O Abstracionismo de Kandinsky e Minha "Viagem" em Nietzsche
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Na virada do século XIX para o século XX o Abstracionismo, que teve em WASSILY KANDINSKY (1866-1944) sua expressão máxima, revela a inquietude dos artistas em
procurarem fugir da figuração dos “objetos” e das “coisas em si”. Mesmo em
relação à natureza se observa a mesma intenção de distanciamento da paisagem:
“A paisagem não tem valor se é apenas bonita. Nela deve haver a história da
alma, ela deve emitir um som que responde aos sentimentos do coração”
(Konstantin Korovin). FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900) havia dito que “Não é, como se adivinha, a oposição
de sujeito e objeto que me importa aqui (...)” (A Gaia Ciência, In Os Pensadores, pág. 218). Mas a relação entre sujeito
e objeto não se extinguiu nas artes, e na esteira criada por Nietzsche, o
objeto por si passa a ser visto como a “coisa” que deve ser minimizada, quando
não suprimida, dando lugar a uma essência, um sentir, um experimentar livre da
objetivação que o exterior - coisa ou paisagem - tende a determinar.
Assim,
paulatinamente, Kandinsky e seus colegas russos e alemães (Grupo “O Cavaleiro
Azul”), vão deixando de lado a figuração em sua pintura e produção literária,
substituindo as figuras e os cenários, criados ou naturais – a não ser na medida
em que possam contribuir para a autorreflexão e criação livre do observador,
como um ponto a partir do qual o espectador pinte o seu próprio quadro -, pelas
formas distorcidas, pelas linhas e geometrias abertas e descontínuas,
imprecisas, pela mistura de cores garridas, alegres e fortes, enfim, verdadeira
abstração do que possa parecer aos sentidos um imediatismo preciso: “A cor é um
meio para exercer uma influência direta sobre a alma” (Kandinsky). A precisão
das formas, na visão de Kandinsky, obscurecia a grande viagem do espírito, que
deve ficar livre do determinismo figurativo para “de dentro”, espiritualmente,
criar o que deseja ver, ou seja, uma linguagem que representa o que o sujeito é
e vê como é, uma conversa consigo mesmo, diante da impossibilidade real de que
coisas e cenários possam, por si mesmos, desenhar e pintar a realidade, e,
consequentemente, a verdade, muito ao sabor de uma arte nietzschiana[1].
De
certa forma, o Abstracionismo recusa a definição, a ideia pré-concebida, o
discurso paradigmático, a doxa
determinista, portanto, uma ruptura com a gramática ortodoxa, imediata e
superficialmente reveladora no nível da linguagem pictográfica. Não é simples
acaso que Kandinsky nunca se desvinculou de suas impressões ao viajar pelo
leste mais remoto de seu país, como aluno de Etnologia e de Direito, e entre os
povos Komie e Pomors ter visto costumes tão primários, originários quanto
distintos, como os hábitos xamanísticos dos Sharnuud-Darhad,
povos mongóis, em uma conexão entre a vida material e a sensibilidade
experimental mais espiritual, que dribla os sentidos adequadamente educados
pelo conhecimento objetivo e hegemônico formador da consciência de grupo.
[1] É
interessante e de suma importância anotar que a tendência megalomaníaca dos
modernos autoritarismos de Estado, nada tem a ver, neste sentido, com uma arte
nietzschiana, pois se a construção filosófica do nosso filósofo passa pela
transvaloração de todos os valores, logo, pela remodelação da linguagem, a crítica
aos discursos e enunciados que ela oficialmente passa, mais coerente seria não
reproduzir os grandes monumentos e arquiteturas faraônicas, greco-romanas, como
o Nazismo e o Stalinismo fez (entre nós o caso da ditadura militar mais recente
nos anos de 1960-1980), e ter aderido precisamente à arte minimalista,
construtivista, reflexiva, que escolas como o Abstracionismo apregoava, um
rompimento com a objetivação própria dos conceitos oficiais, o sentir oficial,
o pensar oficial. Não por acaso, as obras das escolas Abstracionistas,
Cubistas e Surrealistas, foram confiscadas, preteridas, perseguidas quando não
destruídas tidas como “arte degenerada” (tanto pelo Nazismo como pelo Realismo
Socialista). O fato destes regimes totalitários na primeira metade do século XX
terem perpetrado tais ideias contra as novas e radicais linguagens de
representação artística, demonstra quanto longe devem ser consideradas do
pensamento de Nietzsche, afirmação tão mais importante quanto se sabe que
erroneamente muitos simpatizantes do Nacional-Socialismo viram “grandes
inspirações” na obra de Nietzsche; nada mais descabido e banal. Sobre o
assunto, veja-se: 1. O texto “Nietzsche: Vida e Obra” à guisa de prefácio que
consta da coleção Os Pensadores – Editora Abril, 3ª. ed, 1983 (Pesquisa:
Olgária Chaim Ferez; Consultoria: Marilena de Souza Chauí); 2. Na edição de
“Nietzsche: A vontade de poder”, da editora Contraponto, 2008, a Apresentação de Gilvan Fogel, e Sobre a Tradução de Marcos Sinésio
Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes; 3. Também o documentário “A
Arquitetura da Destruição”, de Peter Cohen (1989).
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