(Pandemia) Os Três Tipos de Desobediência Civil - Introdução ao Pensamento de Henry David Thoreau
Não existem dúvidas que a sociedade civil brasileira rejeita peremptoriamente a voz de comando do governo, seja Federal, Estadual ou Municipal. Não seja a "força da lei" com sanções "sensíveis" ao cidadão e a fiscalização policial e militarizada do Estado, dificilmente haverá adesão espontânea da população a recomendações e mesmo ações do poder público. Nem sequer diante de grandes desastres sociais ou naturais, como o caso de Pandemias.
A história brasileira demonstra isso cabalmente: só para o demonstrar temos a Revolta da Vacina que aconteceu em 1904, no início da República, que consistiu em levante popular contra a campanha de vacinação, articulada pelo sanitarista Oswaldo Cruz contra a varíola. A Revolta da Vacina se deu dentro do contexto de um período de contestação ao Governo Federal, que praticava na época um programa higienista onde as populações mais humildes e mestiças eram os principais alvos. A Revolta da Vacina está inserida nas Revoltas Populares da República Oligárquica (1894-1930), como a Revolta da Chibata e a Revolta de Juazeiro. A verdade é que a República brasileira não conseguiu trazer a melhora de expectativas de vida ao povo miúde, alforriado, mestiço e suburbano nas grandes cidades, e no interior genericamente latifundiário. As elites oligárquicas aliadas aos generais e depois aos presidentes e governadores eleitos de forma ilegítima por vários mecanismos de corrupção, continuaram a mandar, e fazer com que as políticas públicas atendessem apenas as seus interesses e consolidasse o seu poder por dentro da "nova" constitucionalidade republicana. Esta é a gênese da "DESOBEDIÊNCIA CIVIL" no Brasil, principalmente pelo povo mais vulnerável: eles aprenderam historicamente que o governo só favorece os ricos e que nada vai mudar para eles as recomendações e orientações dos governantes. Agora querem que fiquem em casa... Para eles o governo é o governo dos ricos. Para eles a doença e a morte é o dia a dia, faz parte da sua existência de pobre só lembrado para legitimar os que vão governar para as elites oligárquicas.
Muitos foram os
pensadores e autores que em todas as épocas falaram e defenderam a Desobediência
Civil. Na filosofia, na política, na poesia e na literatura universal
encontramos expoentes que emprestaram sua genialidade à causa da Desobediência
Civil. De uma tirada só tentei colocar no papel aqueles que me ocorreram sem
grande dificuldade e sem necessidade de uma pesquisa mais aprofundada. Consegui
meia centena de nomes, entre filósofos, cientistas políticos, poetas e
romancistas, cujas obras eu li e jamais esqueci. Sem querer ser maçante, eis
alguns que considero dos mais importantes: Sócrates (Apologia a Sócrates), Morus (Utopia),
Rousseau (A Origem da Desigualdade Entre
os Homens), Voltaire (Cândido, ou o
Otimismo), Kierkegaard (O Desespero
Humano), Marx (A Ideologia Alemã),
Prouthon (Filosofia da Miséria),
Stirner (O Eu e Sua Propriedade), Kropotkin
(Mutualismo: Um Fator de Evolução), Nietzsche
(Assim Falava Zaratustra), Thoreau (A Desobediência Civil), Sartre (O Ser e o Nada), Camus (O Homem Revoltado), Foucault (Vigiar e Punir), Artaud (Van Gogh: O Suicida da Sociedade), Goffman
(Manicômios, Prisões e Conventos), Hulsman
(Penas Perdidas), DaMatta (A Casa e a Rua); em outro grupo:
Sófocles (Antígone), Victor Hugo (Os Miseráveis), Cervantes (Dom Quixote de La Mancha), Baudelaire (Flores do Mal), Balzac (Ilusões Perdidas), Wilde (O Retrato de Dorian Gray), Pessoa (O Livro do Desassossego), Kafka (O Processo), Machado de Assis (O Alienista), Gandhi (A Roca e o Calmo Pensar), London (O Andarilho das Estrelas), entre muitos outros.
Este inventário é
importante, comprova que o “princípio” é mais comum e popular do que muitas
vezes se pensa e apregoa. Entre nós, brasileiros, acostumados à santíssima
trindade do Estado, do Favor e da Ordem, o simples pronunciar “desobediência”
já impossibilita de imediato pensar sobre o que seja Desobediência Civil. Não
esqueci a Igreja, não, ela faz parte da Ordem!
I - Contratualismo e
Constitucionalismo em John Rawls
A essa altura, devem
estar a se perguntar então o que é afinal essa tal de Desobediência Civil. De
forma simples eu diria que Desobediência Civil é “o direito do cidadão se afastar dos sistemas políticos tradicionais,
dizendo não à linha de comando e obrigações institucionalizadas diretamente
pelo Estado ou de forma indireta por seus prepostos”.
Dito isto, e antes de
avançar nos três tipos de desobedecer ao Estado, gostaria de chamar atenção
para o fato que considero a capacidade e a vontade de desobedecer ao poder
estatal um direito, e, portanto, sugiro que a Desobediência Civil seja tida
como um “princípio”, mais do que um “conceito”. Este é o motivo pelo qual
continuo a defender a Constituição democrática de um país – e acho a nossa
assim! -, porque vejo nela mais do que direitos e deveres, antes de qualquer
coisa, princípios e valores. Por exemplo, a soberania do povo é mais um
princípio e valor do que um conceito ou direito.
Desobedecer às
maquinarias e maquineismos dos Estados nas sociedades de controle é, por
princípio, um direito, não um simples conceito a ser debatido ou validado
utilitariamente. Princípio da legalidade: “o cidadão pode fazer tudo o que a lei
não proíbe (art.5, CF/88), e o Estado só pode fazer aquilo que a lei permite
(art. 37, CF/88)”. Já o art. 1º, parágrafo único, consagra a soberania do povo;
logo é óbvio que se o Estado não fizer o que a lei o obriga a fazer, eu,
cidadão, portador único e intransferível da soberania, posso desobedecer. Isto
não cabe discussão conceitual, mas a obediência ao princípio da legalidade e da
soberania popular. O cidadão constitui o Estado, e não o inverso!
Portanto, aqui estamos
diante do primeiro tipo de
Desobediência Civil que gostaria de falar: a desobediência do tipo contratualista.
A Desobediência Civil deste tipo baseia-se na premissa que é lícito e legítimo
que o cidadão desobedeça ao Estado nas condições em que o Contrato Social for
desrespeitado pelo governo. O princípio da legalidade exposto acima, onde o
Estado está obrigado a fazer aquilo que a lei estabelece como o cumprimento,
pelas vias das políticas públicas, dos direitos sociais (art. 6º, CF/88),
enseja a possibilidade de desobediência do cidadão se as mesmas obrigações não
forem executadas e oferecidas a contento. Muitas vezes, em uma forma extensiva,
se alega, neste caso, que a dignidade humana fica comprometida, portanto a
desobediência é possível no sentido valorativo e não meramente concernente ao
formalismo do direito material. Mas, com toda a certeza, o que aqui possibilita
a recusa da coação e controle estatais sobre os cidadãos é, no fundo,
justificado pela “quebra de contrato”, como nos explicou John Rawls (1921-2002) (Uma
Teoria da Justiça).
Na verdade, este tipo
de cogito para a desobediência dos cidadãos é o mais moderno, uma releitura de
Locke, positiva e liberal-burguesa da filosofia política e do Direito pós
Grande Guerra, em tempos de Estados neoliberais e de expansão global do
capitalismo. O Direito brasileiro, após a ditadura militar dos anos 60-80
passados, bem como de forma bastante geral, os Estados-nação contemporâneos e
seus ideólogos, aceitam com menos repúdio – não pouco, contudo! – este tipo de
resistência a suas máquinas insuficientes, ineficientes, irresponsáveis e
corruptas. Mas por todos os lados, em todos os continentes, nos países mais industrializados
e nos mais pobres, o “atrito” desgasta essa “engrenagem feita de engrenagens”.
II – Jusnaturalismo e
Civilismo em John Locke
Vamos ver agora o segundo tipo de Desobediência Civil, a
que podemos aferir do pensamento de John
Locke (1632-1704) (Dois Tratados de
Governo Civil). Na virada do século XVII para o século XVIII, Locke
proferiu de maneira magistral o “princípio” da Desobediência Civil, nos
seguintes termos: o cidadão tem o direito de desobedecer civilmente se o
Contrato Social – portanto, Locke é um contratualista – estiver em dissintonia
com os Direitos Naturais pré-existentes nos grupos humanos anteriormente à
confecção do pacto ou contrato. Parece igual à tese de Rawls, contudo, importantíssimo
que se perceba a diferença sútil, mas fundamental, em relação à concepção mais
divulgada pela doutrina juspositivista anterior exposta, a do Estado
Neoliberal. No caso de Locke a desobediência é legítima já quando o próprio Contrato Social avilta, deturpa ou desconsidera
direitos naturais, valores do mundo existencial humano anterior ao estado
político ou sociedade jurídica. Locke é assim, antes de tudo, um defensor dos
direitos naturais e de uma cultura civilista, jusnaturalista, valorativa
humanista, como advoga o grande pensador moderno Norberto Bobbio (1909-2004) (Locke e o Direito Natural). Sua
desobediência é do tipo jusnaturalista.
Vamos ver: em Locke
existe de fato, e isso aconteceu mais na modernidade do que em outros períodos,
a possibilidade do Contrato Social já
(vício de princípio) desrespeitar os direitos humanos, os direitos da condição
humana, aqueles sem os quais qualquer cidadão sabe e sente na pele que estará
impossibilitado de desenvolver condignamente as suas potencialidades como
Homem, como Ser e como Cidadão, ou dito de outra forma, “realizar a vida de
forma que se possa dizer que vive”. Por exemplo, uma Constituição pode,
enquanto parte formal representativa dos valores e princípios de uma Nação,
devido a certos desvios e casuísmos políticos-legislativos, na transição do Poder Originário para a Assembleia, denegrir
esses valores e princípios e, em um processo constitucional perverso e
corrupto, extirpar direitos naturais, macular ou simplesmente ignorar tais
direitos naturais. Neste caso, a Desobediência Civil já é devida e legítima
pelos cidadãos, antes mesmo, pelos indivíduos detentores dessas dignidades. Em
uma sociedade de classes, para não ir mais longe, os direitos humanos estão
sempre ameaçados pelo Poder Derivado, reformador,
legislativo e, em muitas situações, pelo próprio Judiciário (regimentos,
resoluções, súmulas, etc.).
Ora, em Rawls, a
Desobediência Civil, sempre pelo cidadão, vez que pressupõe a existência da
sociedade civil de Direito, não se estende à forma maculada e possivelmente
imoral com que o Poder Constituinte possa ter “usado” aquele Poder Originário a suportar a legitimidade
da Assembleia Constituinte. Veja-se o exemplo sempre atual da revolução
francesa de 1789 – um golpe burguês para cima das camadas populares! Daí que se
uma Nação tiver que se curvar a um aparelho normativo e um ordenamento
jurídico-estatal, só porque está
escrito, e se a resistência e o movimento de recusa ao arbítrio e indignidade
da lei e do governo só for legítima se não for cumprida a lei pelo Estado,
então ao que se deve obedecer incontinente? À repressão efetuada pela
injustiça? Talvez a sutileza seja esta: a ideologia e o discurso liberal
dogmático estatal vendem a ideia que a lei é sempre justa, imparcial, absoluta
e moral. Isto serve igualmente para o ideário que vê, e lê, a Constituição como
mero reportório de leis formais que obrigam e cujos direitos não são de
direito, mas do Direito. Pense-se na famigerada prática estatal da Reserva do
Possível e se perceberá facilmente que nunca se poderá desobedecer e resistir
ao poder estatal desde que este atenda a uma parte da população com políticas
públicas e investimentos sociais medíocres e ordinários (medíocres, no sentido
de médios; ordinários, no sentido de ordem!).
III – Desobediência
Libertária no Pensamento de Henry David Thoreau
Resta entender agora a
terceira via, o terceiro tipo de
Desobediência Civil, a de Henry David Thoreau
(1817-1862) (A Desobediência Civil).
De forma diversa dos outros autores, Thoreau não coloca condições à
desobediência contra o Estado, porque isto significaria de alguma forma certa
convivência com ele, uma negociação contratualista, ou, no dizer de Max Weber
(1864-1920), uma racionalidade legal, onde a soberania poderia se submeter em
algum momento ou em algum aspecto ao poder alheio, de um, de uns ou do Único. O
“único” para Thoreau é o indivíduo, titular absoluto de sua própria vida,
escolhas e desejos, uma “propriedade” inalienável, intransferível, irrecusável,
como em Max Stirner (1806-1856) (O Único e sua Propriedade). É neste
sentido que devemos entender a Desobediência Civil de Thoreau, que não é civil
no sentido de afirmação de direitos jurídicos do cidadão, não realizados
conforme a lei, ou de direitos naturais do homem, aviltados pelo Contrato
Social. Não, a Desobediência Civil deve ser entendida agora como a recusa de
qualquer força e coerção exterior ao próprio indivíduo, o repúdio a tudo aquilo
que exerce o poder soberano sobre o Ser, o estranhamento à hiperinflação de legalidades
em detrimento dos valores pedagógicos como liberdade, ética, respeito à
alteridade, bom-senso, não violência, negociação entre partes, espontaneidade,
amizade.
Deixo claro que não esqueci, ou melhor, esqueci de propósito
a igualdade e a fraternidade, porque seria incoerente colocar esses valores do
ideário liberal-burguês, na medida em que: 1. No pensamento libertário a
igualdade pressupõe o fim da alteridade e o desrespeito ao Ser único que cada
um é e deve realizar de acordo com sua própria consciência; 2. A fraternidade
no pensamento libertário de Thoreau e seu grupo de autores, serve mais para
mascarar a submissão promíscua em que as classes dominantes submetem à ordem os
mais extorquidos, os mais despossuídos, os mais abandonados, em nome da fabricação
de “soldados” da Ordem. Sendo assim, vamos classificar o tipo de Desobediência
Civil de Thoreau de desobediência libertária.
Publicado 1ª vez em 25 de novembro de 2013
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