Quando a Impaciência é uma Virtude


As pessoas procuram a vida no tempo; devia-se procurar o tempo na vida. Não temos tempo. O tempo está, nós passamos por ele. Vimos, contamos uma história e vamos embora. No final, o nada. Para quem estranha, para quem precisa de distância, para quem pensa, o tempo é sempre curto. Meu amigo Alberico me disse certa vez: “Agora professor, que temos algo a dizer, que sabemos o que dizer, temos esse ardor permanente que vem da certeza de que não temos tempo!”.
*
Sabem, ela estava bem ali, disfarçada, dissimulada, escamoteada, escondida atrás de um copo com o resto de café do almoço que algum freguês, um daqueles que vêm à padaria no almoço como se fossem ao banheiro da fábrica, com as mãos sujas, as unhas pretas de graxa, algumas marcas do mesmo produto na cara sem lavar, cheirando a querosene misturado com o acredoce do suor incrustado na pele. E o ‘jaleco’ usado atrás de algum torno velho e barulhento?! Atrás de mim:
- Um cafezinho, por favor.
- Do almoço, é?
- É! E se não fosse meu chapa, ia cobrar, ia?
- Não, claro que não, só para saber.
- Para saber, é? Nada, que nada, meu chapa, todo dia aqui e se bobear me cobra. É ou não é?
- Que nada, só para saber.
- É sei... Olha só a quantidade do café?! Se não fosse do almoço era mais, não era?
 Olhei para ela atentamente: era pequena, aquela do tipo padaria, rotisseria, mercadinho de esquina, boteco, marron claro, corpo afinado. E tive a nítida impressão que olhava para mim, falava comigo. Engraçado, tem gente que para falar conosco não nos olha diretamente. A mãe me dizia: “Meu filho desconfia daqueles que falam olhando para o chão, estão a esconder alguma coisa”. Mas ela não!, olhava direitamente em meus olhos. Podia confiar nela? A confiança pode depender de outras coisas além dessa capacidade de encarar o outro. Neste caso pensei que também dependia da aparência. E ela não tem a aparência que normalmente consideramos como agradável.
- Puff!... Rs!... Que porcaria é esta? Até a Lulu lá da fábrica faz uma água colorida melhor que esta mixórdia! Nossa! Os cara não lavam esse coador desde que abriu aqui!
- Que nada!, devaneia não mano! Vai corinthian!
- Vê aí logo quanto dá. Isso lá são maneiras de tratar o freguês? E cuidado aí, hein?! Olha o descontinho. Todos os dias aqui e os caras nos aprontam cada uma. Olha o desconto!
- É pra já. Calabreza acebolada a cavalo, arroz, feijão, saladinha foi compreta, não foi? Refri. Aí mano, tudo doze e cinquenta, na faixa o café.
Por impulso peguei logo um guardanapo de papel no porta-guardanapos, oleoso, escorregadio, de tantos dedos e mãos engraxadas de óleo que já tinham tentado a mesma façanha. Você já tentou pegar um guardanapo logo há primeira vez nessas janelinhas de padaria que servem almoço a qualquer hora e janta a hora qualquer? Vendo a minha atrapalhação, ela se aproveitou e esquivou para a fresta entre a armação da estufa dos salgados e o balcão de mármore, não pedra, esse mármore de acrílico moderno. Como não pude objetivar o que pretendia com o guardanapo, amassei-o e joguei-o no cesto de lixo ao lado do banco alto em que estava sentado. Acho que acertei o cesto, porque olhei meio que por cima, sabe, porque é intraduzível para a linguagem o que é um cesto de lixo desses lá pelas 13:30hs. Lembrei de um filósofo famoso: “Aquilo que a linguagem não puder expressar não existe”. Sei... Bem, é uma forma de driblar a consciência sobre certas coisas: é só achar que são intraduzíveis. Não sei se acertei o cesto de lixo. Olhei-a de novo. Desta vez, franzindo as sombracelhas, escutei:
- No outro dia teve um freguês, um senhor já de certa idade, um velho na verdade, que desabafou logo na entrada, ao ver a algazarra, a gritaria, o barulho, a correria, o tumulto de gente em pé, dos empregados tentando atender os pedidos aos berros para a cozinha, para o chapeiro, entre eles mesmos, e a espera na fila da padaria lá no fundo, e a curva oblíqua dos que querem pagar no caixa, que serpenteia entre as mesas dos que comem: “Eles têm que decidir se isto vai ser uma padaria, ou um restaurante!”.
- Restaurante?! Meu deus, mas nem lanchonete. Silvio, por favor!
- Paga lá, mano. Paga lá. Amanhã aquela feijoadinha, hein! Da hora, caprichada. Falta não, hein!
Nem escutei o que ele respondeu. Palavrão, eu acho. Mas é assim mesmo. Ela ficou ali me olhando, sem falar. Se ela realmente falou, o que teria a me dizer? Olhei de esguelha, para que ela não percebesse, para um paliteiro. O paliteiro apresentava as cores da bandeira de Portugal. E olha que a padaria é de italiano! Verde do resto de alface que deve ter grudado na graxa dos dedos de alguém quando comeu – com as mãos?, provável! -, o amarelo daquele molho ‘especial’ que só eles sabem fazer, uma mistura indecifrável de mostarda – acho! – com pimentão, cebola e salsa, vinagre e sabe Deus o quê mais! – já tentei saber os ingredientes, mas cada um fala uma coisa, e a maioria não sabe, só a Dona Conchetta, a cozinheira -, e o vermelho provável do catchup, ou do molho do parmegiana que servem a qualquer dia a qualquer hora, das 6:00 da manhã – não me perguntem como, mas servem! - às 22:30 hs, todos os dias do ano, literalmente.
Ela foi rápida. Não consegui sequer pegar o paliteiro, e ela já se mandava para debaixo da máquina de suco. “O bom” e o “melhor ainda”, segundo a gíria do lugar. Depois de alguns meses consegui entender o código secreto para designar o suco em pó diluído em uma superdosagem de cloro e água. “O bom” era o primeiro do lado de dentro da loja, o “melhor ainda” era do lado da porta. Todos têm sempre a mesma cor, mas acho que o gosto deve ser diferente. Nunca provei. Ainda vi as perninhas peludinhas se esgueirando por debaixo da máquina, mas já era tarde.
- Silvio, por favor!!
- A ‘impaciência’ é uma virtude doutor, a ‘impaciência’ é uma virtude. Jesus esteja contigo, doutor. O que vai ser hoje, doutor? Vai corinthian!

(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com lugares ou pessoas é coincidência.)

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Filosofia do Direito

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