Sociologia e o Jurídico: uma aula sobre seus fundamentos e violência


Quando Auguste Comte propôs a sua “física social”, o século XIX já estava adiantado. Secretário de Saint-Simon, Comte herdou deste o gosto pela civilização, pela ciência e desenvolvimento tecnológico. Ambos, pais da sociologia, acreditaram no potencial da indústria e nas forças produtivas do sistema burguês, como forma de emancipar as sociedades europeias, e a humanidade, da miséria, atraso e crendice. Saint-Simon chegou mesmo a dizer que o operário da insalubre fábrica deveria ser bem remunerado e usufruir dos ganhos de capital do patrão. Neste pormenor, Comte jamais se pronunciou. Fez, querendo ou não, o jogo do liberalismo de Adam Smith e John Locke. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que nascia progressista na defesa do potencial tecnocientífico e fabril, a sociologia fazia o jogo conservador da classe dominante, ainda que revolucionária, a classe burguesa.
Mas sem Comte (Discurso Sobre o Espírito Positivo) não existiria a sociologia. Uma ciência precisa de duas coisas: objeto próprio e método. O objeto a identifica e lhe dá autonomia – distingue-a de outras ciências. O método lhe dá objetividade e a certeza de preposições e declarações confiáveis. Mas nas ciências humanas essa objetividade e confiabilidade (verdade científica) não podem ser empíricas – o objeto de estudo está no homem em seu ambiente existencial. O laboratório da sociologia é a sociedade. Comte sabia disso – precisava de um método empírico para a sociologia. O positivismo foi a sugestão – um método capaz de, copiando as ciências naturais, conferir à sociologia o caráter de ciência. Quanto ao objeto de estudo a sociologia se debruça sobre o comportamento humano que tem origem no grupo. Comportamentos humanos podem ser efetuados de forma individual, e ainda assim são comportamentos sociais, pois sua origem é a consciência coletiva do grupo ao qual o indivíduo pertence. Igualmente, comportamentos humanos quando em grupo podem não ser sociais, se não tiverem por trás determinações socioculturais do grupo.
O século XVIII é o palco de duas grandes revoluções – a industrial de 1798 e a burguesa de 1789. A primeira colocou novos paradigmas no âmbito econômico; a segunda transformou profundamente as instituições políticas e morais do velho regime. Ambas criaram mudanças tão profundas que deram origem a uma nova época: a modernidade. Se somos homens modernos, o somos devido a elas. O século seguinte, portanto o século XIX, o século em que nasce a sociologia, é um século caótico. As velhas noções de ética cristã, de poder político/jurídico do soberano, de educação patriarcal, de responsabilidade produtiva do mestre de ofícios e de seu conhecimento integral, do prestigio fundiário e de nobreza, desaparecem completamente. No lugar, o relativismo da ética de mercado, o poder representativo do povo, o ordenamento jurídico positivo do Estado, a educação tecnicista e especializada, a extrema divisão e especialização do trabalho nos moldes da grande fábrica, os grandes movimentos de operários (greves, revoltas, destruição de máquinas, falta de produtividade) contra a desmesurada exploração de sua força de trabalho (mulheres, crianças e homens em jornadas de trabalho de até 16hs em condições precaríssimas e pagamentos ínfimos), a distribuição do latifúndio em pequenas propriedades rurais, e o poder da classe burguesa. Por todo o lado miséria, doença, ignorância, fome, prostituição, violência, dominação e exploração.
A sociologia de Comte, a sua física social, em tal ambiente é uma ciência que se propõe, oportunamente, a diagnosticar as causas de tamanha “desordem”. Identificar as causas, mas não intervir nelas – constatar, explicar e não alterar. A nova classe emergente, a classe burguesa procura uma ciência assim, capaz de ajudar no controle e apaziguamento das revoltas, no máximo propondo-se a algumas reformas superficiais, mas evitando que a sociologia seja profunda, proativa, contundente, revolucionária. O quanto Comte quis isso? Difícil de dizer – querendo ou não a sua ciência era instrumento de dominação mais do que de liberdade e igualdade.
O sistema capitalista de produção se consolidava. Com ele relações de produção próprias de um determinado estágio de desenvolvimento produtivo, poderosas forças produtivas engendradas no período pré-capitalista (renascimento). Capital (originário do mercantilismo), ciência (originário da inventividade técnica do renascimento), matéria-prima (dominação da natureza) e mão-de-obra barata e disponível (a partir do fim das relações de proteção no latifúndio e corporações), são as forças que se agigantam e dão a dimensão do grande empreendimento fabril burguês. Surge então um projeto de sociedade, uma visão de mundo, uma ideologia capaz de convencer todas as classes sociais que o futuro é promissor, é capaz de apaziguar em torno de um projeto único - particular da classe burguesa dominante - todas as classes da nova sociedade. A modernidade precisa de um pacto – realizar o ideário contratualista. A um determinado sistema econômico corresponde um aparelho político e um ordenamento jurídico. A noção de contrato social, resgatado eficientemente pelos positivistas, constrói coerentemente um sistema político representativo – com base no sufrágio universal –, e um ordenamento jurídico – com base na formalização das leis e seu processo burocrático estatal (positivismo jurídico).
A modernidade estava construída. A sociologia assiste, ajuda, sem grandes questionamentos, ao surgimento dessa modernidade, desse projeto particular que se torna universal. Democracia representativa, melhoria das condições materiais de vida, desenvolvimento tecnocientífico, preponderância do Estado e do direito sobre as máximas morais, a transformação das grandes instituições de controle de outrora, o mercado e sua competitividade, eis a vida moderna. Projeto da classe burguesa que eficientemente soube consolidar seu domínio a partir dos conflitos populares e a industrialização do século XVIII. Comte acreditou que o pensamento científico, o positivismo, era o último estágio do desenvolvimento intelectual humano – ele sucedia ao pensamento teológico e metafísico.
Émile Durkheim, no final do século XIX, complementa a obra de Comte. Embora um continuador do positivismo, este autor nos deixou, além do rigor metodológico, um conjunto importante de conceitos usados tanto no senso-comum como em várias disciplinas, como no caso do direito. Normalidade e anomia, solidariedade e divisão do trabalho social, fato social e consciência coletiva, justiça restaurativa em oposição à justiça retributiva, a discussão sobre a educação e a punição, o incremento de leis em função do fracasso das instituições de controle social, são alguns dos termos e ideias mais importantes sem os quais não seria possível entender-se o funcionamento da sociedade moderna.
Durkheim começou definindo o que era um fato social – o objeto de estudo da sociologia. Um fato social apresenta três características: exterioridade, generalidade e coercitividade (As Regras do Método Sociológico). Efetivamente, um fenômeno ou um acontecimento é um fato social quando, e somente quando é exterior – ao indivíduo, logo provém do grupo -, quando é genérico – uma grande quantidade de indivíduos se comporta repetidamente de forma tal -, e quando esse agir é resultado de orientação coletiva – consciente ou inconscientemente.
A sociologia ainda choca muito as pessoas com os conceitos de Durkheim. Por exemplo, um comportamento indesejável para o grupo (anomia) não é necessariamente um comportamento anormal, haja vista que normalidade se define pelo fato social estar presente no grupo com certa regularidade e de alguma forma o grupo ter desenvolvido estratégias de convivência com o indesejável. É o caso da utilidade das leis e do desenvolvimento de um ordenamento jurídico punitivo. Aliás, Durkheim deixou claro que a quantidade de leis e sua coerção só tenderiam a aumentar nas sociedades industriais modernas (solidariedade orgânica).
Outro exemplo “chocante”: para ele, solidariedade depende da divisão do trabalho social – quando o grupo decide dividir as tarefas sociais de forma a aumentar as condições de produtividade, a solidariedade é necessária, pois, de forma contrária, não haveria como trocar ou complementar os trabalhos de uns com os outros. Logo, solidariedade não é ajudar os mais necessitados, mas lhes oferecer condições de vida digna – inserir cada ser social na divisão do trabalho de forma a ser útil para o grupo.
Exatamente porque a função social do grupo é ajudar cada indivíduo a realizar seu potencial humano, é que a sociologia, desde Durkheim, vê na violência – inclusive a do Estado – o fracasso da solidariedade e da própria socialização, fracasso esse responsabilidade de todos. Neste sentido, Durkheim já tinha chamado a atenção para o fato de que quanto mais as sociedades modernas se desinteressam pela educação das pessoas, mais a punição e a legalidade haveriam de se abater sobre os homens. Mas ao mesmo tempo, parecia-lhe paradoxal e lamentável que o desinteresse pelo coletivo se traduzisse em um direito mais repressivo e uma justiça meramente retributiva (foco em indenizar a vítima). É que se a responsabilidade é de todos e se todos sofrem com a violência, então o melhor é que o direito restitua a possibilidade de reinserção social, pela reeducação e trabalho (justiça restaurativa – foco nas causas da violência).
Entre tantos aspectos importantes para entender as sociedades modernas, o que a sociologia aprendeu com seus fundadores? Primeiro, que todos somos “filhos” do mesmo grupo, gostemos disso ou não. Segundo, que a responsabilidade pelos males de nosso tempo é de todos nós, e cada um tem um papel fundamental na construção da paz e do desenvolvimento de cada ser humano. Terceiro, que educar, apesar da coerção que lhe é inerente, não é violência, mas um ato de amor com o próximo. Quarto, que dificilmente a violência, e principalmente a jurídica, pode efetivamente resolver-se a si mesmo, e que a resposta violenta às anomalias apenas incentivam mais violência. Quinto, que mais que o fracasso da solidariedade, a internação e punição desmedida, além de pouco resolver em termos de reintegração, são de fato a demonstração do fracasso da própria civilidade e da nossa condição humana.
Por tudo isto, sempre parece “estranho” para as pessoas nutridas apenas pelo senso comum, ou pelos interesses mediáticos e elitistas, que a sociologia – e o verdadeiro sociólogo! – defenda, inconteste, os direitos humanos para todos (o que não significa que não deva existir julgamento e sanção), o fim dos preconceitos e xenofobias (defendendo, exatamente, a alteridade de todos os tipos), repudie o agravamento das penas (o que não significa que não existam pessoas com patologias que exigem um acompanhamento especializado) e se insurja veementemente contra punições como pena de morte. De forma geral as penas alternativas são mais eficientes e efetivas.
No começo a sociologia esteve só. Por muito tempo a sociologia foi vista como um conhecimento não “especializado”. Muitas vezes, em pleno século XXI, as pessoas se perguntam para que serve a sociologia. O que fazem os sociólogos? Bem, eu diria que mais tarde ou mais cedo, sob pena de perecermos todos, os homens vão ter que descobrir formas de sobrevivência e convivência que efetivamente resgatem a condição humana em toda a sua plenitude. Por todos os lados, em todas as instituições e organizações, públicas e privadas, os sociólogos com essa “meia-dúzia” de pressupostos entendem melhor a vida sofrível que levamos e ajudam a construir de forma diferente e melhor a epopeia humana.

*Publicado como originalmente em 07 de set de 2010

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Filosofia do Direito

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