Crença, Filosofia e Direito


Onde começa a Filosofia termina a crença. Onde começa a crença termina a Filosofia. Ao longo dos séculos os filósofos lutaram, e ainda lutam, para ajudar a humanidade a mudar seus preconceitos, seus dogmas, suas verdades empedernidas, suas crenças injustificadamente perniciosas. Invariavelmente o dogmatismo inquestionável e as verdades transcendentais têm por trás, a esconder, o despotismo “esclarecido” de elites autocráticas. No fundo a perseguição, ou mesmo o descaso com a Filosofia e o filósofo se deve ao seu poder de desconstruir o poder.
O Ser e sua circunstância: ou a reflexão ou o rebanho. A maioria escolhe o rebanho: o pastor sempre parece ser um bom pai, um porto seguro, um árbitro amoroso. Neste sentido a Filosofia é desnaturada, “despatrísticada”, uma tempestade indômita. Tem uma frase de uma moça com a qual ela assina seus e-mails: "Enquanto tivermos a capacidade para pensar nós não estaremos presos!" Perfeito!
A circunstância do ser é refletir sobre si e sobre o entorno. São objetos de sua reflexão a natureza, o outro, e o sentido ou justificativa da vida para aquele que nos espreita impertinente do espelho à nossa frente. Podemos duvidar da verdade, das teorias, dos conceitos, podemos desprezar a natureza e agredir impiedosamente nosso semelhante. Mas não podemos fazer nada disto com o espelho: para aquele que nos sorri com cumplicidade do lado de lá a circunstância é sempre a mesma: ou eu sou digno de respeito ou sou um canalha. Para quem gosta de dogma normativo, de poder estatal, de bálsamos medicinais e de perdões divinais, valeria a pena tentar enfrentar a si mesmo de vez em quando. Descobriria que existe afinal uma verdade insofismável: o Eu.
Existindo o ser tem que existir a reflexão, a dúvida, a crítica e o novo. Uma iconoclastia niilista pode ter mais positividade que a crença no pecado original ou algo do tipo o convívio humano só é possível pela interferência jurídica do Estado. Se imaginarmos que voltaremos um dia, não vamos querer mais aceitar o que temos por aqui e vamos tentar fazer melhor para nos receberem melhores do que pudemos ser. Alguns acham que não há volta, e então resta, à falta de Filosofia, se eleger como os escolhidos para o paraíso divino. Claro: se existe pecado original, estamos todos condenados ao inferno, e igualmente à punição terrena, menos os “escolhidos”.
Então existem os superiores e os inferiores. Talvez não voltemos, mas podemos imaginar que sim se disso tirarmos proveito ético. Talvez exista juízo final, paraíso, inferno, mas isso de nada vale se nos elimina a vontade e responsabilidade de sermos éticos. Sem ética precisamos do pastor para nos conduzir. A crença e o poder vêm daí. A Filosofia também: inversamente.
Alguém imagina condenar o outro se ele não pode escolher porque desconhece ou porque lhe foi retirado esse direito? Escolher pressupõe conhecimento e liberdade. Por sua vez o ser reflexivo, o homem fora do rebanho, torna-se responsável por seus atos exatamente porque pode refletir sobre eles nas circunstâncias que se apresentam a seu ser. Dizer “não” não basta, nunca foi suficiente e nunca o será, a não ser com o peso do autoritarismo e do descaso pela condição humana. Dignidade é apenas isso: o ser livre assumindo o peso de suas escolhas livres. Humildade é suportar esse peso como seu. Ninguém tem o direito de advogar para si a superioridade de ser “escolhido”. Nenhuma instituição é legitima se advogar o mesmo privilégio. Privilégios destroem a humanidade de cada ser.
O ser e sua circunstância: conhecimento e liberdade. No plano jurídico: ética e intersubjetividade. Jamais existiu e existirá ordenamento jurídico capaz de abraçar a imensurável e infinita condição de contraditório humano. Se todo o controverso fosse remetido aos tribunais eles simplesmente não poderiam funcionar. Não é o direito positivo, menos ainda o positivismo jurídico, que garante a convivência, a segurança jurídica etc. Ao contrário, a circunstância humana do ser no plano de sua práxis, sua intersubjetividade, o direito natural e a dignidade humana é que possibilitam a existência do ordenamento jurídico estatal. Mas para entender isso é necessária Filosofia, não muita Filosofia acredito.

Comentários

  1. Que o entardecer ou o amanhecer possa lhe trazer as inspirações que necessita para continuar dividindo a vossa sabedoria com os que tem sede de aprender e lhe digo que já aprendi algo muito importante, descobri que atrás de uma personalidade forte e marcante, existe uma pessos sensível e amavél e muitas vezes até frágil..., que demostra atrás de seus escritos o que lhe crava a alma,

    Marcia Tavares/Umc

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  2. Marcos Galassi Amaral20 de outubro de 2011 às 03:19

    A despeito das origens e fatores que venham a determinar nossas crenças, ideologias, "verdade", "certezas", dogmas; talvez bastasse a cada um de nós, indistintamente, reconhecer o óbvio: somos ínfimos, porém únicos. É esta nossa riqueza maior - a diversidade no ser, pensar, refletir, sentir, existir. Só posso ser digno quando reconheço no outro a dignidade que espero ver em mim reconhecida. O que é dignidade se não o exercício pleno das potencialidades humanas do indivíduo no finito tempo da existência? Justiça só pode haver enquanto uma experiência coletiva da dignidade. O Direito, enquanto experiência institucional, se conformou em estabecer débeis "certezas"

    Marcos Galassi Amaral

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Filosofia do Direito

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