Verdade Jurídica:um problema epistemológico para o Direito
Existe um problema epistemológico ou de conhecimento em Kant que tem um especial valor para a filosofia do direito. Na teoria do conhecimento existem pelo menos três paradigmas claros quanto à possibilidade de se construir a “verdade” sobre o mundo e as circunstâncias que nos cercam. Como humanos estamos destinados a refletir sobre nós, as coisas e a relação entre nós e as coisas. Claro que nessas coisas estão incluídos os objetos, a natureza, os fenômenos e fatos sociais, e, principalmente, os outros, nossos semelhantes. A reflexão da mente humana sobre esse universo circunstancial, portanto, mutável e volátil, produz conceitos, enunciados, discursos. A partir deles produzimos convenções e verdades. São essas convenções e verdades que por sua vez nos obrigam a desenvolver valores morais, comportamentos éticos, relações políticas de convivência e o Direito. O Direito, seu ordenamento jurídico e sua processualística, sua estrutura estatal e seu poder de julgar e punir indivíduos, deriva desta crença e obediência às convenções que elaboramos coletivamente e que ganham o status de “verdade”. Não é por acaso que desde a Antiguidade Clássica os filósofos e pensadores se dedicam a discutir afinal o que é “a verdade” e se é possível, objetivamente, chegar até ela. Capturar o mundo em sua essência e transformá-lo em linguagem capaz de produzir ciência, no caso jurídico, capaz de produzir ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, é de suma importância, pois é desta “verdade” que se imagina que se produza a Justiça.
Mas, infelizmente para a Filosofia, para as Ciências e para o Direito, a tal da “verdade” parece ser fugidia e difícil de ser definida objetivamente. Assim, quando Sócrates e Platão lutavam contra a retórica dos sofistas, eles estavam fundando os alicerces do primeiro paradigma do conhecimento, o fato que era possível se obter “a verdade” pala linguagem e argumentação, desde que fosse o processo dialético. Pela dialética, pela oposição entre ideias e argumentações firmes e consistentes em pormenores, esgotando os detalhes da lógica – e aqui a Lógica é fundamental -, o contraditório produziria, em última análise, “a verdade”. Com esta verdade sobre os fatos e as coisas do mundo, o jurídico pode julgar,e de fato o faz, pois a argumentação dialógica, ou argumentativa, a analogia e a metáfora, são usados comumente no Direito. Não era “verdade” o discurso superficial da retórica sofista. Não era e continua não sendo, ele carece de fundamento, de profundidade. Aos operadores do direito cabe distinguir eticamente o “joio do trigo”. Mas neste caso o julgar e punir são relativamente fáceis, digamos, em relação ao concurso epistemológico de realizar a verdade e a justiça a partir dela.
O segundo paradigma veio através de Aristóteles, e neste caso, as coisas começam a se complicar. Para Aristóteles a dialética não necessariamente leva a “uma única verdade”. O processo argumentativo, a oposição e o contraditório podem, quando honestamente bem elaborados levar a mais de uma proposição, argumentação e enunciados válidos na lide. Aqui não há como distinguir facilmente “a verdade”. Aristóteles cunhou com um conceito esta situação inusitada, mas possível, de Topoi. Como facilmente se percebe as consequências para o Direito são problemáticas, pois a não ser por “consenso” ou “convenção”, com a anuência de todos os envolvidos, não há como produzir ato jurídico perfeito. A não ser, obviamente, que arbitrariamente se escolha “uma verdade” como “a verdade” e se chame a essa decisão sentencial de “justiça”. Ainda que pareça subjetivo, arbitrário e contraproducente, o fato é que o Direito positivo faz isto amiúde, entre outros casos, motivando, por exemplo, uma enxurrada de recorribilidade, liminares, habeas corpus, tutelas antecipadas, e uma diversidade de outros mecanismos protelatórios. Existe aqui um exacerbamento de autoridade e um abuso de protelação que era exatamente o que Aristóteles procurou evitar ao chamar a atenção que o Topoi deveria ser solucionado por consenso, negociação equidistante das partes (como será usado modernamente por Viehweg). No paradigma aristotélico os operadores do direito deverão se ater ao fato que a reflexão humana sobre os fatos, fenômenos, coisas e pessoas, tem a capacidade de produzir “pontos de vista” diferentes, igualmente válidos e lógicos. A realidade neste caso pode ser expressa por diversos olhares; o real é multifacetado pelo observador. Não facilita as coisas em relação à verdade jurídica, mas é indiscutível o fato, motivo pelo qual, a bem da verdade, o Direito pode se constituir como uma ciência humana, devido à sua complexidade e diversidade, caso contrário o contraditório seria sempre uma formalidade apenas, uma banalidade de linguagem.
Então, no século XVII René Descartes, sabendo das dificuldades do homem reflexivo produzir a “verdade” sobre o real, e traduzir de forma coerente as investigações sobre sua circunstância e nas circunstâncias de cada relação com o objeto estudado, procurou, pelo método científico, atribuir à reflexão humana a capacidade de obter “a verdade”. O método cartesiano é dedutivo analítico, mas o que realmente é importante é que Descartes acredita que a pesquisa científica, usando o método com rigor, poderá evitar que a reflexão, afinal o pensamento filosófico, se perca na multiplicidade de verdades possíveis (Topoi). No cogito cartesiano a possibilidade de múltiplas argumentações válidas, portanto, se restringe, na medida em que o método científico conduzirá para uma única verdade, não pela dialética argumentativa, artifício da linguagem e lógica filosófica, como em Sócrates, mas pelo rigor do método de pesquisa. Por exemplo, no caso jurídico, o Inquérito com seu instrumental técnico-científico, como a perícia, poderá - se não determinar em absoluto a decisão sentencial, pois a argumentação das partes no contraditório frente ao júri ou ao juiz poderá levar a uma decisão sentencial “inesperada” -, com toda a certeza ser determinante nessa decisão de justiça. Ainda que em Descartes não haja motivo para se descartar a validade e a riqueza da lógica argumentativa, em última análise, as provas, a perícia, os depoimentos, as testemunhas, deverão ser suficientes para determinar “uma única verdade”, no mínimo “a melhor verdade”. O Direito Positivo moderno deve muito a Descartes, porque desde o século XVII é exatamente nisso que acredita o jurista, o legislador, o juiz e o cidadão de forma geral, ou seja, que cientificamente, tecnicamente, de forma isenta e neutra pelo processo tecnocrata a justiça possa ser efetivamente alcançada. A tal da “verdade” é o que importa: se for possível convencer os indivíduos sobre ela então está garantida a validade e mesmo a legitimidade da lei e da jurisprudência.
Resumindo: em Sócrates/Platão a verdade é absoluta pela dialética. Em Aristóteles várias verdades podem ser alcançadas pela mesma dialética: então ela é relativa, ainda que não seja apenas retórica sofista. Em Descartes a verdade volta a ser absoluta - não pela dialética, método da filosofia e da linguagem -, mas pelo método científico.
Contemporaneamente os indivíduos tendem a acreditar, e a praticar, uma verdade relativa, não tanto pela contingência filosófica aristotélica, que muitos nem conhecem, mas simplesmente porque a liberdade nos regimes democráticos proporciona um relativismo do tipo “a verdade de um pode não ser a verdade do outro”. De qualquer forma, pelo senso comum ou não, isto é, afinal, uma verdade insofismável, partindo-se da premissa aristotélica. Para o Direito esta verdade já comporta problemas jusfilosóficos de monta, como se compreende do exposto acima. Mas existe algo pior (ou melhor?!) a ser colocado em termos da teoria do conhecimento.
Emmanuel Kant, efetivamente, problematiza a questão em outra dimensão. Para ele não existe forma de afirmar que existe “a verdade”, “qualquer verdade”, a verdade de qualquer indivíduo sobre qualquer coisa, fato, fenômeno, outro indivíduo, não porque cada um reflete sobre o objeto de pesquisa de forma particular, mas porque a própria reflexão não pode dar conta da realidade na medida em que “refletir significa interpretar”, e essa interpretação modifica de fato a realidade. De tal forma, qualquer conceito, enunciado, paradigma ou discurso, mesmo seguindo o mais rigoroso método científico, estarão sempre viciados por princípio: a reflexão interpretativa modifica o objeto de estudo e ao mesmo tempo o observador/pesquisador. Então agora não se trata de dizer que a verdade é relativa, mas que não existe em absoluto verdade alguma. Na verdade, pensando-se assim, o que os homens podem almejar é apenas “convencionar” entre si conceitos, princípios, e práticas que se estiverem de comum acordo evidentemente não alterarão a possibilidade da vida em conjunto e das decisões sociais que possam tomar. De fato, a realidade tal como é percebida pelo ser humano é uma ficção social!
De certa forma, na vida prática a colocação de Kant não altera substancialmente nossas vidas. Mas quando pensamos juridicamente, quando a filosofia se emprega a entender o Direito, não há como escapar da seguinte questão: afinal com que direito e validade, qual afinal a legitimidade com que uma decisão sentencial se pronuncia sob a tutela do Estado, vez que qualquer argumentação é em si mesma um semilacro da realidade? Em casos de pouca complexidade o Direito não precisa, efetivamente, de tais “requintes” da filosofia e do conhecimento para que possa efetivar seu processo de julgamento. Mas imagine-se, por exemplo, uma condenação de “pena de morte” ou mesmo uma pena de “prisão perpétua”. Nestes casos, pelo menos à luz do pensamento filosófico kantiano fica difícil legitimar tais excessos condenativos quando pensamos, não em escolher uma das verdades possíveis, mas quando pensamos que não existe a possibilidade humana de alcançar pela razão a “verdade” sobre a “realidade” e “circunstância” de formas objetivas e absolutas, destarte todo o tecnicismo metodológico a serviço de nossa mente/reflexão.
Então, no Direito, quando está em jogo a vida e a morte de pessoas, do semelhante, seria, no mínimo, prudente e uma prova de humildade que se pensasse na infinita impossibilidade e limitação humana em considerar o universo como ele realmente deve ser, e o mesmo para cada fato social que precisa ser transformado em ato jurídico perfeito. Como alguns pensadores da segunda metade do século XX (Michel Foucault, Gilles Deleuze) perceberam, esta “ficção social” sobre “a verdade” pode, exatamente por ser convencionada e elaborada a partir de enunciados e discursos, ser instrumento de poder, de um tipo de poder cujo saber está disposto em uma rede espacial de formatação de conhecimento e decisão. Algo que afinal Kant já o percebia há duzentos anos.
Pode o professor criar. Pintar na lousa colorida da realidade, traços brancos da vivência ética e existencial, ou pode lecionar à sombra de um baobá. E ainda que ele esteja em condições de extrema adversidade, como nas salas de aula deste imenso país ou nas ermas aldeias africanas, haverá sempre a sensibilidade e o comprometimento com seus alunos no anseio da infinita emancipação humana.
ResponderExcluirProfessor Sacadura, obrigada por suas aulas, estamos com saudades delas e parabéns pelo texto do blog! Eneida - UMC Villa Lobos.