Heidegger e "A Que Horas Ela Volta?"*

Depois de “Central do Brasil”, este
é um dos melhores filmes que se fez em nosso País: oportuno e sensível!
Eu não assisto muito mais filmes “realistas”,
menos ainda esses que sobem aos morros e mostram toda a miséria e violência
humana. não porque eu acho que eles são inverídicos ou sensacionalistas (embora
muitos o sejam, preocupados mais em bilheteria que outra coisa!). mas simplesmente
porque vou ao cinema (e eu vou muito!) para me “sensibilizar”! não vou ao
cinema para ter um “choque de realidade”. o dia a dia é suficiente para saber o
que é a barbárie da “realidade”. por outro lado, o cinema não é apenas uma diversão,
mas uma “arte” capaz de nos transportar para o sonho: talvez apenas ali, no
sonho, exista afinal a “realidade” com menos barbárie.
“A Que Horas Ela Volta?” é uma arte!
Ana Muylaert, a roteirista e diretora, sabia o que queria, e sem querer ser retórico,
citaria Edgar Allan Poe: “Nada é mais evidente que o fato de que todo argumento
merecedor deste nome deve ser elaborado para o seu desenlace” (“Filosofia da
Composição”). mas o que pretende o
filme? por que ele é oportuno e sensível?
Aparentemente o filme mostra o
cotidiano comum de muitas famílias de classe média alta, em S. Paulo, que
possuem vários empregados domésticos, normalmente nordestinos. esta é, pelo menos
em parte, a “oportunidade”: claramente, depois das manifestações racistas
contra os nordestinos, por parte das classes mais favorecidas, e desavisados
preconceituosos de todas as matizes, em S. Paulo e no resto do país,
principalmente depois das eleições de 2013, estes nossos concidadãos são mal
tratados e perseguidos com extrema violência. existe uma verdadeira “xenofobia”,
racismo e violência explícita contra os nordestinos, a menos que façam sucesso
e apareçam como protagonistas das ilusões “globais” da sociedade de mercado.
Aliás, só para esclarecer, “racismo”
não é apenas o preconceito e perseguição que têm origem na cor da pele, p. e., branco
e negro, mas a violência explícita ou dissimulada contra toda a diferença ou
escolha, i. é., o machismo - a violência do homem contra a mulher que virou um
marco da desigualdade e preconceito em solo pátrio, acobertado muitas vezes
pelo senso comum e pelas autoridades -, é um racismo consciente!
Portanto, aparentemente disse eu,
este é o objetivo do filme: denunciar esse preconceito. mas o filme é mais do
que isso, muito mais. ao colocar a vida desnudada da babá e empregada doméstica,
pernambucana, apelidada de Val, que mora em um quartinho na mansão do Morumbi de seus
patrões, há mais de dez anos, o filme também denuncia a desigualdade de
classes. isso fica claro quando Val, na sua folga, vai para a periferia onde
tenta se divertir, sozinha!, em uma lanchonete de gafieira. ali, bem
como mais para a frente, fica espelhada a realidade nordestina, e não só
nordestina, em S. Paulo, o Estado que se orgulha de ser o mais desenvolvido do
País, confrontando assim a desumanidade na perversa e abismal sustentação da desigualdade
entre classes no Brasil. quiçá a desigualdade seja a origem de todos ao grandes males desta Nação!
Val: mulher e nordestina em S.
Paulo: existe aqui racismo e descaso, desamor
suficiente! para mim, aqui está a sensibilidade do filme, o que mais interessa
em uma obra de arte. nós brasileiros entramos feitos polichinelos
no engodo do Tio Sam, e nos transformamos em mais uns quantos milhões de
engrenagens metálicas, frias e calculistas, peças de reposição de uma máquina
de morte, insensível e ignorante. a “grande máquina” chama-se mercado; o “dono
da quitanda” chama-se capital! o Brasil é a “quitanda”, claro, ou pior, apenas
uma parte periférica dela!!
“A Que Horas Ela Volta?” se repete
apenas duas vezes no filme: no começo, na boca do menino, filho da classe média
alta do Morumbi, Fabinho, quando pergunta para a babá sobre sua mãe
omissa, distante, insensível, calculista e midiática; depois, no final, na boca
de uma jovem adolescente, Jéssica, nordestina, filha da empregada doméstica
Val, esta que por força da pobreza e do machismo, se vê obrigada a ficar
distante da filha. somos tão obtusos e ingratos que achamos, pelo menos uma
grande maioria, a classe média “coxinha” e os privilegiados, que os nordestinos
vêm para as cidades do Sudeste porque "querem": na verdade, eles não têm
prazer em fazer isso, são obrigados pela fome, pelo descaso, pela violência, mas depois amam nossas “grandes” cidades como se fossem
as suas. e nem isso percebemos, empedernidos!
Veja-se: neste caso esta pergunta
singela “a que horas ela volta?”, extrapola as questões de classe e de raça! A
simples pergunta das crianças (das duas classes!) dá o tom de todo o enredo. toda
a sensibilidade do roteiro e da diretora está aqui: o filme é atemporal, vai
muito além do preconceito social e racial. esta singela pergunta na boca de
duas crianças em situações sociais, raciais e mesmo geográficas tão distantes, é
universal porque recoloca o homem como Ser,
possuidor de um amor e sensibilidade universal porque natural. aqui está a
humanização, a volta do amor perdido nesse turbilhão técnico-científico,
enlatado e despersonalizado que é a modernidade e o homem contemporâneo. esta pergunta, “a que horas ela volta?”, nos
aproxima a todos, aproxima e humaniza a humanidade!
As perguntas são feitas por uma
criança paulistana, em S. Paulo, e uma criança pernambucana, no Nordeste, e, depois
se descobre, efetuadas no mesmo momento – estas duas crianças têm a mesma idade!
Martin Heidegger (1889-1976) explica em sua filosofia
que o homem se desumanizou ao colocar como primazia a “razão” – no grego, logos -, substituindo a “natureza” – no grego, physys. isto quer
dizer, de forma simples, que existe uma distorção filosófica no humano, já
desde a criação da filosofia analítica pelos socráticos (sec. V a. C.), abandonando
a “essência” do Ser em virtude da lógica racionalista, o que redunda na
supremacia moderna e inextinguível da coisa (res) sobre o humano (ontos).
malfadadamente o humano não pode
abandonar a “razão”, e por isso condenado está a ser dominado pelo tecnicismo (techné) e a servir à “coisa”, i. é., a
perder o amor, a aproximação, o afeto. as catástrofes apocalíticas da
modernidade desde meados do séc. XIX, até nossos dias, midiaticamente
reproduzidos ao vivo nas ruas de nossas cidades e nas nossas “máquinas” de
lazer, inclusive as portáteis que nos acompanham diuturnamente (não vou aqui
repetir esses eventos conhecidos por todos por uma questão de piedade e tributo
à sensibilidade!), são a prova indiscutível que a “razão científica” produziu
no cogito humano e em nossas condutas a barbárie!
É isso que “A Que Horas Ela Volta?”
denuncia; é isso que a pergunta “a que horas ela volta?” resgata: o amor
perdido, a aproximação distanciada, o afeto grotescamente repudiado, o humano,
o Ser visto com nojo. mas ainda somos humanos – acho?! a inocência melancólica e
solicitante de duas crianças tão distantes nos une de novo na essência
humana do Ser: a sensibilidade na procura do colo.
Val, a empregada pernambucana, no
meio de uma classe tão diferente da dela (e existe classe média, do ponto de
vista sociológico?), longe, contra sua vontade, da filha, morrendo de saudades
dela, se apaixona pelo menino que não é seu, que é filho de seus patrões, mas
cujos papeis de pais tem nada a dizer do afeto que uma criança deseja: uma mãe
pedante e tomada pelos holofotes da mídia e do marketing e um pai destroçado
pela falta do amor da mulher, fria e distante, e que tarde demais percebeu que
os “amigos” são aduladores perversos em troca do seu dinheiro. o Dr. Carlos,
como Val o chama, era pintor; explica para a jovem Jéssica (não vou falar
tudo!) que parou de pintar porque descobriu ser falso que era um bom pintor,
pois tinha sido tolo e presunçoso o suficiente para se convencer do que os
aduladores lhe diziam, claro, por comodidade. um artista, portanto, destruído
pela hipocrisia e interesse perverso enredado de valores banais e mercadológicos:
a arte que se insensibiliza por conta do capital.
Termino de volta a Heidegger: “a
ciência inconclusiva” acredita ser o que não é, conclusiva nos termos da
pesquisa científica. produz objetivações (Michel Foucault) técnicas e
formas desumanas de dominação e logística de corpos para uma produtividade mercantil
insensível, mais, nas palavras do filósofo, do que aquilo que é humano e que
aparece na boca “de uma grande criança, que faz grandes perguntas“, perguntas
impossíveis, perguntas de des-ocultamento (a-lethea). são essas perguntas
des-concertantes que nos humaniza, pois o humano é, antes de tudo, a não-resposta-indomável,
no lugar do qual nos aproximamos com a sensibilidade e o amor. o amor de Val e
de Fabinho, o amor de Val e Jéssica, a tentativa frustrada de amor entre o Dr. Carlos
e Jéssica – um resgate da obra de arte e da beleza perdida! -, o amor procurado,
mas tardio, de uma mãe burguesa – pelo menos em sua consciência! -, e seu
filho.
“A Que Horas Ela Volta?” é um filme que
aspira a uma obra de arte pelo resgate da beleza da sensibilidade humana. apenas
um cuidado: como Thomas Mann escreveu, “Morre o artista quando
se torna homem e começa a sentir.” (“Tônio Kroeger”). deve-se “sentir” como criança que
faz perguntas inusitadas e impertinentes: isto resgata o artista!
*(Publicado originalmente em 16 jan 2016)
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