Epidemia - A História que permanece ou O Haiti é aqui


    Impossível não falarmos da Cidade Maravilhosa nestes últimos dias. Tudo o que o Estado e a sociedade vivem querendo esquecer, apagar da memória, desvelam-se inevitavelmente diante das condições sociopolíticas e humanas (ou serão desumanas?) que se instalaram em nosso país. Esta cegueira há muito tempo imposta, se dissipa, momentaneamente, com a lucidez da violência. E nesta hora, todos não têm escolha. Ou será que ainda terão aqueles que acreditam que ninguém sabia do estado de abandono dessas comunidades do morro no Rio de Janeiro? Ou será que ainda não enxergam que o Estado de Direito inexiste às minorias, manipulado pela maioria que detêm o poder econômico para manter a acumulação do Capitalismo autoritário? Será que ainda acreditamos que o “bandido” é aquele que está na cadeia? Que todos os mandados de prisão são cumpridos devidamente e estamos “seguros” com a população carcerária sob controle?

    Já é tempo de sabermos que não é a legislação que vai dar conta de reduzir a criminalidade. Os que estão presos hoje nas penitenciárias não são os verdadeiros responsáveis pela violência propalada pelo Estado. Qual é o poder desses presos no tráfico do Rio?

    Vejamos: “Muitos são pobres coitados que são mulas, que recebem dois mil réis para levarem droga para a Europa ou de países latino-americanos para cá. Uma vez ou outra a polícia consegue prender lideranças do tráfico, mas em 99% dos casos são pessoas sem nenhum poder na estrutura do tráfico. E estamos entupindo as cadeias com esse tipo de gente. Querem tornar a legislação mais rigorosa ainda? Pesquisas mostram que quanto maior o contato do preso com sua família maior a possibilidade de ele não reincidir quando sair. Estimular o contato do preso com a família é fundamental.”

    Dignidade humana para todos ou ninguém terá. Ou será que a Sociedade acha que dignidade é para beneficiar “bandidos”? Pois é, a cegueira do individual, do direito meu e não me venha com o seu, o espaço é pequeno para ambos...

    Impressionante que quando existe a generalidade conveniente, existe a sociedade e o direito de todos. Ouvi na rádio: “A Sociedade tem que se unir, temos que apoiar a polícia frente à esses bandidos”. Eu me pergunto: Que Sociedade tem que se unir? A Sociedade do “asfalto”, como os cariocas denominam, que evocam soluções ante a tenebrosa atitude de omitirem-se? Ou a sociedade do “morro”, em que, quase sempre, com suas vidas abandonadas pela Sociedade nas mãos frias do descaso. Qual a opção destes? Correr da violência instalada à sua porta, dentro da sua “casa”, desde sempre?

    A mídia sensacionalista espanca em nossas caras a moralidade do bem e do mal; disfarçados de uniformes, repórteres de coletes à prova de bala garantindo a segurança, ou será o contrário? O Estado tentando manter o controle mesmo sabendo que esse controle nunca existiu, mas aos olhos da Sociedade, a polícia do justificável é apoiada ao matar 27 pessoas. Quem são? Onde estavam? Como foram mortas? Seus nomes? Adultos? Crianças? Idosos?

    Jornais, revistas estampam em suas matérias “27 pessoas já morreram desde o início dos confrontos”. Já pensaram que pode ser mais do que isso? Um Estado em crise não quantifica os homicídios que pratica, muito menos a identidade de José, Maria, João...são 15 “bandidos”, 11 civis e uma adolescente que foi enterrada hoje cedo, vítima de uma bala perdida. Nem ela tem nome. Não temos identidade há muito tempo.

    Entramos em um estado de cólera (o sentimento), uma epidemia da luta do bem contra o mal, sem sabermos que eles estão dentro de cada um de nós. Convivendo juntos ou se desculpando juntos. Abandonamos o bom senso. Abandonamos diariamente o respeito pelo outro. Abandonamos as palavras de paz no limbo gélido do silêncio. Abandonamos a educação na sarjeta da ignorância. Abandonamos-nos. Abandonamos nossa cidadania. Abandonamos a humanidade, essência do nosso ser, abandonando assim, a tal da "racionalidade" que nos torna seres “superiores” aos outros. E, talvez por causa disso, muitas vezes, nos sentimos abandonados.

    As notícias. Não vejo mais notícias sobre o Haiti. É preciso fazer uma busca ferrenha nos cartéis da informação. Pensei no Haiti, como a música de Caetano. “Pense no Haiti, reze pelo Haiti. O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui. E se na Tv você vir um deputado em pânico mal dissimulado...”

    Pois é, se traçarmos um paralelismo tenebroso, a cólera (a doença) no Haiti é resultado do abandono do mundo. Em meio a uma epidemia de cólera, o Haiti esquecido há muito, e que é logo ali, no próximo domingo terá uma prova de fogo para o futuro (???) do país: as eleições para presidente. As votações, as primeiras após o abalo sísmico de janeiro, terão um caráter decisivo, já que o governo a ser eleito deverá, junto á comunidade internacional, traçar os planos de reconstrução após o terremoto.

    Dez meses passados do terremoto que matou mais de 80 mil pessoas, deixou mais de 250 mil desabrigadas (números prováveis), continua numa situação de desabrigados, abandonados, agravada pela falta de higiene, pela insegurança e por novas catástrofes, como a epidemia de cólera e a passagem de um furacão. O país vai às urnas tentar um “Estado de Direito” para reconstrução. Ah, sim, sem Estado não dá pra reconstruir nada, somente onde temos as maiores reservas de petróleo, como no Iraque, Kuwait e Irã, ou nas maiores reservas de água, na região da Palestina. Ou então, podemos decidir reconstruir Nova Orleans tão rápido quanto a decisão do governo americano após as imagens do caos ao mundo todo. Imagem é tudo!

    Lembro-me de imagens do terremoto no Haiti, de centenas de corpos, de adultos e crianças, empilhados do lado de fora do necrotério, inchando sob o sol escaldante e pessoas caminhando sobre os corpos tentando procurar parentes desaparecidos, tampando o nariz para tentar bloquear o cheiro de podridão. E com toda a ajuda humanitária (muitas foram), a imagem que fica para muitos é de Estados de 1º mundo e uma camada da sociedade mundial, em ações humanitárias, vivendo da imagem de benevolência, para nada mais do que apaziguarem suas consciências, quando as têm.

    Mais de 4,6 milhões de haitianos estão sendo chamados às urnas para escolher o presidente, senadores e deputados, em “Estado” de epidemia de cólera. Entretanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que os casos possam chegar a 400 mil nas próximas semanas, devido à rápida propagação da doença. Mas ela não é transmissível pelo simples contato, como é a gripe, por exemplo, por isso, os haitianos podem se concentrar no dia das eleições que não causará impacto na propagação da epidemia. E assim, no exercício de sua “cidadania”, podem ir às urnas depositar seu papel e voltar para o aconchegante ambiente de suas casas, se alimentar com 3 refeições dignas por dia, tomar muita água, mas que voltem daqui 4, 5 ou 6 anos, conforme estipulado no pleito.

    Ah! Cidade Maravilhosa, Brasil de todas as raças, todas as cores, todas as graças. Chico Buarque, em Partido Alto, canta: “deus é um cara gozador, adora brincadeira, pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro. Mas achou muito engraçado me botar cabreiro. Na barriga da miséria, eu nasci brasileiro. Eu sou do Rio de Janeiro”.

E o Haiti, que não é aqui, “como é que vai ficar? deus dará. deus dará.”

Eneida Gasparini

(Confrontos no Morro do Alemão/RJ  e o Terremoto no Haiti)

(Texto escrito originalmente em 26/11/2010)

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Filosofia do Direito

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