Pós-Modernidade: a luta por reconhecimento e distributividade (Parte III - Memória e Revolução)


É importante observar que neste processo de “nadificação” na pós-Modernidade, de predominância do feito sobre o fazer, com a “popularização” do discurso e a “imediaticidade” do observável, a busca por reconhecimento de grupos se coloca em plano para as possibilidades, de um lado, de não se cair em um pessimismo inoperante, de outro, não ser um ativismo sem intencionalidade coletiva. Assim, pode-se indagar sobre quais as fontes referenciais que o sujeito “tem à mão” para construir uma identidade genuína, ver respeitada sua personalidade em um mundo que prima pela indiferença e coisificação tanto quanto pela avidez monetária e perda de sentido histórico.
A dinâmica do capital leva ao “globalismo” e à deterioração das fronteiras nacionais, enquanto os grupos sociais se desenvolvem em termos de movimentos específicos e segmentos de “representação”; mas não devemos desvinculá-los e os autonomizar quanto à possibilidade de incorporar suas reivindicações e oportunizá-las coletivamente. O outro lado da moeda do modelo de particionamento subjetivo do homem, próprio do processo de produção capitalista, é a “aproximação” e o “encontro”. Até certo ponto é paradoxal que a mesma época que promove enorme aproximação com a “desterritorialização”, pelo menos do ponto de vista das tecnologias de comunicação, os indivíduos tendam a se reorganizar como certa “guetização” tanto no plano global como regional – isto acontece tanto na materialidade de suas vidas como nos ambientes de “internet”, ditos virtuais[1].
De um lado, existe uma história do homem moderno e da pós-Modernidade no Ocidente, que de forma positiva ou não, passa pelas forças de produção e as relações sociais estabelecidas nos circuitos globalizados monetaristas. A Escola de Frankfurt[2] foi pioneira na crítica da irracionalidade instrumental moderna nos termos da subordinação de todas as dimensões da vida social ao desenvolvimento tecnológico, uma subordinação que não se dá aleatória, mas definida pelo modo de produção mercantilista.
 Como escreveu Adorno (1983, p. 213):
 No interior da sociedade coisificada, nada tem chance de sobreviver que por sua vez não seja coisificado. A universalidade histórica concreta do capitalismo monopolista se prolonga no monopólio do trabalho e todas as suas implicações. Uma tarefa relevante da sociologia empírica seria analisar os elos intermediários, demonstrar em detalhe como a adaptação às relações capitalistas de produção transformadas se apodera daqueles cujos interesses objetivos à la longue (com o tempo) se contrapõe àquela adaptação. 
Os grupos de representatividade e sua luta por reconhecimento aparecem tragicamente na reflexão contundente de Zigmunt Bauman, tanto em sua obra Modernidade Líquida (2001), como em Modernidade e Holocausto (1998).  Porque se existe alguma coisa que mais abrange a pós-Modernidade é, não propriamente a tecnologia, mas o uso sistemático dela no planejamento logístico das multidões. E isto diz respeito a uns e outros! Mais: uma das mais reveladoras constatações quanto à pós-Modernidade é fazer-nos acreditar que, do ponto de vista da racionalidade instrumental, a condição de fragilidade e “indigência” humana devem ser resolvidas sumariamente pelo extermínio em massa do homem, como medida saneadora e higienista propiciada pelas tecnologias e mecanismos de gestão científicos. A história comprovou que o afastamento, isolamento ou a insistência na identidade a qualquer custo, não resultou em benefícios para as minorias, muito ao contrário.
Bauman (1998, p.37) se expressa assim:
 Sugiro, ademais, que a Cultura burocrática que nos capacita a ver a sociedade como objeto de administração, como uma coleção de tantos “problemas” a resolver, como “natureza” a ser “controlada”, “dominada” e “melhorada” ou “refeita”, como um alvo legítimo para o “planejamento social” e no geral como um jardim a ser projetado e mantido à força na forma planejada (a atitude do jardineiro divide as plantas entre aquelas “cultivadas”, de que se deve cuidar, e as ervas daninhas a serem exterminadas) foi a própria atmosfera em que a ideia do Holocausto pôde ser concebida, desenvolvida lentamente mas de forma consistente e levada à conclusão. E também sugiro que foi o espírito da racionalidade instrumental e sua forma moderna, burocrática de institucionalização que tornaram as soluções tipo Holocausto não apenas possíveis mas eminentemente “razoáveis” – e aumentaram sua probabilidade de opção. 
            Já aqui, portanto, estava dada a tentativa de “eliminar” sistematicamente as minorias, os grupos de “representação”, que irão se constituir na virada do século XX para o século XXI, como uma denúncia e uma barreira à unidimensionalidade e à “perda” de memória do homem moderno. O conceito de unidimensionalidade foi desenvolvido por Herbert Marcuse, (1982, p. 32), nos seguintes termos:
     O aparato produtivo e as mercadorias e serviços que ele produz “vendem” ou impõem o sistema social como um todo. Os meios de transporte e comunicação em massa, as mercadorias casa, alimento e roupa, a produção irresistível da indústria de diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através destes, ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos a disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida – muito melhor que antes – e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensional no qual as ideias, as aspirações e os objetivos, que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação, são repelidos ou reduzidos a termos desse universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extensão quantitativa[3]. 
Por isso Bauman insistia pela análise da barbárie do Holocausto, que: “Este aumento de probabilidade (de opção conforme a razoabilidade instrumental) está mais do que casualmente ligado à capacidade da burocracia moderna de coordenar a ação de grande número de indivíduos morais na busca de quaisquer finalidades, também imorais.” (1998, p. 37).
Os horrores das duas Grandes Guerras da primeira metade do século XX, bem como as que se sucederam ainda ao longo das décadas seguintes[4], demonstra aparentemente a dificuldade de a humanidade suportar, em termos pós-modernos, a ruptura provocada na acomodação das culturas nacionais e nos idealismos e fundamentalismos pela multidiversidade, dificuldade essa que tem no instrumentalismo e nas “maquinarias” de gestão das massas sua causa maior.
Desta forma, pode-se afirmar com propriedade, como o faz o professor Paulo Roberto Monteiro de Araújo (2016, paper(a)), que:
 Daí ele dizer (Heidegger) que ao mesmo tempo em que o homem constrói o mundo, tecnicamente, como objeto, ele encobre o caminho para o ser. O homem, então, fica afastado do seu ser. Deste modo, o homem da idade da técnica está contra o próprio ser. O resultado desse afastamento é, metaforicamente, uma espécie de despedida do ser. 
Mas o liberalismo de mercado e a versão contemporânea do neoliberalismo, que “pode ser visto como uma tendência a estender e intensificar a monetarização das relações sociais” (HOLLOWAY, 2003, p. 139), só aparentemente torna invisíveis os movimentos sociais reivindicatórios, como necessidade de estabelecer uma ordem adequada à reprodução do capital, uma ordem adequada às especulações com o dinheiro – o movimento incessante é a realidade do capitalismo, e a sua dinâmica torna instáveis todos os mecanismos técnicos da ordem e as relações sociais em todas as dimensões da totalidade social. Entretanto, neste processo, de fato as sociedades pós-modernas demonstram uma “capacidade reativa” de integrar os movimentos de identidade: a identidade é o próprio mecanismo do sistema, incentivando-o, na medida da mesma lógica de separação entre o fazer (trabalhador) e o poder (sobre ele), do particionamento desse fazer e do saber, do trabalho abstrato sobre o trabalho objetivo, do feito sobre o fazer. Seria ingênuo imaginar que o capital desdenharia desses movimentos de identidade, tanto quanto parece um erro imaginar que eles não têm seu peso nas contraofensivas críticas ao status quo. A mesma fragmentação e separação existentes no trabalho material produtivo se estendem a todas as práticas das demais dimensões sociais, à consciência e à potência de contestação – logo que um grupo ou determinada manifestação adquire alguma importância, mesmo que regional, ela é impedida com violência ou, se disso não resultar a sua aniquilação, incorporada ao movimento de transformação constante do capital.
As identidades e as diferenças não importam a não ser como mecanismos de pertencimento e aprimoramento da lógica de partição e segmentação, a mesma que possibilita a acumulação de dinheiro como capital e a gestão conveniente das massas[5].
Como afirma Holloway (2003, p. 155):
 Existe um mundo de diferenças entre uma luta que simplesmente identifica (que diz “somos negros”, “somos irlandeses”, “somos bascos”, como se essas fossem identidades fixas em lugar de ser momentos de luta) e uma luta que identifica e, em cada momento de identificação, nega essa identificação: somos indígenas-mas-mais-do-que-isso, somos mulheres-porém-mais-do-que-isso. Enquanto esta última se move contra a identificação no próprio processo de afirmar a identidade, a primeira é facilmente absorvida em um mundo fragmentado de identidades. Para a estabilidade do capitalismo não importa a composição particular das identidades (negro é o mesmo que branco, basco que espanhol, mulheres que homens), mas a identidade como tal. Uma luta que não se move contra a identificação como tal se mistura facilmente aos padrões cambiantes de dominação capitalista. 
Então, de um lado a memória pode ser vista como a volta a algo que já foi “superado”, ou algo que alimenta o novo, que clama por transformação. Mas, por outro, a memória constitui a cultura, e esta é a possibilidade de inserção do indivíduo no coletivo. Do ponto de vista da cultura, o “superado” nunca é deveras superado[6]. Ao contrário, é pela memória que o indivíduo localiza seu pertencimento, pelo qual pode avançar qualitativamente em relação ao realizado e já vivido por seu grupo, refazendo a trajetória do mesmo tanto quanto a sua própria trajetória, aceitar ou rejeitar. Uma determinada historiografia não está condenada ao mesmo destino, mas pode alçar voos maiores se o imaginário objetiva a descontinuidade e não a objetividade recorrente. É nisso que, de certa forma, os movimentos sociais e as contestações que visam à afirmação de escolhas minoritárias nas sociedades contemporâneas, acreditam. Elas não perderam a memória coletiva e nem parecem querer repetir uma existência através de valores e narrativas “já superadas”.
Contudo, isto não significa necessariamente que esses indivíduos e grupos queiram ficar, infelizmente, fora da história dada, da comunidade, da sociedade ou repudiar e vilipendiar os atributos morais e comportamentais coletivos e fundamentais de sua formação, não pelo menos de forma significativa. Isto é compreensível em termos: na medida em que o sistema capitalista por suas exigências de trabalho segmentado e subordinado à separação entre o saber, fazer e poder, não podendo, pois, realizar a totalidade da potencialidade humana na experiência da vida, contribui para que as minorias e os diversos grupos de representação se vejam obrigados a se afirmarem antes de tudo como parte de um homem único, com direitos e deveres universais, e é este homem genérico que procura pertencimento e reconhecimento. Como afirma Jorge Luis Borges (2001, p. 78): “Em épocas de apogeu, a conjetura de que a existência do homem é uma quantidade constante, invariável, pode entristecer ou irritar: em tempos de decadência (como estes) é a promessa que nenhuma afronta, nenhuma calamidade, nenhum ditador nos poderá empobrecer”.
Ao mesmo tempo, as pessoas querem fazer história a todo o momento, e os que se consideram minorias e exigem reconhecimento a valores e comportamentos minoritários, mais ainda! Elas não só usaram, como usam a memória para avançar de forma “desviante”, garantindo a possibilidade de abrir o imaginário de origem, como o exigem dos demais membros com os quais compartilham seu cotidiano e sua existência coletiva, pelo menos no nível da aceitação e respeito à diferença. O sistema capitalista é bifacial! Ele apresenta muitas faces a partir de sua natureza bifacial, dado que essa sua natureza é a necessidade da separação entre o fazer e o poder. Esta duplicidade está, pois, na natureza do sistema do capital e na origem de sua reprodução pelas relações sociais reformadas nos movimentos sociais contemporâneos, por sua atualização e transformação.
Se antes da construção dessas identidades e seu reconhecimento, está a memória irrecusável em relação aos sistemas mercantis pós-modernos, isto não significa obrigatoriamente que ela seja obstáculo à descontinuidade do indivíduo, do grupo, da sociedade. A tentativa de “pensar sem categoria” ou “de não dizer nada antes da investigação” (FICHTE, 1984)[7], é mais uma denúncia a certo tipo de continuidade historiográfica, naquilo que se entende como “monumental” na constituição da cultura, do que um abandono absoluto da mesma. Pode-se pensar, então, que se essas “categorias” acabam por constituir os enunciados e as metanarrativas na filosofia e nas ciências sociais de forma geral, amalgamando a existência a “verdades” que se eternizam nas mentes humanas, também essas “categorias” pelas micronarrativas são a possibilidade de ruptura de um ainda-não da ação cultural, popular ou erudita: “Este ainda-não não só pode ser visto na militância política aberta, como nas lutas da vida cotidiana, em nossos sonhos, em nossos projetos contra a negação de nossos projetos, em nossas fantasias, desde os mais simples sonhos de prazer até as criações artísticas mais rupturistas.” (HOLLOWAY, 2003, p. 225).
A memória tem a ver com o passado, o que já aconteceu, pode-se esquecer dela ou pode-se lembrar. A pós-Modernidade que acompanha a separação perniciosa do fazer do feito, tende a separar igualmente o presente do passado, não vendo o tempo como um contínuo, um processo, mas do mesmo modo cronológico de contar o tempo do relógio. Cronológico como o quantum de trabalho, recria irrecusavelmente a “memória por migalhas”, quando a não avilta, deturpa e oblitera. Então é plausível que se diga que o passado sombreia a compreensão da história - por trás disso está a moderna historiografia francesa dos costumes (ELIAS, 1991), dos Annales (BURKE, 1992), com suas micro-histórias, esse estudo particular particionado dos acontecimentos e fenômenos humanos, que se de um lado pretende fugir da “verdade” escrita pelos vencedores, por outro lado, impossibilita a reescrita de forma coletiva e que remeta à construção pelos seus protagonistas.
“Desmerecendo” essa vibração significativa constitutiva da humanidade, em suas semelhanças e diferenças, impele o coletivo para a individualidade, para a identidade que nunca se torna coletivamente universal, abrangente em sua alteridade de aproximação e afeto – na verdade o discurso do particular só interessa ao capital, a reforçar sua própria natureza individualizada e individualizante, sob o pretexto da individualidade dos sujeitos que não pode, destarte, ser encaminhada de forma isolada e fragmentada, a não ser como metanarrativa falseada pelo sistema de valor, de valores de troca. Os grupos precisam pensar nisso: “A luta contra o capital é a luta contra a identificação. Não é a luta por uma identidade alternativa.” (HOLLOWAY, 2003, p. 152).
Uma narrativa contém toda a expressividade da experiência vivida que varia em grau entre a pessoalidade e impessoalidade, entre a identidade (particular) e a personalidade (subjetiva a partir do coletivo); mas de todas as formas tem que ser interpretada. Hayden White (2011, p. 588) indaga com propriedade: “A história é uma atividade interpretativa, qual é sua política?” Aquilo que se lê, pelo plano cultural, superestrutural, portanto, não é o mesmo a cada momento, o que significa que a cada momento uma historiografia se forma com base em um repertório que não é só pessoal, mas sobre a influência de uma memória que não é apenas isso, ela é igualmente impessoal (coletiva). É por aqui que podemos então afirmar que “coletivamente” a memória funciona como o elo de continuidade “do já dado”. Mas mesmo sendo assim, parece irrefutável que para o Ser é inescusável essa necessidade de recuperação e preservação da memória, possivelmente não tanto pelo repetir do “já vivido”, por-mim ou pelo-outro, mas pelo registro e importância de uma experiência tida como “própria”, como o perpetuar de uma “existência” que se sabe efêmera, mas não abdica de deixar rastro, de se expressar, construir de alguma forma a “permanência” diante da finitude.
Hayden White, no centro do debate sobre a historiografia nova, está ciente, portanto, da questão do “interesse”, do poder e da política na formulação da memória histórica, na perpetuação daquilo que servirá de fundamento para a construção de um sentido. Com o pretexto da objetividade e cientificidade, o discurso da pós-Modernidade continua a usar a memória como promoção de uma ordem específica, mas superficial de fato e de direito. Historiadores, filósofos, juristas, políticos, gestores e cientistas sociais de forma geral apelam à memória ora para enaltecer as conquistas do passado e as lições mais valorativas e morais dos ancestrais, ora como algo que, em certas condições de interesse, deve ser esquecido, sinônimo que é daquilo que é velho ou que não tem mais utilidade. A “verdade”, de uma forma ou de outra, aparece acima do “real”. De uma forma ou de outra, a memória tende a aparecer contemporaneamente como serva, uma memória implantada mais do que refletida, promovendo verdadeiro corte naquilo que pode e deve ser considerado ou não. De resto, uma mesma cisão entre o que é pertinente a determinadas classes saberem e usufruírem, ou não, o que podem ou não podem fazer comandadas pelo poder-sobre.
Se um historiador aparece como um sujeito de boa-fé contando a história “como ela de fato aconteceu, quanto ao mesmo tempo serviam ao estado ao castrar ou neutralizar ideologias abertas, [...] e agiam como se não houvesse nenhum componente ideológico em suas próprias obras!” (WHITE, 2011, p. 588), é porque, sob o disfarce da objetividade existe um manto de manipulação da memória que ao mesmo tempo em que cria o “eu pertenço”, cria a “má-consciência” de que nos falava Nietzsche (1983). Essa “má-consciência”, tratada objetivamente para a “ilusão da verdade”, contudo, é conservadora e por vias das tradições e dos costumes implanta a própria memória sob os auspícios de grupos e elites nas narrativas monumentais estruturantes “[...] da natureza da sociedade capitalista avançada, uma sociedade que se torna cada vez mais estruturada e mais determinante da natureza das escolhas dos indivíduos, enquanto ao mesmo tempo lhes fornece a sensação de que suas escolhas são livres!” (WHITE, 2011, p. 580). Ou seja, se se quer pensar em uma ontologia da história ocidental pós-moderna, ela se encontra por dentro de um modelo de organização econômica e social específico só encontrado na pós-Modernidade.
Do ponto de vista das metanarrativas historiográficas, ao oficial pode-se contrapor uma arqueologia pela “porta dos fundos”, uma narrativa que privilegie aquilo que a prática discursiva do vencedor e do poder preteriu e não privilegiou (ROCHA, 2011). À orientação memorial pseudoobjetiva do viver, pode-se opor o niilismo reformador de uma má-consciência continuamente projetada para um bem viver (NIETZSCHE, 1983). Neste sentido que se pode afirmar que os movimentos sociais hoje potencializam a “negação da negação” – a crítica à separação do fazer do poder e da subordinação deste fazer àquilo que é feito, ou do homem às mercadorias, é a ação que pretende rebelar-se coletivamente contra o que o sistema de mercadorias nega ao homem, a sua totalidade, a sua humanidade.
Entretanto, “a negação da negação”, para a reinvenção do homem pós-moderno na luta pelo reconhecimento da identidade e da ecceidade, algo da memória é necessária, como na Aufhebungen (“superar conservando”) de Friedrich Hegel[8]. Nestes termos, para uma eticidade refundante da história, White propõe a depuração da memória historiográfica oficial em termos daquilo que seria sublime em oposição ao belo. O autor afirma que:
 (...) o modernismo nasce da constatação de que não vivemos mais em um mundo dotado de uma essência ou uma substância, (...) em outras palavras, o modernismo nasce do sentimento da morte da substância no sentido aristotélico – a ideia de que por trás das aparências há algum principio organizador que dota as aparências de sentido e identidade. (WHITE, 2011, p. 583). 
Não obstante, mesmo a construção de uma consciência histórica “sublime” como Hayden White (2011) apregoa, não paira acima da própria história dos homens, do Ser que está fadado à consciência de si, cuja memória o localiza, a um tempo, para o estranhamento e para a aproximação. A busca pelo reconhecimento do Eu ou do Grupo, o escape do “implante” que leva à servidão, se não tem esperança no mundo coisificado das mercadorias, também não prospera em esperança no isolacionismo e na solidão. Por isso Lev Vigotski (1995, p. 90) unia a linguagem à memória: “A própria essência da memória humana consiste em que o homem recorda ativamente com ajuda dos signos”[9]. A consciência histórica ou memória – objetiva (geral) e subjetiva (particular) – são construções culturais, quer dizer, mediadas por signos de linguagem usados como ferramenta de aprendizagem, domínio sobre a natureza, experiência coletiva onde as ferramentas vão pela mão humana onde seu organismo não pode ir, e além.
Não por acaso, Pierre Nora chega a opor memória à história, aquela como “sagrada” e esta como “prosaica”: “A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica” (1993, p. 9); e em seguida essa necessidade de fazer a historiografia da própria história para avançar além da memória: “A história é a deslegitimação do passado vivido. O movimento da história, a ambição histórica não é a exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulação.” (1993, p. 9).



[1] Mais de um bilhão de indivíduos fazem parte de algum tipo de grupo no Facebook; chega a 2,6 bilhões o total de usuários com perfil no Facebook: isto significa que quase 50% (um a cada dois) dos usuários fazem parte de algum tipo de grupo de relacionamento só no Facebook (TECMUNDO. 2,6 bilhões de pessoas participam de grupos no Facebook. Tecmundo, 01 de fevereiro de 2016. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/facebook/94824-bilhao-pessoas-participam-de-grupos-facebook.htm. Acesso em: 17 de fevereiro de 2019; VALENTE, Jonas. Chega a 26 bilhões de usuários no mundo com uso de plataformas. Agência Brasil, 30 de outubro de 2018. Disponível em; http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-10/facebook-chega-26-bilhoes-de-usuarios-no-mundo-com-suas-plataformas. Acesso em: 17 de fevereiro de 2019).
[2] Conjunto de teorias críticas propostas por um conjunto de pensadores que vai da década de 30 até a década de 70, cujo foco é precisamente a crítica à ideia que a ciência proveria ao homem o bem estar e a paz apregoada desde o século XVIII, por exemplo, ideias presentes no ideário da Revolução Francesa (1789) e o desenvolvimento dos estados liberais de livre mercado. Normalmente são considerados pertencentes à escola de Frankfurt Adorno, Horkheimer, Benjamim, Habermas (dos primeiros escritos) e Marcuse.
[3] John Holloway retoma a pertinência e importância da obra de Marcuse quanto à unidimensionalidade do homem moderno e igualmente a possibilidade de resistência pelos grupos minoritários e/ ou desprotegidos: “O pensamento positivo e a racionalidade instrumental impregnaram a sociedade de maneira tão absoluta que ela se converteu em unidimensional. A resistência significativa só pode provir das margens, “(...) o substrato dos proscritos e os ‘estranhos’, os explorados e perseguidos de outras raças e de outras cores, os desempregados e os que não podem ser empregados”. Não se trata de que este “substrato” tenha consciência revolucionária, mas que “(...) sua oposição é revolucionária inclusive se sua consciência não é”. Deve entender-se que a prática política inconsciente dos marginalizados corresponde de alguma forma à prática teórica consciente dos teóricos críticos marginalizados academicamente.” (HOLLOWAY, 2003, p. 134-135).
[4] Por exemplo, em 1950 (Coréia), 1960 (Vietnã, Israel) e 1970 (África); ainda mais contemporaneamente na Bósnia (1990), na Ucrânia (2014), no Oriente Médio (Líbano, Iraque/ Golfo, agora na Síria (2011)), na Ásia (Afeganistão duas vezes (1980 e 2001)); ou por vias dos fundamentalismos religiosos hoje (Hezbollah, Talibã, Al-Qaeda, ISIS).
[5] Antonio Negri (Biocapitalismo, 2015) chama a atenção que o atualmente deve-se distinguir o conceito de massa do conceito de multidão, pois as massas carregam uma necessidade de uniformização a ser produzida por uma vanguarda revolucionária, enquanto a multidão está junta não em torno dessa possibilidade mais ofensiva de mudança radical, mas como desejos singulares que unidos são uma potência transformadora. Em suas palavras: “O comunismo foi produto de uma luta de classes massificada, enquanto hoje nós nos encontramos diante de um trabalho singularizado. Esta diferença não é uma simples diferença dos modos de produção, e sim uma diferença de estruturas históricas, produtivas e ontológicas. Há, então, uma diferença ontológica fundamental entre um conceito de massa, direção, vanguarda – porque a massa deve ser conduzida – e um conceito de multidão, de singularidades potentes, isto é, com uma potencia e um desejo singularizados.” (NEGRI, 2015, p.75).
[6] O imperador romano Marco Aurélio (121 a 180 d. C.), em suas Meditações, vaticinava: “Quem viu o presente viu tudo, não só o que existiu desde a eternidade como tudo o que haverá no tempo infinito, pois tudo tem a mesma origem e o mesmo aspecto.” (Livro VI, §37, 1973, p. 296).
 [7] “Portanto, quanto ao fundamento ou à falta de fundamento de nosso saber, não é possível dizer nada antes da investigação; e a possibilidade da ciência requerida só pode ser aprovada por sua efetividade.” (FICHTE, 1984, p. 14).
[8] “Os sentidos de supressão, conservação e elevação estão assim presentes conjuntamente; negatividade, positividade e progresso são reunidos em um mesmo processo. Com isto se torna possível o projeto de uma exposição que não visa apreender o “ser” estático do saber, isto é, que não seja uma doutrina fechada sobre si mesma com pretensão de verdade, mas que, diferentemente, capte o movimento do “vir-a-ser” do saber – um sistema que recolhe as “determinidades” passadas e permanece aberto a novas determinações. Nesta direção, pode-se afirmar que o sistema hegeliano é constituído por uma série infinita de Aufhebungen.” (Prof. José Pinheiro Pertille (UFRGS). Entrevista: Superar, aniquilar e conservar – A filosofia da história de Hegel. Por Márcia Junges e Andriolli Costa: Revista do Instituto Humanitas Unisinos (On-Line), Edição nº. 430, de 21 de outubro de 2013).
[9] La propria essencia de la memoria humana consiste em que el hombre recuerda activamente com ayuda de los signos.” (VYGOTSKI, 1995, p. 90).

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