sentido que digo ‘não literal’.
Quanto se tem a aprender para o bem de todos e do Direito nesses lugares
inóspitos e desprestigiados pelo ordenamento jurídico!
Elaborei 20 princípios
apresentados recentemente em palestra patrocinada pelo Jornal Estado de Direito
(SP, 26 de junho), que nos podem conduzir por esse caminho não povoado de
tradicionalidade e normalidade jurídica, princípios para um Direito Alternativo
(cf. artigo anterior neste Jornal). Um desses princípios fala de ‘Educação Sentimental’, reportando-se ao
pensamento de Aristóteles e à exegese política cidadã do ateniense. Neste
artigo procuro confrontar essa ideia de ‘Educação
Sentimental’ com a ideia de ‘Educação
para o PIB’. No bojo deste enfrentamento existem preocupações políticas e
jurídicas importantes, nomeadamente as que opõem uma educação jurídica voltada
para a mediação, conciliação, restauração e prevalência da proprocionalidade e
razoabilidade punitiva, e uma formação jurídica que entende como natural a
identificação, no nível micro, entre educação e comércio, e no nível macro, entre
educação e retorno para o PIB per capita
do país (veja-se, p.ex., Martha C. Naussbaum. A Fragilidade da Bondade. São Paulo: Martins Fontes, 1986. Cf. Alcir
Pécora. O Câncer nas humanidades.
Revista Cult, nº 162).
Obviamente que não existe nada de
inusitado em considerar esta última concepção como a mais comum e mesmo a mais
esperada pelos estudantes de Direito, pelos seus familiares e pela própria
sociedade. Infelizmente. Também por alguns juristas, doutrinadores, doutos e
docentes. Não apenas esta ideia que fragiliza a solidariedade, o pensamento
abstrato e teleológico sistêmico – isto em plena Era da Informação! -, mas a
que desumaniza em favor de uma administração pública que procura a justiça às
custas do ‘ótimo de Pareto’, isto é, como formar (não propriamente educar!) profissionais de
Direito que façam justiça ‘praticando-a’ com preocupação em custo-benefício
para o Estado e para a sociedade. Só que, não nos enganemos, não existe aqui
uma preocupação séria com o erário público, mas com a eficiência técnica do
Sistema. Eugenia e racismo sócio-estatal disfarçado de mínimo existencial; na
melhor das hipóteses, utilitarismo elitista travestido de reserva do possível
escondendo uma cifra negra de ineficiências, pecados e injustiças.
Claro que esta tendência ao
tecnicismo e às práticas mercantis na educação superior não é apanágio do
Brasil e dos brasileiros. Em recente matéria no caderno Ilustríssima - Jornal
Folha de São Paulo, 27 de maio de 2012 - revela-se, sob o título ‘Silêncio ensurdecedor: A corrupção
acadêmica e a crise financeira’ (Charles Fergusson, ‘The Guardian’. Trad.
Clara Allain), o quanto as grandes organizações privadas e o governo
administram seus interesses, colocando seus ex-principais executivos nos postos
de direção e reitoria nas Universidades de ponta nos EUA, controlando assim o
ensino e a pesquisa no país. Não se faz necessário, aqui, me ater a esta
realidade em solo pátrio.
A constituição da vida
democrática, logo, de um Estado Democrático de Direito, pressupõe um espectro
maior de direitos e garantias em defesa de valores como o pluralismo, a
liberdade civil, igualdade de procedimentos e no acesso à justiça, independente
de raça, classe, gênero, orientação sexual, religião etc. A aceitação e a
capacidade de os praticar dependem muito mais de uma educação de humanidades do
que uma simples formação contábil no seio do Direito. É este o nosso foco em
apregoarmos uma ‘Educação Sentimental’ que seja o contraponto da filosofia à
(con) formação de ‘recursos humanos’ jurídicos.
A ideia retributiva e
conciliatória, não são incompatíveis entre si, e estão presentes desde a
formação da cidade-estado ateniense, na conjugação de esforços das fratrias
para que a paz e a civilidade política se sobrepujassem à vendetta e controvendetta, portanto
muito antes da educação para o convívio interpessoal no âmbito da pólis preconizado por Aristóteles. Existia
de fato um ‘direito privado’ (dikai)
no que concernia à punição de homicídios não intencionais, pelo menos a partir
de Dracon, quando o agente era colocado frente à família do morto, e, caso esta
estivesse de acordo, a punição poderia ser convertida em pagamento de
indenização pecuniária e exílio. No caso de homicídio intencional (graphai) o crime era julgado pelo
tribunal, o Areópago.
Com relação a Aristóteles devemos
lembrar que o termo política
representa, antes de tudo, a ‘relação social’ inerente ao convívio no âmbito da
pólis. Como os gregos na Antiguidade
não diferenciavam filosofia, política e justiça, a educação assumia uma global
e peculiar importância, uma ‘educação
sentimental’ que se preocupava, antes do conhecimento (dianoética), com a ética, entendida esta como a poesis capaz de transformar, pela
intervenção política, a fatalidade e as circunstâncias adversas impostas
naturalmente aos homens (a diferença entre grupos sociais, p. ex., que o
filósofo ateniense concebia como natural). Não é por acaso que Aristóteles para
falar de justiça, seus tipos e diferenciações, escreve um livro com o nome de ‘Ética a Nicômaco’. Mas, se a poesis (por sinal, também ‘poesia’!) é
essa ação transformadora (criativa, utópica) que se preocupa com a harmonia, a
conciliação e o bem coletivo no seio da cidade-estado, é ao mesmo tempo práxis, enquanto ação concreta e
propositada por um indivíduo que assim, na sua ação transformadora se
transforma a si mesmo, no sentido de se realizar criativamente e adquirir a
felicidade e bem-estar pessoal, a grande virtude e o grande propósito da
existência humana. Daí que o homem que age poeticamente e com verve política
realiza o bem coletivo e encontra a sua própria felicidade, a recompensa maior
da inexorável intersubjetividade a que está sujeito no seio de seu grupo,
comunidade, cidade, Estado, Mundo. Eis, pois, o objetivo maior de uma ‘educação
sentimental’ em detrimento da ‘educação (ou formação?) para o PIB’.
Para ilustrar minha tese,
gostaria de mencionar um experimento. Em um pátio de uma escola foram colocadas
várias crianças entre 7 e 10 anos e no muro em frente, a alguns metros, foram
penduradas bixigas. Às crianças foi dito que dentro das bixigas haviam cupons
que lhes davam presentes. Elas deveriam, ao sinal dado, correrem a estourar as
bixigas e verem se estavam pemiadas. A quantidade de bixigas era superior à
quantidade de crianças, o que significa que todas as crianças estariam de
alguma forma premiadas. Mas, ao sinal, as crianças correram com tal entusiasmo
que se atropelaram ficando algumas caídas pelo caminho. No entanto, e esta é, a
meu ver, a importância do evento, nenhuma criança parou ou mesmo voltou depois
para ajudar as que haviam caído. Pelo contrário, riram das que ficaram para
trás e as menosprezaram.
Basta que agora nos perguntemos:
‘Que adultos serão essas crianças e que crianças dessas serão os profissionais
do Direito desejáveis no futuro?’ A sociedade precisa se perguntar sobre isto:
‘Educação Sentimental’ ou ‘Educação para o PIB’? De minha parte,
rendo aqui minhas homenagens a todas as crianças que ainda param para acudir os
que caiem a todo instante ao nosso redor!
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