Sobre a Água, Sobre a História, Sobre o Direito


Um destes dias meu pai de 85 anos me disse: "estão dizendo que a água potável vai acabar em 2030. eu não vou estar aqui!"

Fiquei calado, pensativo. mas é claro que ele vai estar aqui! mas como falar isso a ele sem parecer meloso ou mesmo pretensioso? fiquei calado!

"Pai, o senhor vai estar aqui! vai estar como sempre esteve e como sempre estará. mesmo quando o senhor não for mais 'visível', e mesmo quando eu não for mais 'visível', o senhor vai estar aqui!"

A história e os homens se confundem: não somos daqui, dali ou de acolá. somos o ontem que se projetou no agora que se perpetua no amanhã! a cada passo e em cada pegada, cada indivíduo marcou a sua passagem neste existir, principalmente se 'viveu' (para Heidegger, viver é fazer valer a vida, escolher, produzir-se, sofrer, satisfazer-se etc.; existir qualquer coisa existe!). os índios Sioux, dos Eua, diziam (acabaram com todos!) que um homem se conhece pelas pegadas que deixa. todos deixamos pegadas! para o 'bem' ou para o 'mal': nas obras, nos filhos (uma obra e tanto!), nos escritos, nos jardins ou nos vasos de nossas residências, nos discípulos, nos mestres (eles sempre aprendem!), nas artes, na política (a de todos nós!), nas escolhas, nas ações, nos discursos, nos olhares, nos presentes que damos desinteressadamente, no coração que nos sentiu etc. Borges escreveu que paradoxalmente os homens morrem, mas as coisas ficam.

E porquê estudamos a história, porquê estudamos a nós mesmos no ontem? porque queremos nos entender hoje, mas as respostas mais importantes são do passado. na verdade, não somos, não estamos, apenas continuamos. tem uma frase fantástica de Niemeyer: "nós viemos aqui, contamos uma história e vamos embora; viver é simples assim". estudamos a história porque queremos nos conhecer, portanto o fundamento do conhecimento histórico é o infinito mal-estar do homem na busca infinita de si mesmo.

Todavia, pode-se caminhar para trás ou para frente, para cima ou para baixo, mas a 'entrada' na história é que faz toda a diferença: pela 'porta-dos-fundos', ou de forma regular, pela 'porta-da-frente'. quando vamos pelos fundos temos que passar pela 'sujeira', pelo lixo da área de serviço, pela roupa suja esperando ser lavada, pela pá-do-lixo e pela vassoura, pelos panos-de-chão, talvez pela escova e escovão usados nos banheiros, pela louça com restos depositada no lava-louças, enfim, por tudo aquilo que é a vida real dos homens. se entramos pela frente, vamos achar a sala de visitas limpa e o melhor que temos para embelezar a nossa casa. a porta-da-frente não nos pertence, e pode contar uma história superficial ou intencionalmente 'limpa'. geralmente na frente e na superfície está o conto dos vencedores, dos poderosos e apenas o senso-comum transformado em 'verdade'.

Bem, o direito não é diferente. nada diferente. a história dos homens jurídicos é a história de sua ordem. a história da ordem jurídica é a história da ordem dos homens em processo histórico de existir, de viver, de produzir a si e à consciência pela ordem das coisas que lhes reduz o medo, a fragilidade, a indigência (a necessidade como indigência, diz Nietzsche!). credores e devedores são, por exemplo, personagens que estão na origem das agruras jurídicas, de um lado, da dívida, da obrigação, de outro, da cobrança, da escravidão. Marx nos ensinou: procure-se a vida do existir humano material e concreto, e ali se encontrará a origem de toda a organização política-jurídica soberana. se quando faltar água potável a humanidade ainda for essa, nos mataremos sedentos como animais, ou quase isso, como no prólogo do filme 2001 Uma Odisséia no Espaço (afinal uma obra de arte de um homem: Stanley Kubrik!).

A água, pode acabar, a história esvair-se líquida entre nossos dedos, e o direito extinguir-se na desumanidade e bestialidade humanas. pode. mas até o último suspiro do último homem sempre estaremos aqui, ali, acolá. ainda estaremos todos aqui, meu pai. mas eu entendi o desabafo, ou o recado, ou ambos: contudo, talvez, olhando a nossa história, afinal, possamos evitar, com o direito, ou sem ele, que voltemos ao animalismo do prólogo daquele filme. e então, possamos ver a face de deus no brilho espelhado da água dos mananciais jorrando na terra.

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Livro Ética no Direito

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