Antropologia Jurídica



Olá a todos.

Umberto Eco diz que quem escreve tem algo a dizer aos outros. Quem escreve, escreve para os outros, mais do que para si mesmo. Se um autor não quer transmitir nada, dificilmente usará um texto para falar consigo mesmo, da mesma forma como quem não quer falar com outro fala consigo em pensamento. Mesmo Clarice Lispector sabia disso. Porque digo isto? Porque sempre escrevo para falar com os outros. Existem pessoas que escrevem melhor quando estão revoltadas. A indignação foi e é para muitos autores a mãe da poesia. Sempre vejo isso em Kafka, Saramago, Dostoiévski, Drumond, Pessoa. Eu escrevo melhor quando estou de bem com a vida. É uma deferência minha com o mundo. Uma forma de dizer "eu amo". Mas a forma sai sempre incisiva, pungente, contundente. O monstro dentro de mim sempre com o olhar crítico e inflamável a desvelar os "podres poderes", como o Frankenstein de Mary Shelley.

Este novo livro "Antropologia Jurídica: para uma filosofia antropológica do direito", tem essa qualidade ambivalente, pelo menos eu acho: de um lado é um grito de alerta contra o dogmatismo jurídico moderno, tão enraizado no direito positivista brasileiro; de outro, é uma doação enquanto pesquisa que revela a reciprocidade afetuosa nas formas de sociabilidade normativa das comunidades primevas.

Sempre me perguntei da necessidade da existência de um terceiro poder acima dos homens e da razão de uma existência tão determinada pelo medo da força policial do Estado. Depois, compreendi melhor que essa coação só é possível no mundo moderno através de instituições que deveriam estar aí para nos defender, mas que na verdade são os braços estendidos do mesmo poder de comando despótico, um poder que não serve mais aos interesses dos cidadãos, mas que precisa deles para se exercer em sua racionalidade própria de ser O Único. Aprendi isto em Foucault e outros autores que denunciaram tal situação muito antes de nós, e isso já não é mais possível desconsiderar em tudo que faço.

Esta questão do Um-Único é, confesso, o que me interessava estudar: sua formação, sua necessidade, sua perpetuação. Assim, usei a antropologia e o direito em uma relação que estuda o homem em sua dinâmica normativa, isto é, a necessidade de leis nas sociedades humanas e a participação delas na definição de uma determinada visão de ordem. Que tipos e formas de leis são mais eficientes em proteger a sociedade de comportamentos disruptivos? A formalização de um ordenamento jurídico moderno é inevitável? Ele garante a segurança jurídica mais do que as práticas e comportamentos educacionais das sociedades sem Estado? Afinal, o Estado é mesmo uma necessidade histórica no processo de civilização? Enfim, uma sociedade comunitária é possível com base em relações sociais valorativas e éticas, ao invés da aceitação pelos agentes sociais de um poder jurídico e policial formal suprasocial? O que é exatamente poder e qual a sua irreversibilidade na constituição da vida coletiva? Essas indagações permeiam este livro.

A relação da vida social com a natureza é fundante das sociedades sem Estado. Mas, afinal, a felicidade humana na sua luta por liberdade e justiça social deveria ou não abandonar a relação mística do homem com a natureza? Quando as sociedades primárias mantêm essa relação mais "holística", não só evitam o poder ascético das intituições religiosas como o poder normativo e legal do Estado. O seu paganismo não possui o ascetismo autoritário das igrejas de nossa civilização. Ao mesmo tempo, a reciprocidade educacional e as formas de julgar e punir das sociedades primárias forçam a distância para com a derrisão e derrocada da pessoa humana, que perfazem as práticas de nossas instituições de justiça. E sua intransigente refutação na produção de excedentes e acumulação, previne contra o maior dos nossos males, a propriedade privada, e a conseqüente laboração de aparelhos sofisticados para a dissimulação da verdade e a obrigação de viver obedecendo à mentira.

Agora pense-se tudo isto em relação à realidade sócio-jurídica brasileira. No nosso caso a comparação é muito mais difícil, para não dizer impossível, pois não verdeja entre nós sequer as categorias consagradas às instituições da modernidade. Somos um misto de formações medievais com república de Weimar, pontilhados aqui e ali por ilhas de ilusão neoliberal que no mundo globalizado só nos arrastou mais profundamente em nossas diferenças e desigualdades como povo, como nação e como país.

Ao final, espero ter contribuído um pouco para o entendimento de nosso existir, de nossas necessidades como seres humanos e como brasileiros, e gostaria que os futuros profissionais do direito não se deixassem encantar pelos mesmos acordes das sereias de sempre, que só fizeram agravar os males de uma modernidade sem solidariedade e de uma sociedade sem respeito pelos mais necessitados por justiça.

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