Somos Todos Estrangeiros! - Preâmbulo de uma Etnologia da Hospitalidade
Com exceção dos indígenas e civilizações pré-colombianas das Américas, somos todos estrangeiros!
Entende-se por Etnocentrismo
a abordagem – preconceituosa – que uma determinada cultura é superior e melhor
do que outra(s). Com isto fica determinado, aos moldes darwinistas[1], que uma cultura pode ser
entendida a partir dos estágios
anteriores que a precederam, estabelecendo-se uma linha que vai dos grupos
humanos mais “atrasados” (selvagens) às sociedades mais “desenvolvidas”
(civilizadas). Assim, elementos e aspectos, determinadas características, devem
ser selecionadas para demonstrar a superioridade de uma cultura sobre a outra; normalmente
as visões discriminatórias na Antropologia costumam eleger o aspecto
tecnológico para demonstrar a superioridade de uma sociedade sobre a outra.
É sabido que os povos indígenas tendem a apresentar uma forte
rejeição dos indivíduos de outras tribos, mas isto se deve à necessidade destes
grupos primevos estabelecerem limites quanto à sua identidade cultural, pois em
seu ambiente nenhum outro aspecto que não seja a cultura lhes servirá para se
distinguirem. De qualquer forma as sociedades tribais não vivem nunca em
completo isolamento e nada se compara em seu ambiente ao etnocentrismo político
e empoderamento das sociedades de Estado que usam a diferença – alteridade –
como mecanismo relutante de superioridade e dominação das demais culturas.
Neste pormenor pode-se afirmar que o máximo que a abordagem
etnocentrista pode chegar a almejar, e de fato são poucas as sociedades ditas
desenvolvidas que o fazem, é a uma convivência com barreiras e preconceitos,
muros e cercas eletrificadas, que após o Iluminismo se passou a chamar de tolerância: quando não se propõe a tolerância
zero se propõe francamente a intolerância[2].
A abordagem etnocentrista está diretamente ligada à história e
cultura brasileiras por vários motivos, pelos quais ainda hoje se pode verificar
quanto o preconceito e descriminação fazem parte de nosso cotidiano. Primeiro,
porque como produto da colonização europeia, nossos povos indígenas foram
usados como manobra para dominação e exploração necessária à acumulação prévia
do capital no mercantilismo; aqui nem as chamadas missões jesuíticas podem ser
inocentadas por uma catequização e evangelização que serviram de apaziguamento
dos índios, e que possibilitou a sua escravização e exploração de suas terras
por parte da União Ibérica (Portugal e Espanha), e depois pelos Holandeses e
Países Baixos (Companhia das Índias Ocidentais).
Em segundo lugar, destaca-se entre os motivos do etnocentrismo no
Brasil, o advento do Iluminismo, conhecido pela Época das Luzes (século XVIII),
onde a ideia da prevalência da razão deveria ser reconhecida nas realizações
técnicas-científicas dos europeus. Logo, se o colonizador tinha armas de fogo e
navios poderosos, ou quinquilharias para “ofertar” aos índios, isto era
sinônimo de superioridade. O mesmo imediatamente se estendeu às ciências novas
do século XIX, como a Sociologia e a Antropologia, onde o racionalismo
positivista do filósofo e sociólogo francês Auguste Comte (1798-1857), de cunho
darwinista, estabeleceu na República a ideia de superioridade etnocentrista
europeia.
Não por acaso, em território brasileiro, inúmeros intelectuais,
jornalistas, escritores e juristas – Oliveira Viana, Octávio de Faria, Silveira
Martins, Silvio Romero, Capistrano de Abreu -, não só defenderam incontinente o
Positivismo – Ordem e Progresso -, como criaram as teses fundantes do purismo
racial e do raquitismo nacional, verdadeiro etnocentrismo xenófobo. Este foi o
terceiro motivo que levou a uma visão cultural brasileira de superioridade e
preconceito de uns sobre os outros, da segregação, exploração e escravização de
índios, negros provenientes do tráfico, brancos pobres punidos, mestiços,
mulatos, mamelucos, cafuzos etc.
Por último, ditaduras contumazes em solo pátrio, como de resto em
toda a América Latina, sempre tenderam a privilegiar as elites latifundiárias e
financeiras nacionais e internacionais, estabelecendo clara divisão entre o
selvagem e o civilizado, o atrasado e o desenvolvido, o ruim e o melhor etc.
Este mecanismo etnocentrista deveras se repete ainda hoje na cultura brasileira,
quando o próprio povo, sem cidadania real, se lança à aliança e ao favor menos
apropriado na tentativa desesperada de sobrevivência cujas condições mínimas de
vida digna lhe são acintosamente retiradas. Quem nunca ouviu alguém dizer “Sabe
com quem está falando?”.
Entende-se por Relativismo
Cultural a abordagem – incondicional – que todas as culturas são igualmente
válidas e tão ricas umas como as outras. Com isto se quer dizer que não existe
a possibilidade de determinar uma sequência linear de desenvolvimento
civilizatório, onde umas culturas seriam o protótipo das outras e assim
sucessivamente. Logo, todos os elementos e aspectos de uma cultura são relativos àquela cultura, tão
importantes e especialmente válidos para a mesma como outros elementos e
aspectos para outra cultura.
A abordagem do relativismo cultural pretende substituir as visões de
superioridade cultural, deixando de eleger interesseiramente determinados
elementos de uma cultura para consignar o status
de superior. Pretende, portanto, construir uma visão de convivência entre povos
que vá, inclusive, além da tolerância do fisiologismo, condicional, com que o
etnocentrismo trata as demais culturas lhes emprestando uma inferioridade e non sense com propósitos sabidamente de
dominação e exploração econômica. Ao que tudo indica os massacres e etnocídio
dos povos indígenas e das culturas pré-colombianas do século XVI e seguintes
pouco ensinou às nações se consideram no topo da civilização: as guerras e os
genocídios modernos e atuais são a prova de sua total falta de racionalidade no
âmbito da etnologia da hospitalidade.
Ao contrário do que faz o etnocentrismo, o desenvolvimento
técnico-científico de uma sociedade deve ser entendido como próprio e útil
àquela sociedade, que é bem possível que um grupo social não tenha interesse em
desenvolver outras tecnologias que vão além de suas necessidades e preferência
pela integração com a natureza sem a destruir de forma predatória e
irreversível. Claro que uma tecnologia industrial, com as máquinas de guerra, pode
exercer empoderamento e desnivelar o confronto com grupos com outras
tecnologias (aliás, este é o motivo mais importante quando nos perguntamos por
que os Portugueses e Espanhóis levaram vantagem no confronto com os povos
indígenas da América Latina, ou os Holandeses sobre os indígenas do Caribe e os
Britânicos sobre os indígenas do Pacífico, a França sobre as nações africanas,
os Ingleses e Franceses sobre os índios da América do Norte, os Japoneses sobre
os Chineses etc.). Mas o fato de uma sociedade ter desenvolvido tecnologias
industriais, principalmente bélicas, nada nos diz com respeito ao quantum de felicidade e bem estar que
proporcionam aos seus próprios cidadãos. Talvez esta seja a melhor lição que a
abordagem do relativismo cultural possa nos oferecer!
De qualquer forma, dificilmente a abordagem etnocentrista facilitará
o respeito pelas minorias étnicas e religiosas, ou se engajará na luta contra a
opressão sobre a mulher, contra condutas homofóbicas, menos ainda contra a
discriminação aos menos abastados e excluídos. Estas são bandeiras melhor
entendidas pelo engajamento dos que compartilham de uma abordagem cultural
relativista. Não se trata da volta do mito do “bom selvagem” de Rousseau, como
que um etnocentrismo às avessas, mas de procurar um equilíbrio entre os
benefícios do desenvolvimento científico e industrial e os valores de harmonia
e integração do homem com a natureza e o Universo, reconhecendo o Outro como
aquele que preferiu e tem o direito de ser diferente, pois que destarte as
diferenças culturais, toda a humanidade é Una.
[1] Charles Darwin (1809-1882) – “darwinismo” social ou
cultural, referindo-se à concepção que existe um desenvolvimento encadeado em
que uma sociedade procede da anterior e que todas as sociedades podem,
portanto, serem vistas como uma sucessão linear de estágios que vão do inferior
para o superior, selecionando os elementos e aspectos mais importantes. Aqui
existe a ideia a equiparar a formação e desenvolvimento das sociedades e suas
culturas ao mesmo dinamismo de seleção do mais “forte” e adaptabilidade ao
ambiente externo, tal como Darwin preconizou para os demais seres vivos a
partir de seus estudos da Biologia no livro A
Origem das Espécies.
[2] Jacques Derrida (1930-2004) fez a crítica ao
pseudomodernismo que estava contido na expressão “tolerância”, sugerindo que as
relações mais democráticas entre os povos e suas culturas deveriam substituir
tal conceito pelo de “hospitalidade”, onde o respeito e a convivência com o
diverso do outro deveria ser incondicional.
Este texto marca a grande diferença entre as análises positivista funcionalistas do estruturalismo - mais do que eleger um fenômeno como "tipo ideal" (weberiano), procede-se a historicizar de forma ampla e determinada as origens do preconceito e descriminação no Brasil, uma história que é nossa mas não é simplesmente nossa.
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