A Gargalhada: O Expressionismo Alemão e o Bolsonarismo

O Gabinete do Dr. Caligari (1920).
Entre 1919 e 1924, no período logo após a 1ª. Guerra Mundial, surgiu na Alemanha um movimento estético chamado de Expressionismo Alemão. O primeiro filme que iniciou o movimento chama-se "O Gabinete do Dr. Caligari". Sua história é a seguinte: dois soldados alemães no final da guerra estão hospitalizados devido a seus ferimentos e descobrem que têm as mesmas ideias sobre as guerras. Após a guerra ambos decidem escrever o roteiro de um filme sobre o tema, mas de forma metafórica. O roteiro original foi escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer, e foi dirigido em 1920 por Robert Wiene. A este último se deve em grande parte os efeitos que o filme teve sobre o povo alemão na época e, afinal, efeito que perdura até nossos dias, não como fatalidade, mas como "farsa". Aconteceu que os dois roteiristas venderem o roteiro e os produtores da época convidaram Fritz Lang (do filme "Metrópolis") para o dirigir. Este por sua vez, alegando estar muito ocupado, indicou Robert Wiene para a direção, o que acabou acontecendo. Agora o detalhe fundamental: Robert Wiene, achando que o filme tinha pouco apelo emocional, adicionou ao roteiro original um "prólogo" e um "final" que modificaram completamente a intenção e a interpretação do filme. 

O roteiro do filme é este: o Dr. Caligari trata um jovem sonâmbulo com hipnose, e através dela comanda a vontade de seu paciente, Cesari. Toda a vez que o Dr. Caligari se sente contrariado com alguém, induz sob hipnose a que Cesari o mate durante a noite em seu sonambulismo. Esteticamente tal expressionismo mistura elementos góticos com cubismo e trabalha com as variações de luz e sombra. As imagens e os objetos aparecem distorcidos. Geralmente as narrativas se desenrolam à noite o que acentua o caráter noir de terror, meio a sombras dramáticas e personagens ambíguos. Aliás, neste último detalhe, uma característica solene do expressionismo alemão é essa "duplicidade" das personagens que se escondem nas sombras e como sombras da noite vampirizam e matam suas vítimas.

Originalmente, como os dois ex-combatentes haviam escrito, a metáfora estava na representação do Dr. Caligari como o Estado todo poderoso, e Cesari como o povo que, como que hipnotizado, se deixava levar para guerras sem sentido semeando a violência e o terror na humanidade. Mas após a interpretação do diretor Robert Wiene, o povo aparece desnorteado, faminto e em uma situação vexatória, que procura um grande "herói" capaz de os tirar daquela situação vergonhosa e indigente, e os transformar em uma grande Nação. Neste caso o que está hipnotizado e vive o sonâmbulo é o povo, mas porque é levado a isso pelos seus inimigos. Então, de um filme que era para ser um libelo pacifista, que denunciava a prepotência do Estado e de seus governantes, tornou-se assim a própria defesa do Estado e de um certo tipo de governante, do tipo "herói carismático", nacionalista e tradicionalista, um redentor, por assim dizer. Claro que esta é exatamente a situação do povo alemão após a derrota na 1ª. Grande Guerra, principalmente porque estava sujeito às exigências do Tratado de Versalhes, assinado na rendição da Alemanha em Junho de 1919, onde a França e seus aliados imperialistas impunham uma situação de extrema penúria e vergonha para o povo alemão, com pagamentos altíssimos pelos custos da guerra. De qualquer forma, o expressionismo alemão não "nasce" exatamente nesse momento, se considerarmos que existe na tradicionalidade cultural alemã certo pendor para o dramático, para o ambíguo e para soluções radicais ou para o pessimismo insolúvel (como pode ser constado na filosofia e literatura alemãs): chamarei a este perfil cultural de uma "estética tétrica".

 
O Homem que Ri (1928) e o Coringa de Esquadrão Suicida (2016)
Convém salientar que entre 1924 e 1929 a Alemanha vai receber aporte de recursos financeiros de vários países europeus e dos EUA, talvez uma tentativa de aliviar as imposições vexatórias de Versalhes e minimizar as condições de pobreza e caos social que o povo vivia. Mas esses recursos não foram o bastante: em 1929 o partido nazista fortifica-se e Hitler chega ao poder em 1933. Se existe uma "estética tétrica" na cultura alemã, ela chega ao poder e ali se instala, afinal como o diretor do "Dr. Caligari" desejou apresentar no filme. A fatalidade virou uma farsa!

Por conta de uma tradicionalidade cultural, aliada a determinadas condições bem objetivas e significativas para o povo alemão, a totalidade social sucumbe, por meio de certa psicologia de massas [o herói carismático é a identificação para a redenção], ao terror, à violência, ao sofrimento, à guerra, à morte. Estes elementos combinados, esta "estética tétrica" se "naturaliza" então, antes mesmo da crítica se desfazer no compromisso com a redenção, antes mesmo da razão se identificar com o recalque: antes mesmo da filosofia e da moral denunciarem ou proporem o contraditório e a razoabilidade, o espírito do povo se aliou a Mefistófeles, não exatamente pelo prato de comida, mas como "revanche". A moral e a lei afundam-se definitivamente na naturalidade das sombras, do obscuro, do mal. A naturalidade e a normatividade se juntam à mentira, à comunicação falaciosa, ao pensamento arrogante e inverossímil, à perseguição, ao racismo, ao negacionismo da civilização, até mesmo com requintes de crueldade. Sobra a luz focada no herói, no salvador, não imediatamente identificável, não uma subjetividade própria, mas o "duplo" de algo coletivo, do "espírito do povo" e "suas necessidades", nos sujeitos ou objetos que emanam e se enredemoinham em torno dele. Em sua perversão negacionista da razoabilidade, da política enquanto negociação, ou do consenso, destrói-se tudo o que está e a natureza do terror sombrio e destruidor abre espaço para outras "verdades", devaneios, imaginações, transcendências que projetam novas "verdades" no meio do caos, não para acabar com ele, mas para viver dele, para alimentá-lo eternamente nas chamas da morte. Reina a transcendência onírica e a paranormalidade sectária, e destarte todo o aparelhamento performático, tudo funciona como um "grande circo místico" cujo entendimento e razão mais profunda é destinada a poucos, aos líderes, aos pastores ou outros que tais. 

Neste ponto a angústia é propositada, ela é destinada a permanecer nas identificações macabras do mal: o mal redentor democraticamente para todos. O desdém pela vida é sempre acompanhado pela despolitização e desmobilização das utopias e das lutas. As sombras resistem à crítica e a distorção dos cenários aparecem como reais e próprios. O cinismo e a ironia são descredenciados como crítica, mas são incorporados como estratégia irreal e ambígua própria de uma certa política, a do armamento e guerra contra os inimigos. Não existe desmascaramento possível dentro da naturalidade da brutalidade nutrida pelo negacionismo. A negação da negação destruidora já incorpora em si a naturalidade do desmascaramento, uma dialética perversa e maléfica. Existe de fato aqui uma patologia que se espraia coletivamente: as identificações sublimam muitas coisas, mas não a transcendência mítica do líder e os sacrifícios exigidos. Mesmo que as condições materiais de sobrevivência dos indivíduos não melhorem substancialmente, agora a pobreza e as dificuldades de sobrevida podem ser justificadas pela guerra ao inimigo e sustentadas pelos sacrifícios. Existe uma beleza na dor e no sofrimento inaudito na "estética tétrica". Uma "superioridade" espiritual para muitos. Por isso existe "pouco" espaço para resistir. Este é verdadeiro sentido da "gargalhada"!

Mas o Brasil não tem a tradicionalidade da "estética tétrica" (Deleuze até dizia que o único povo feliz talvez fosse o brasileiro). Mas o Brasil tem tradicionalmente uma cultura conservadora de matriz cristã. Este é o ponto mais objetivamente próximo daquelas condições irrefutáveis que levam o povo a uma rebelião significativa. Foi preciso muita engenhosidade e trabalho cultural para que um povo assim seja conduzido para uma "estética tétrica".  Pela massificação do evangelismo tinha que começar o caminho para o bolsonarismo. Em 2013 os movimentos de rua começaram com a rejeição do aumento das passagens do transporte público, causa abraçada basicamente por estudantes (Movimento Catraca Livre). Pode-se dizer que, de certa perspectiva, estes movimentos estavam alinhados "à esquerda". Mas rapidamente foram tomados por grupos orquestrados que há algum tempo esperavam a oportunidade para estenderem suas propostas, as mais estapafúrdias e reacionárias, explorando a evangelização das camadas mais populares, estendendo-se para as camadas médias da sociedade "desgostosas" com a propagada corrupção dos governos de esquerda de Lula e Dilma Rousseff. Contaram, tais oportunistas messiânicos, com meios de comunicação no mínimo dúbios em destacar os artifícios das notícias e todos tipos de informação falsas, como  também o autoritarismo que se avizinhava, talvez por seu comprometimento com interesses financeiros. Ao mesmo tempo, faltaram lideranças progressistas capazes de barrar este movimento de tomada de poder pela direita, que chegou mesmo às raias de um messianismo fanático com base nas velhas fórmulas populistas que combinam nacionalismo com religião. Apregoavam o fim da corrupção e dos velhos mecanismos da política brasileira e o que mais se fez desde então foi exatamente a continuidade, bastante republicana no nosso caso, de permanecer e fortalecer as lideranças conservadoras-latifundiárias das elites. Só que agora com a penetração de novos grupos religiosos evangélicos e outros negacionistas da ciência e da democracia (fora da prática da diplomacia para o consenso), apoiados por setores da burguesia latifundiária brasileira [não é o café, mas é o agronegócio - o pop do agronegócio é a regulação do capital em seus termos]. 

Mas o ponto nodal, crucial, dessa hegemonia do bolsonarismo - que nas eleições de 2018 afinal demonstrou-se vitoriosa graças ao voto de negação produto de uma bem orquestrada desconstrução do chamado "lulismo", refletida na maioria de votos nulos e em branco -, que em certo momento não tinha muito mais a oferecer às massas, é que a mesma fortalece-se com a pandemia do COVID-19. A pandemia a partir do início de 2020 foi o fator determinante para que objetivamente se reproduzissem no Brasil, e entre outros países que são atravessados por elementos culturais conservadores, aquelas condições da Alemanha e seu povo no pós-Primeira Guerra Mundial. E foi a partir do fenômeno da pandemia que o despotismo redentor e heroico salvador bolsonarista pode concretizar melhor a "estética tétrica". Daí deriva, obviamente, o perigo de se realizar cabalmente o protonazismo existente neste momento na sociedade brasileira. A pandemia do COVID-19 cria o cenário para o caos, o ambiente onde tudo parece esvaziado de sentido, onde todas as certezas e verdades que nos serviram por muito tempo parecem impróprias ou desconcertantemente inúteis. Onde a morte parece perseguir a todos inevitavelmente, e onde até o luto é impossível e negado (como em uma guerra de grandes proporções), a dor e o sofrimento psíquico se dirigem avidamente para qualquer coisa, objeto ou discurso que mitigue o desmoronamento da realidade, a organização e a ordem do mundo. E é neste caldo que a solidariedade abandona a razão, a lógica coletiva social e o bom-senso abrem espaço para o messianismo de grupos, para as narrativas transcendentais e megalomaníacas do oportunismo político, quando não para o fisiologismo de mãos dadas com o interesse financeiro. A pandemia é um espaço de guerra de proporções globais.

Lacan havia dito na metade do século passado, que muito em breve a humanidade teria que optar entre a religião e a análise. Uma oferecia a solução da frustação do Eu através da catarse na ordem do divino, a outra não oferecia nada, a não ser a consciência das origens de cada sofrimento. Contudo, a segunda está para a liberdade, enquanto a primeira apenas na dor a ser espiada. Escolhemos ou a condenação e o sacrifício à espera da redenção, em alguns casos bastante frequentes, à espera mais imediata de "prosperidade", ou escolhemos o amadurecimento humano em um processo civilizatório ditado pela insistência e credibilidade na ciência e na "reta razão". Em breve saberemos se o povo brasileiro graças à sua tradicionalidade conservadora e elitista se curvou para uma "estética tétrica" demoníaca, ou se permanecerá fiel à democracia, à paz e à solidariedade universal. Por enquanto o mau presságio ecoa naquela "gargalhada" por cima das covas até agora de mais de 600.000 brasileiros, praticamente sem nenhuma indignação mobilizante.

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Filosofia do Direito

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