Sobre as Estruturas Elementares do Pensamento e as Fake News
No
dia da “consciência negra” (20 de novembro) compartilhei via WhatsApp um post onde
se afirma que Black Friday tem origem em uma prática do tempo da escravidão nos
EUA. Diz o post que era prática que um dia depois da Ação de Graças (celebração
tipicamente americana) os comerciantes de escravos vendessem os escravos a
preços mais baixos, “para a temporada de inverno” (sic).
No
dia seguinte recebi o retorno de uma querida amiga (só para esclarecer, não se
trata de amiga virtual, mas de conhecimento próximo pessoal!) pela mesma rede
social, indagando-me da “fonte” da referida mensagem. Apesar da delicadeza de
minha amiga, levei um choque! Como assim, a “fonte”?
Só
então percebi que eu não tinha “fonte” alguma, e tinha imediatamente compartilhado
para vários amigos o post. Eu quis fazer uma homenagem e chamar à reflexão
sobre esse episódio nefasto que assombra nossa história. Mas minha amiga não
deixou escapar a atenção precisa da academia. Eu como acadêmico há tantos anos
deveria saber... Pelo menos poderia ter tido mais cuidado.
Imediatamente
fui procurar as “fontes”. Eis o que consegui apurar, resumidamente: em 1621 em Plymouth, Massachusetts,
para agradecer pela ótima colheita que
terminava e comemorar antes que o inverno no hemisfério norte começasse, o
governador da vila mandou fazer uma grande festa. No dia 24 de setembro de
1869, dois especuladores compraram muito ouro na Bolsa de Nova York, obrigando
o governo a vender a commodity para
corrigir a alta provocada por eles; os preços caíram e muitos investidores
perderam grandes fortunas. Aí estaria a “verdadeira” origem da expressão Black Friday.
Outros
acontecimentos contribuíram para que esse dia fosse para os americanos a
antecipação do Natal, levando-os às suas compras natalinas, patrocinado pelo
marketing das grandes redes varejistas, até que em finais de 1941, uma
resolução conjunta do Congresso americano finalmente estabeleceu a quarta
quinta-feira de novembro como o Dia de Ação de Graças. Com isso o mercado
americano garantiu uma semana extra de compras de Natal. E assim, a sexta-feira
logo após esse dia transformou-se, com a ajuda de pesados investimentos de
propaganda, no dia de ofertas maciças das redes de varejo, que se estendeu a
todo comércio, como Black Friday. Nesse dia o trânsito causado pelos
consumidores ficava caótico, e os policiais começaram a se referir a ele de
forma pejorativa, como Black Friday. Por isso durante um tempo o termo foi
trocado pelos varejistas para Big Friday. Contudo, o termo só se tornou
nacional em meados dos anos 90, e mercadologicamente repaginado, voltou a se
usar a expressão Black Friday. (htpps://www.bbc.com/portuguese/internacional-38087960).
E
o que tudo isso tem a ver com o post?
O
que realmente me fez pensar após o “choque de realidade” proporcionado por minha
amiga, não foi exatamente onde estão as “fontes”, mas por que eu não me
indaguei sobre elas antes de compartilhar? E, em consequência, me alertou o
fato que raramente meus amigos me perguntam sobre as “fontes” das mensagens que
compartilho e que compartilhamos todos nas redes sociais. Eu entendo que podem
existir vários motivos para isso: amizade, cortesia, correria do dia a dia,
desinteresse, ou porque simplesmente já nem se liga mais para o que compartilhamos.
De qualquer forma, não foi, felizmente, este o caso: era a primeira vez que me
perguntavam sobre as “fontes”, e foi isso que me provocou o espírito: por que,
exatamente, aquela mensagem, que tinha o objetivo sério de provocar uma
reflexão sobre a nódoa histórica que é a escravidão, foi alvo das “fontes”? Por
que aquela e não outra? E por que exatamente essa não me suscitou averiguar
antes se era “verdade”?
Bem,
nada do que eu li sobre o surgimento da expressão (veja, falo da expressão e
não de um dia específico de promoções no mercado - não o dia propriamente dito,
mas a expressão!) Black Friday, é suficiente para negar o fato que a expressão
pode ter surgido da prática bem mais antiga de escravocratas venderem negros
com desconto em determinado dia, que poderia ter bem sido em uma sexta-feira após
o Dia de Ação de Graças - por mais detestável que isso possa ser, alguém
ficaria espantado com isso? Se sim, por quanto tempo? Todas as explicações sobre
o surgimento do Black Friday são coerentes e parecem inquestionáveis, mas por
que a expressão Black, e não Red, ou Green, ou Grey ou Pink, sei lá...
Mas,
claro, sem “fontes” não se pode afirmar que a ideia macabra de usar a expressão
“black”, em um dia dedicado a grandes promoções e descontos das redes lojistas,
e que hoje se estende ao comércio de forma geral, exatamente em um país onde a
escravidão foi das mais atrozes nos tempos modernos (só comparável ao Brasil),
não se pode afirmar que tal “inspiração” foi a venda de escravos em “condições
promocionais”, como prática que poderia ter ocorrido qualquer dia entre 1621 e
1863 (fim oficial da escravidão nos EUA). Contudo, também não se pode afirmar
que ela seja absolutamente despropositada, ou pura coincidência, ou só motivada
por outros aspectos como a queda do valor do ouro nas bolsas, ou palavrões de
policiais enlouquecidos pelo caos do trânsito causado pelos consumidores
ensandecidos. Se faltam “fontes” para afirmar A, com base em quê dizemos que A
é falso? Então poder-se-ia alegar simplesmente: cadê as fontes em contrário? Mas
não é assim que funcionam nossos cérebros, e a explicação porque nos
preocupamos com apenas a “metade da verdade” é, a meu ver, outra.
Independente
da questão acadêmica, aqui o que se trata, obviamente, pouco tem a ver com as “fontes”,
com o verdadeiro ou o falso, mas muito mais com algo não imediatamente
perceptível, com algo indizível. Esse algo diz respeito às Estruturas
Elementares do Pensamento. Portanto, está na dimensão de algo que diz respeito
a todos nós – nos inocenta a todos tanto quanto nos revela nossas profundas
estruturas mentais. Isto significa, no entanto, que somos tão responsáveis como
inconscientes!
Nenhuma
criança até 5 anos de idade (mais ou menos) (VIGOTSKI, 1994) sabe da verdade e
falsidade, dos jogos possíveis entre uma e outra. Ela aprende tudo; daí para
frente, ela começa a comparar (daí a importância da família e dos mais
próximos), selecionar, guardar parte como verdadeiro e parte como falso, sendo
tudo depositado em pequenas estruturas (arquétipos), que a mente resgatará
quando precisar, diante de cada aspecto da realidade, diante de cada fato a deliberar.
O adulto, mais ou menos depois dos 16 anos, tem menos dificuldades para
escolher, e assim continuará, com mais certezas (também ampliadas pelas
experiências exitosas ou traumatizantes), até morrer. A nossa mente compara,
seleciona, interpreta, escolhe, enfim, numa palavra, nós somos animais
seletivos, altamente seletivos!
Immanuel
Kant (1724-1804 [2010]) afirmava que nossa razão nunca seria capaz de revelar a
“verdadeira realidade”, porque o processo cognitivo é interpretativo, isto é,
entre perceber um objeto externo a mim, e o descrever, o cérebro o “interpreta”,
logo, o modifica, e quando o descreve o descreve modificado. A nossa mente (1) desconstrói,
e (2) constrói em busca da ordem (GOMBRICH, 2012): a isto pode-se,
simplificando, chamar-se de “interpretação”. Este processo de reordenação (1+2)
tende em maior número de vezes a “confirmar” nossas certezas aprendidas, desde
cedo, ao longo de nossa experiência de vida, e é a confirmação destas certezas
que nos dá prazer, caso contrário, nos provoca dor/ sofrimento (ROCHA, 2014 [Epicuro]).
Então,
o que observamos e indagamos, que “fontes” nos preocupam ou “não”, que post nos
fazem pensar e indagar sobre a verdade etc., diz respeito muito a cada um, mas
a cada um segundo uma localização temporal-espacial coletiva muito específica.
Cada um tem seu repertório básico, essa mistura de vida única e coletiva, que
observou, sentiu, comparou com o sucesso ou fracasso, que selecionou pelos
valores e pelas práticas reforçadas naquilo que os outros fazem, reforçadas pelo
seu grupo, contra outros grupos etc. A consciência, do subjetivo ao coletivo,
só se sente provocada pela ciência se for estimulada, preferencialmente se o
que a estimula de fora lhe causa algum desprazer. E cada indivíduo, ainda que a
compartilhar uma “consciência coletiva”, recorta suas experiências diárias e
interpreta de forma absolutamente seletiva.
Minha
amiga não teve dúvidas em me perguntar pelas “fontes” e eu não tive dúvidas em
compartilhar sem me preocupar com elas. Neste momento histórico determinado,
político, no Brasil, quantas vezes eu me perguntei se era verdade e não compartilhei,
mesmo sem olhar as “fontes”, mensagens que poderiam ser verdades, mas poderiam não
ser, e não enviei. Mas o mais importante é que, de qualquer forma, sequer fui
olhar! Por que fazemos isto? Porque as informações que me agradam eu
compartilho inconscientemente!, e as que não me agradam eu nem vou olhar!, a
menos que exista um estímulo específico para isso, uma contradição, quando me
sinto contrariado, ou, ao contrário, estou frustrado com outra coisa e então,
minha mente precisa de reforço, de prazer, e lá vou eu exigir que algo que me
chega seja imediatamente confirmado – neste segundo caso, o prazer está em “picar”
meu semelhante, certamente uma certa dose de sadismo.
Passei
várias mensagens já depois daquele post de 20 de novembro, e não houve indignação
ou questionamento de “fontes”, com exceção de um amigo alguns dias depois sobre
este mesmo post, e de outra amiga sobre outro post que continha uma afirmação
sobre globalização absolutamente errônea, que sem dúvida foi construído para gerar
confusão e apoiar as forças do submundo obscuro e autoritário, exatamente como
eu fiz querendo combatê-las.
As
pessoas raramente vão procurar saber se notícias virtuais ou não, reúnem as
condições para serem consideradas verdadeiras ou falsas, simplesmente porque nossas
mentes concordam “antes” ou não com elas, e, portanto, só iremos procurar as que
nos desagradarem muito, as que ferirem muito nossas noções e valores. Aquilo que
não nos provocarem dor, sofrimento, repulsa, ou seja, aquelas notícias que não
vão contra o pensamento imediato, têm pouca chances de serem averiguadas,
apesar dos mecanismos cibernéticos de hoje que facilitam essas buscas. Portanto,
a maioria das notícias que são fake news
não é verificada! Não importa de verdade para o pensamento se existem verdades
ou falsidades, se uma notícia é falsa ou verdadeira, apenas interessa se está
em consonância e bate com o pensamento ou não. Os fiéis, como um filho, ou aluno,
ou aquele nosso grande amigo, têm uma tendência enorme, quase inatacável, em acreditar
em nós, simplesmente porque “o mundo” já introduziu informação suficiente nas
mentes para que seja analisada antecipadamente a notícia, “filtrada” já de
início pelas certezas e opções prévias que fizemos.
Nascemos
para aprender, aprendemos pelas relações sociais, e com a observação das coisas
e dos fenômenos do mundo ao nosso redor. Nossas vidas cotidianas continuam a
reforçar, mais ou menos, essas estruturas arquetípicas formadas; daí permanentemente
tudo o que pensamos ser está a se reforçar por nossas vidas concretas, por nossas
posições sociais, pela régua que à nossa volta escolhem para medir nosso
sucesso, pela vida que temos com mais ou menos segurança, conforto e luxo.
Somos seres em permanente construção, mas não tanto; somos seres seletivos,
bastante seletivos. Somos seres da experiência “calcificada”, um “fóssil”. Precisamos
derreter, e nosso prazo de validade precisa ser esticado, dilatado pelo estudo e
pela sensibilidade (sic), e isto, quiçá, possa ainda ser escolhido por nós até
o fim!
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Referências
Bibliográficas
GOMBRICH,
E. H. O Sentido da Ordem: um estudo
sobre a psicologia da arte decorativa. Porto Alegre: Bookman, 2012
KANT,
Immanuel. A Metafísica dos Costumes.
São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010
ROCHA,
José Manuel de Sacadura. Fundamentos de
Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2014
VIGOTSKI,
Leve S. A Formação Social da Mente.
São Paulo: Martins Fontes, 1994
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Obs.:
Agradeço a todos os amigos que de forma direta ou pelas redes sociais se
prestaram de forma cortês a me ajudar com informações sobre o tema.
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