O Direito à Preguiça (e ao Ócio) - Paul Lafargue (LEIA TAMBÉM EM LAVRAPALAVRA)
Em
1880, Paul Lafargue, publicou no Semanário L’Egalité, o seu DIREITO À PREGUIÇA.
Na prisão, em 1883, Lafargue escreveu suas notas ao texto original, com o mesmo
brilhantismo e antecipação dos males do trabalho que, ao contrário do que se
supõe, proporciona aos produtores diretos e a toda a sociedade.
Lafargue
explica por que o trabalho (industrial, assalariado) escraviza e empobrece
continuamente os trabalhadores e reduz os homens de forma geral à condição de
servos e lhes enfraquece o espírito. Tanto no final do século XIX, como hoje, no
século XXI, portanto 140 anos depois do texto de Lafargue, a idiotice da defesa
do trabalho como categoria genérica só fez embrutecer mais e mais a humanidade,
para não falar dos flagelos e da tirania provocados aos trabalhadores. De fato
sem precisar que tipo de trabalho se trata e em que condições jurídicas a
sociedade capitalista se organizou para subtrair de forma privada dos assalariados
a sua potencialidade de gerar riqueza, a defesa inconteste do trabalho é uma
perversidade que encontra na modernidade o respaldo na tirania jurídica-político
da produção, imposta pelos proprietários das forças de produção, dos meios de
troca e circulação de capitais.
Mas
tanto quanto essa idolatria sem sentido, essa irracionalidade que massacra a
todos, se fez ícone e foi passada pela ideologia penitente e egoísta dos
pastores e dos burgueses, afirmar que o trabalho é a pobreza da humanidade e
remete os fazedores sempre para se aviltarem a si nos modos em que produzem
para o capital, é uma verdadeira heresia tão detestável a todos quanto o
matricídio de Orestes ou o parricídio do Rei Édipo, ainda que os assalariados do
capital e os seus algozes nas sociedades burguesas modernas sejam, de todas as
formas, porém, não de forma igual, descaradamente extorquidos de suas forças
físicas e espirituais.
1.
Logo que chega ao poder a burguesia leva até os trabalhadores o discurso moral-religioso
do “sofrimento”, ainda que no período da Revolução Francesa tivesse condenado
essa mesma moral para obter o apoio do povo contra a oligarquia e a igreja;
2.
O discurso que enaltece o trabalho condena o trabalhador à condição de máquina “suprimindo
suas alegrias e paixões” – o gozo da vida é tão propriedade da classe burguesa
como as fábricas;
3.
Os gregos da época clássica tinham desprezo pelo trabalho deixando-o para os
escravos – “o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da
inteligência”; a filosofia de então ensinava a reflexão enquanto o trabalho era
o vilão que retirava o tempo e o espaço para o livre pensar, portanto levava o
homem a perder sua liberdade;
4.
Assim a aceleração da produção imposta pelo “tear” interessa ao patrão na
medida em que retira o espaço e o tempo de reflexão do trabalhador; ao mesmo
tempo a jornada de trabalho aumenta (mais valor [mais valia] absoluto) como
forma de correção do espírito, a fábrica se transforma em casa de correção - o
trabalho tiraria os vícios, chamado a “curvar os sentimentos de orgulho e de independência
que a preguiça gera”;
5.
A classe trabalhadora não consegue se
livrar dos “preconceitos semeados pela classe reinante”, tanto que após 1848
(Comuna de Paris) aceitou “como conquista revolucionária a lei que limitava a
jornada de trabalho a 12hs diárias”, inclusive para mulheres e crianças;
portanto, os próprios trabalhadores aceitam “como um princípio revolucionário,
o direito ao trabalho” – de certa forma, todos os pesadelos e flagelos
praticados contra os trabalhadores assalariados do capital, ainda hoje, são
derivações e prolongamentos econômicos, políticos, legais e culturais,
materiais e imateriais, objetivados de uma ideia reinante instalada sub-repticiamente
na mente dos indivíduos, qual seja, a ideia fixa inquestionável das
propriedades saudáveis e morais do trabalho;
6.
Para enriquecerem na ociosidade os proprietários dão trabalho aos pobres; a classe
burguesa não quer trabalhar (a ela a moral da ordem e progresso, e do “sofrimento”
dos trabalhadores não se aplica), apenas pretende explorar a força de trabalho dos
trabalhadores que geram riqueza, “espremer o trabalho que continham” – isto leva
a uma superprodução, e às suas
crises, pois por mais que os proprietários e seus agregados só consumam sem nada produzirem, ainda
assim haverá muito mais mercadorias para serem consumidas, dado que a “penúria
dos compradores” é tão grande que não conseguem adquirir o que eles próprios
produzem, nem o mínimo para manterem a sua saúde física e mental;
7.
Quando os trabalhadores se revoltam contra seus patrões e os gerentes a seu
serviço, não deveriam dizer “façam vocês agora o que nós fazemos, venham aqui
perto das máquinas, queremos ver se fazem, trabalhem vocês”, mas deveriam dizer
“não trabalhamos mais do que 3 a 4hs por dia, e não venham vocês fazerem porque
não se precisa, os estoques estão cheios e não tem quem os compre, e se nos
pagarem melhor nós mesmos compraremos os vossos estoques, o que nós mesmos
produzimos”;
8.
Na superprodução os trabalhadores são
eles mesmos os primeiros a sofrerem mais reverses da irracionalidade do
trabalho: com altos estoques os fabricantes precisam diminuir a produção e
dispensam os trabalhadores; a miséria e a fome aumentam, e alguns meses depois
esses mesmos trabalhadores voltam às fábricas pedindo trabalho, e aceitam
receber menos pelas 12 ou 14hs de trabalho (aumento de mais valor) – diminuem os
salários e outros trabalhadores perdem o emprego, até o limite necessário para
as máquinas não pararem e até os valores mais aviltantes por hora trabalhada, valores
reduzidos ao “mínimo do mínimo” para que a mão de obra não morra e fechem todas
as fábricas: a engrenagem do trabalho gira mal, mas gira - como n’A Colônia
Penal;
9.
Na superprodução as crises não se
resolvem: tendo por trás o crédito dos financistas, as dificuldades para vender
são enormes, o desemprego e a redução dos salários não promove a venda das mercadorias
produzidas aos milhões; os intermediários e especuladores que têm capital para
comprar pagam barato e voltam a vender, inundando o mercado, por um preço maior
que pagaram, mas menor do que o estoque da fábrica – a fábrica não pode parar
de produzir mercadorias porque daí sai o lucro não só do proprietário, mas de
todo o comércio e dos rentistas, porque é o trabalho do trabalhador que produz
a riqueza; mas então não tem mais mercado e não resta aos fabricantes outra alternativa
que destruir as mercadorias estocadas: “lança-se então tanta mercadoria pelas
janelas que não se sabe como elas entraram pela porta”;
10.
As lutas coloniais, os territórios “apossados”, as escaramuças diplomáticas e
as guerras entre os países europeus devem-se à necessidade de possuírem mercados
cativos, preferenciais ou de livre trânsito para escoarem-se as mercadorias
produzidas pelos trabalhadores extorquidos e miseráveis das fábricas do velho
mundo; de certa forma a idolatria sem sentido dos próprios trabalhadores ao
trabalho em que são explorados é a causa dos males infligidos aos povos
ultramarinos onde as potências industriais desovam seus estoques – os operários
poderiam fazer algo importante a respeito disto se exigissem trabalhar apenas
3hs por dia: “tem de se dominar a paixão extravagante dos operários pelo
trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem”; isto não parece
ser menos ético e ferir mais a moral do que as motivações coloniais e as
guerras, ou produzir compulsória e planejadamente produtos de qualidade
sofrível só para que deteriorem rapidamente obrigando os consumidores a
voltarem ao mercado e comprarem outros, infinitamente;
11.
Pois bem, a máquina deveria libertar
o trabalhador do trabalho forçado nas fábricas, da “luxúria” sem propósito do
trabalho a não ser para os que enriquecem sem preconceitos ao sofrimento humano
e sua deterioração física e mental, mas o operariado, os assalariados do
capital de forma geral quiseram disputar a produção com ela, e com isso a superprodução leva a classe dominante
para o ócio e os prazeres mais banais, enquanto leva em proporções maiores os
trabalhadores e a humanidade para a pobreza, a doença e o desalento; o desemprego
galopante desde então é uma forma “precária” de controlar as crises insolúveis
de superprodução, simplesmente porque
esbarra sempre na falta de consumo capaz de “realizar” os estoques mercantis –
o vital era racionalizar essa produção aos bens necessários à dignidade de
todos, oferecer formas de distribuir tal riqueza material sem exigir e compelir
ideológica e moralmente a humanidade a trabalhar insanamente apenas como propósito
de acumulação privada;
12.
O desemprego e as consequências de extrema miserabilidade e total degradação
humana que ele provoca para milhões de pessoas, e as novas colonizações
geoeconômicas mortíferas e genocidas, não parece a nossos olhos mais imoral do
que reduzir as jornadas de trabalho ao mínimo que nossa tecnologia e ciência permitem
hoje, a criar um sistema global de cooperação que liberte a humanidade do jugo
do trabalho econômico desnecessário e despropositado apenas para enriquecer vergonhosamente
1% do Planeta.
A
questão limítrofe das teses exemplares defendidas pelo autor em Direito à Preguiça se dão por conta do
estádio de desenvolvimento das forças produtivas aplicadas à produção material
econômica das sociedades industriais mercantis, produtoras de mercadorias, capitalistas
e de livre mercado. Isso em nada retira o brilhantismo e a perspicácia das
ideias apresentadas na obra, pelo contrário, ilustra magistralmente como as
sociedades capitalistas de livre mercado já no final do século XIX estavam completamente
imersas no processo inescusável de uma revolução da produção, e dos valores,
compelida pelo desenvolvimento do regime de acumulação privada nos moldes burgueses
do capital e da luta de classes. Efetivamente Lafargue, não só pelos exemplos
retrativos de sua época na Europa, pelos desdobramentos coloniais inerentes à
produção de mercadorias, e às relações entre as classes e frações da classe
proprietária, só fez comprovar irrefutavelmente o que o Mundo contemporâneo
assiste quanto à luta concorrencial global pelo estabelecimento dos monopólios capitalistas,
com as piores consequências e perspectivas para os milhões de desempregados e
precarizados hoje.
A
diferença é que em nosso tempo todo o processo se verifica através da aplicação
pragmática do mais alto desenvolvimento de tecnologias e ciências aplicadas à
produção, consumo e financeirização dos mercados. Isto é o ponto nodal do qual
o regime de acumulação concorrencial de capital não pode prescindir e se
afastar, levando à precarização do trabalho e dos trabalhadores, não tanto pela
exploração do mais valor absoluto em larga escala (mais extensiva ao tempo de
Lafargue), mas pela maciça substituição de mão de obra por sistemas mecanizados
e robotizados (mais valor relativo), alicerçados em tecnologias de comunicação
e informação remotas desenvolvidas por poderosos algoritmos e com base em
bancos de dados minuciosos e globais.
A precarização que Lafargue revela e denuncia já era pura desumanidade, miséria e morte para os trabalhadores de então, subsumida a inevitabilidade do trabalho, até pelos mesmos, enquanto hoje o que é real e facilmente observável é o fim do trabalho, o incremento do tempo de trabalho disponível, na verdade a inexigibilidade da mão de obra assalariada do capital. É nos limites do desenvolvimento das forças produtivas e da obsolescência do trabalho assalariado do capital que está dada a possibilidade real e objetiva das massas de trabalhadores exigirem riqueza para si, a se dedicarem finalmente ao desenvolvimento de sua potencialidade criativa, artística, como Lafargue (em Marx!) o exigia. E se há um século e meio atrás era tão difícil para os trabalhadores se libertarem do “discurso do trabalho moralizante da burguesia e da igreja”, devido às condições reduzidas da sociedade produzir riqueza material necessária para emancipar o homem de seu “castigo icônico bíblico”, hoje é essa realidade bastante possível e real que movimenta cada vez mais setores, comunidades e movimentos sociais para o seu direito libertador ao ócio criativo.
Bibliografia:
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.
_____________________________________________________________________
* O texto aqui publicado refere-se ao Prólogo de nosso livro Direito ao Ócio a ser publicado.
Comentários
Postar um comentário
Agradecido pela participação. Verifique se seu comentário foi publicado.