A Beleza, O Humano e O Fascismo: Considerações Precisas a Partir do "Retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde
“Não! Nada mais havia. Por vaidade a tinha respeitado. Por hipocrisia, havia afivelado a máscara da bondade. Por curiosidade, tinha permitido a si mesmo aquela renúncia. Reconhecia-o agora. Mataria o passado e tornar-se-ia livre. Mataria aquela monstruosa alma visível e, sem suas hediondas advertências, recuperaria o sossego. Apanhou a faca e enterrou-a no retrato. Ouviu-se então um grito e o ruído de um corpo que caía. Ao entrar, encontraram pendurado na parede um esplêndido retrato de seu patrão, que o representava como estavam acostumados a vê-lo, em toda a pujança de sua rara juventude e beleza. Estendido no solo, encontrava-se um homem morto, em traje de cerimônia, com uma faca cravada no coração. Era velho, cheio de rugas e seu rosto inspirava repugnância. Só o reconheceram quando examinaram os anéis que usava.”[i]
§
1 A barbárie: não começa com a política e o direito! - Seria mais sábio
que a política e o direito aprendessem algo com as Artes; - A história nos
ensina que na multiplicidade de circunstâncias os eventos raramente têm apenas
uma causa, ainda que seja a complexidade que nos embota o olhar; - Tenho
pensado muito que, possivelmente de forma sistemática, a “civilização”
ocidental se de um lado incentiva a cultura, por outro a usa como instrumento
de domesticação das mentes e dos sentidos, e as manifestações artísticas
contemporâneas servem muito para nos “desviar” o olhar do que realmente
interessa, do que efetivamente é importante, pois a Arte não é “isenta”,
“neutra” nem tampouco “livre”, completamente “subjetiva”, ao contrário, ela
sempre se interessa pelos seus espectadores e pela alienação das massas, de uma
forma ou de outra, cujo campo próprio não está imune às ideologias e aos
interesses dominantes de seu tempo; - Se a Arte moderna é filha da complexidade
– técnica, científica, mas igualmente da criação cognitiva em mais alto grau de
abstração – mais essa complexidade tende a velar a ideologização possível dos
que detêm o poder [o capital!]; - Não gostaria de ser mal entendido: a Arte tem
esse direito, ela deve ser iconoclasta e “filosofar às marteladas” (Nietzsche,
1888)[1];
mas estou convencido que, ao mesmo tempo, ela deve prescindir cada vez mais de
“mecenas” e “intérpretes” para fazer seu papel crítico da realidade política
caótica e da condição humana paradoxal, quer dizer, proporcionar ao espectador
[às massas] o desvelamento dos poderes – pelo olhar deste!;
§
2 O peso: da consciência humana não é a consciência de si mesmo, mas o
que esta provoca: o “medo”!; como sabemos, a finitude [a consciência da morte]
é a mãe de todos os medos (Shopenhauer, 1818)[2]; -
Daí que a condição humana dada por sua consciência é a irrecusável tendência a
maximizar o desejo, o querer, a satisfação [prazer], o “ter sobre o ser” (Fromm,
1976)[3],
porque sobre nós cai todo o peso do tempo limitado entre algum ponto após o
nascer e o momento derradeiro - inexorável, tanto quanto inapreensível - do fim;
– Mesmo para os que acreditam que esse fim é relativo, que ele de fato não
existe e que a imortalidade se dá em outros planos e de outras formas, ainda
assim, creio eu, foi a diabólica consciência pelo menos desta limitação e seu
mistério que levou às grandes religiões: a possibilidade de seus discursos de
vida eterna só pode chegar ás massas pelo medo - não só a perda das coisas
desta vida, mas a morte e o mistério pós-morte-vida, normalmente punitivo
[dialogia com a salvação ou bem aventurança da alma], portanto as religiões,
também a filosofia, de forma geral têm por mesmo fundamento a consciência da
finitude humana e da continuidade da vida, “mais para continuar tendo do que
para ser” – no caso da melhor filosofia “mais para ser do que continuar tendo”;
- Na contemporaneidade é indubitável que a par das tecnociências e
farmacotecnologias, que prolongam a vida do corpo, a depressão e a histeria só
tendem a aumentar porque apesar deste alongamento do tempo de vida a vida não
está melhor; mas fundamentalmente, porque a bipolaridade entre esse tempo maior
e a consciência que ele é afinal limitado leva à esquizofrenia do tipo temporal-existencial:
quanto mais se prolonga a vida por meios artificiais mais o medo da perda
[coisas, vida] e a angústia da morte se intensificam (as sociedades, inclusive
as mais aparelhadas, já estão vivenciando essa realidade conforme indicam os
dados sobre saúde mental, suicídio e violações à vida [própria e alheia])[4]; -
“Só” por aqui pode-se entender melhor o que leva de forma consciente pessoas
aparentemente “normais” e até “comuns” a comportamentos tão perniciosos, sem
qualquer pudor e constrangimento [corrupção, prevaricação, falso testemunho, violação,
crime] que nos fazem incrédulos de sua própria sanidade (Preciado, 2008)[5];
§
3 A condição humana: “política” (“zoon
politikón” – Aristóteles) e “econômica” (“homo economicus” – Marx) é, fundamentalmente, orientada para
retardar a morte; porém ela é tal que antes do fim está o envelhecimento, antes
da morte o definhamento; – Acho que é este o entendimento maior de Dorian Gray:
se a finitude pudesse ao menos ser imediata!, (bem-aventurados os que morrem antes;
que o fim seja imediato!); - Mas também raramente aceitamos, enquanto vivos-conscientes
dessa finitude irreversível, a morte – isto parece paradoxal: somos seres da
“recusa” da doença e do sofrimento, não suportamos o fim, mas fundamentalmente
nem o tempo intermediário antes dele [deterioração do corpo, definhamento
mental]; não suportamos sequer a fatalidade (amor fati: Nietzsche, 1881-1882)[6] –
não podemos, não há lugar nem tempo para isso, “Time is Money!”;
§
4 O Belo: na obra de Oscar Wilde (1891) relaciona-se com as forças
portentosas [arquitetura] do Universo que condenaram os humanos a perderem a
beleza, o vigo: enrugados, claudicantes, desmemoriados, sem forças, doentes,
perdas parciais, lentamente, perdas totais, na melhor das hipóteses concertados
através de próteses; a Força é tão medonha que todo esse definhamento antes do
derradeiro é inelutável, e nos leva muito a desejar a brevidade de todos esses
tormentos; - Diante dessa realidade, duas opções, pensa Dorian Gray: a morte
fulminante [uma arma, um cálice de veneno, um duelo provocado], ou o encontro
com o outro lado do medonho - o outro lado que se equipara em energia, recursos
e determinação, capaz de manter a juventude sem definhamento e morte, é o
demoníaco, uma força equivalente à Arquitetura do Universo; - E afinal, bem
vistas as coisas, tanto o Bem como o Mal nos cobram o mesmo quantum – simplesmente a vida!: Dorian
Gray pensa assim: “Que diferença é realmente diferente? Diferença não é apenas
uma questão de tempo? E se eu não quero certo tempo, ou o quiser de outra
forma? No final dá no mesmo! Negocie o que negociar, seja quem for o comprador,
tudo se reduz a alguns míseros anos! E o que é isso para a eternidade, se é que
ela existe?! O que tenho para te oferecer, Oh Boy? O tempo! Antes que o tirem
eu a ti ofereço!”; - Dorian Gray morreu naquele instante, não quando olha anos
mais tarde, sem envelhecer ou adoecer, e após ter assassinado o pintor, o retrato
que reflete sua verdadeira condição decrépita ao extremo; mas ainda ali, ele
foi soberano quanto a suas escolhas!; - Talvez contra a tirania demoníaca
apenas isso nos reste: negociar e pôr fim à negociação...;
§
5 O fascismo: como “projeto de vida eterna pela política” anda de mãos
dadas com o ressurgimento do belo, da beleza, e, consequentemente, com a
supressão de tudo que represente ou possa a vir a representar a decadência, a
decrepitude, a doença, a indigência e a desarmonia [reforço da ordem pelo belo
na obra de arte][7]
– o projeto filosófico-político do fascismo reforça-se em um projeto estético
primoroso (Peter Cohen, 1989)[8],
Arte só vista antes no Ocidente na arte greco-romana; - O convencimento das
massas desesperadas, angustiadas, envergonhadas, sem autoestima são terreno
fértil para uma redenção: nestas circunstâncias a política é uma religião para
elas, dá-lhes uma sobrevida, mesmo que a destruição seja evidente e iminente (Arendt,
1951)[9]; -
É bem possível que no começo acreditem em algum poder constituído e nas instituições
que vigem, que acreditem na preservação e funcionalidade das leis e dos
protocolos morais, nas forças de mercado, na Justiça, no Estado; ou, pior,
caiam no “culto da personalidade”, idolatrem este ou aquele governante e alguns
que aparecem como justiceiros: alguns “heróis” surgem das brumas da obscuridade
e das instituições superadas, e estes serão vistos, precisamente, como parte do
projeto político-estético necessário, ainda que fascista e mentiroso – e então,
mesmos estes serão (a)traídos pelos circuitos demoníacos da “restauração” e dos
sistemas de destruição que são a fuga para todos os medos e desamparos –
contudo, logo todos perceberão aturdidos que o demônio do outro lado do retrato
já os possuiu – tarde demais!, agora só resta sobreviver sem olhar para trás!;
§
6 Afinal: queimar tudo antes do fracasso da soberba e da loucura,
destruir tudo que manche o belo (como o sangue que escorre no retrato de Dorian
Gray), tudo que seja velho, feio, mal formado, mal acabado, o que não guarda as
“proporções áureas” - os miseráveis, os doentes, os gays, os de raças impuras, os
derrotados; limpar, limpar para surgir a “vida” e derrotar a morte – a vida
nessas condições (a)parece tão vergonhosa quanto a morte e o envelhecimento são
indesejáveis: por isso é tão fácil passar da situação de fracasso e
desesperança para a mesma lógica estética fascista da destruição e
aniquilamento em massa; - Os fascismos foram contemporâneos, essa é a cara da
modernidade, é a aceitação da barbárie porque se acredita passageira e
necessária para a construção da pureza e da beleza além, da mesma forma que se aceita
a acumulação desmedida, o fetiche das coisas, o conluio com o poder e o Estado;
- “Mefistófeles” sabe que a vida breve precisa deixar uma obra de arte
monumental, os homens acreditam se perpetuar nas obras, melhor nas grandes
obras, acreditam nisto quanto menos têm, menos a perder mais a ganhar, e assim
as massas acreditam poder contornar a sua condição de sofrimento e morte; creem
rumar para fora da miséria, da indigência da dor, creem fugir da brevidade da
vida que envelhece e morre, e vão com relativa facilidade da santidade às
câmaras de gás, do holocausto à vida
eterna; - Procuram a permanência e a juventude na redenção do Apocalipse: descontrole,
histeria, esquizofrenia;
[1] Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos – Ou Como
Filosofar Com o Martelo. 3. ed. In Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
[2] Arthur Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação.
São Paulo: Editora Unesp, 2005.
[3] Erich Fromm, Ter ou Ser. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1977.
[4] “Estima-se que um milhão de
pessoas morram desta forma anualmente (suicídio), uma a cada 40 segundos, o que
equivale a 1,4% dos óbitos totais” (172 países, segundo a OMS). Veja-se em:
.
[5] “Nessas condições, o dinheiro se
torna uma substância psicotrópica significante, abstrata.” Paul B. Preciado, Testo yonqui. Madri: Espasa, 2008, p.
37.
[6] Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência. Livro IV, § 276: “Amor fati: seja esse de agora em diante
o meu amor”.
[7] Nosso cérebro (uma “pequena”
traição?) comporta-se de forma seletiva e voltado, então, para a restruturação,
pondo ordem aos caos seletivo que ele mesmo provocou. Veja-se Ernst Hans
Gombrich: “O Sentido da Ordem – Um
estudo Sobre a Psicologia da Arte Decorativa”. São Paulo: Editora Bookman,
2012.
[8] Arquitetura da Destruição, Documentário, Dir. Peter Cohen, 1989.
[9] “Em épocas de crescente miséria
e desamparo individual, é tão difícil resistir à piedade, quando ela se
transforma em paixão, como deixar de condenar a sua própria universalidade, que
parece matar a dignidade humana, mais definitivamente do que a própria
miséria”. Hannah Arendt, O Sistema
Totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978, p. 420.
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