Angola, Iraque e Lágrimas


Apenas duas vezes na vida quis chorar e não consegui!
A primeira foi em 1975, em Angola. Uma manhã, lá pelas 10hs, saía pela porta do prédio, onde morava com meus pais, e bem na frente, impedindo a passagem, um garoto negro Jazia. Provavelmente da minha idade, uns quinze anos, a não mais do que uma meia dúzia de passos da porta, estendido de forma desconexa, como um boneco de trapo, com o cérebro exposto em uma massa sanguinolenta rosada. Da caixa craniana escorria um líquido viscoso de dupla densidade e coloração: um branco amarelado que fazia o vermelho sanguíneo se destacar na calçada de pedra calcária. Havia um rastro de sangue, mais denso e mais escuro, que dobrava a parede que separava nosso prédio do prédio à minha esquerda. Ali se encontrava uma AK-47 caída provavelmente das mãos daquele garoto. Em volta de seu corpo vários pentes de balas de grosso calibre. De nada serviram!
Fui descendo devagarzinho encostado na porta de vidro, que já havia sido trocada uma meia dúzia de vezes nos últimos três meses, até sentar no chão, apoiando-me com força com as mãos, enquanto escorregava no vidro e deixava pesadamente cair meu corpo na calçada. O rosto do garoto, voltado para mim, apresentava um olhar esbugalhado, mas vivido. Sua boca, de lábios grossos púrpuros, balbuciava algo ininteligível, deixando ver uma fileira imaculadamente branca de dentes. Não sei quanto tempo se passou. Minha mãe disse que eu dormi de olhos abertos. Dormir de olhos abertos? Acordei às 11hs do dia seguinte. Não falei, não chorei. Nunca mais se falou no assunto. Até hoje nunca mais toquei no assunto.
A segunda vez foi há vinte e cinco anos atrás, quando minha mãe morreu. Ela precisou ser operada de ponte de safena. Nunca mais voltou do coma. Chamaram-me dois dias depois às 14hs. Corri do trabalho para o hospital e recebi a notícia de seu falecimento. Ataque cardíaco e deficiência neurológica. Liberaram o corpo às 20hs. Velei minha mãe, sozinho, toda a noite e madrugada, e a enterrei às 17hs do dia seguinte. Eu, a esposa e duas amigas. Chovia muito e chafurdávamos na lama do cemitério. Voltei para casa, deitei e dormi por dois dias. Mas não chorei. Uns dias depois derramei minha dor em lágrimas por um dia inteiro, intercalando pequenos períodos de consciência. Voltei a chorar por ela, e só por ela choro assim até hoje, vinte anos depois, quando consegui escutar fado novamente.
Acabei de assistir uma peça de teatro: “O Palácio do Fim”. Nela é contada a guerra do Iraque. Atrocidades de todos os lados, tanta crueldade me impediu de chorar, ainda que em vários momentos o quisesse fazer, mas não consegui. A desumanidade é incrível. Mais incrível que a própria humanidade. A História deveria ser contada em termos de atrocidades e crueldades cometidas pelos homens contra seus semelhantes. A capacidade de cometer genocídios é que nos consagra como humanos. E de novo, tantos e tantos anos depois, o mesmo sentimento de dor inaudita, a insuportável certeza do que somos capazes ante minha incapacidade esbugalhada de chorar, como aquele longínquo, mas sempre presente garoto, balbuciando algo ininteligível de olhos esbugalhados e encéfalo exposto em uma massa ensanguentada espalhada nas pedras brancas da calçada.
Chorar pode ser uma dádiva!

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