Obama, Darwin e o Juízo Final


O que Barak Houssain Obama fez até agora, logo após a posse como governante dos EUA, parece confirmar grande parte do que apregoou e prometeu durante sua campanha. Proibiu torturas em Guantamano e em todas as prisões da CIA mundo afora, autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias, liberou verbas para as clínicas de aborto, reintroduziu o estudo de Darwin e a teoria evolucionista nas escolas americanas, parece disposto a uma aproximação com os mulçumanos, reduziu gastos do governo e deve conseguir injetar mais 800 bilhões de dólares na economia americana.
Estamos comemorando 200 anos do nascimento de Darwin: apesar de alguns erros científicos presentes em sua obra As Origens das Espécies e em A Descendência do Homem, absolutamente compreensíveis em obras escritas em meados do século XIX, a verdade é que desde então o universo gira de forma diferente, digamos da direita para a esquerda. No Brasil as escolas da ditadura ensinavam várias conexões interessantes às crianças: "Vocês vêem que os ponteiros do relógio giram da esquerda para a direita?! Se o comunismo fosse bom os ponteiros deveriam girar da direita para a esquerda. Tudo que é bom, tudo que é do bem, tudo que é de deus gira da esquerda para a direita. Deus pôs a terra a girar da esquerda para a direita, tudo que é de deus é de direita. Os comunistas são de esquerda, eles andam na esquerda, não na direita. Eles não podem ser do bem, eles não podem ser de deus. Eles são ateus, não acreditam em deus!" (extraído do inédito Aventuras de Zezinho - O ano em que meu pai passou as férias na África). As crianças de ontem são os adultos de hoje: pais, professores, trabalhadores, padres, empresários, políticos, advogados, médicos etc., etc., etc.
O principal erro de Darwin foi supor que as espécies sempre se desenvolveriam motivadas por um único destino: serem superiores. A sobrevivência era a mãe de uma trama de aprimoramento genético e adaptação constante que, degrau por degrau, colocaria os mais fortes em condições de superarem os outros habitantes do planeta. Assim, o homem europeu era superior aos outros homens - os das colônias tropicais, por exemplo -, a civilização europeia superior à oriental, o ocidente superior ao oriente, o branco em relação ao negro e índio, e a natureza beneficiaria sempre os mais fortes, os mais dotados a apontar sempre para o norte. Observação: Darwin jamais foi enfático em dizer que o homem descendia do macaco (a ideia mais forte desta descendência está em Lamarck, um anti-criacionista convicto). Darwin disse que possivelmente o homem era "parente" do macaco, no sentido de existir um ancestral comum. Eu estou cada vez mais inclinado a desacreditar neles quando olho os macacos: é que os vejo mais inteligentes do que nós. Claro, depende do que se entende por inteligência ou superioridade.
Um dos principais erros da esquerda foi se aproximar tão incontinente do evolucionismo: existe correspondência entre Darwin e Marx, que na ânsia de criticar o idealismo hegeliano alemão, acabou incorporando de alguma forma (talvez mais Engels do que ele!) o evolucionismo em sua filosofia da história. O principal erro do cristianismo foi a incapacidade de aceitar afinal que, seja uma ameba primordial seja um macaco, ambos são criaturas de deus, ou não?! Mas tudo é uma questão de tempo (relação entre espaço e velocidade): afinal até já se aceita que a terra gira em volta do sol e que ela é redonda!
Aceitar que deus está em tudo e que a sua presença pode ser sentida num simples respirar, em um simples desabrochar de flor ou na serenidade do orvalho que cai, dizer que existe um fluxo natural, vital e divino em todo universo, levou Giordano Bruno à fogueira. Agora a igreja anglicana vem pedir perdão a Darwin. Saramago em seu blog diz que "a generosa palavra não poderia apagar um só insulto, uma só calúnia, um só desprezo dos muitos que lhe caíram em cima" (http://caderno.josesaramago.org/2008/09/17/perdao-para-darwin/). Mas o juízo final, afinal, é o que conta. Veja-se o juízo final de Ensaio Sobre a Lucidez (Saramago) nas palavras do comissário de polícia: "Quando nascemos, quando entramos neste mundo, é como se firmássemos um pacto para toda a vida, mas pode acontecer que um dia tenhamos de nos perguntar Quem assinou isto por mim, eu perguntei e a resposta é esse papel". Pelo menos o papel para suas várias utilidades, inclusive quando utilizado para limpar, passou! Gregor Mendel, o cientista que descobriu as bases da hereditariedade e, portanto, precursor da genética, era padre católico. O vaticano gasta milhões para estudar o universo e admite existência de E.T. em outros lugares no universo, pois porquê deus não deveria ter feito outros seres? Sinal dos tempos... Mas não pediu perdão a Darwin!
O triunfo sobre o obscurantismo, o fanatismo, a prepotência e o autoritarismo dos saberes, sejam científicos ou religiosos, só podem ser derrotados pela ética. Ela não se confunde com o pragmatismo ou misticismo. Ela bebe da água da verdade que jorra da condição humana, da simples e inelutável condição humana. Uma estética kitsch, em essência, nega a "porcaria" que somos e produzimos fisiológica e intelectualmente: ponto positivo, sem distinção. Kundera (o primeiro que li que usava esta palavra - A Insustentável Leveza do Ser) estava preocupado com a relação entre deus e o defecar. Minha mãe dizia que a pior pobreza é a "pobreza de espírito". A estética não pode ser a eucaristia de uma ética perversa, totalitária e aterrorizante. Do comunismo, do fascismo, do nazismo, da inquisição, do sionismo, da entifada, do militarismo, do populismo, do cientificismo, do tecnicismo. Onde está a verdade? Em lugar algum e ao mesmo tempo em todos os lugares! O problema kitsch é que se alia perfeitamente ao saber como verdade, pureza, superioridade; quando nega os dejetos do que somos alia-se ao darwinismo, dos eleitos, bem dotados. Resposta saramagiana: "Nascemos sem saber para quê e morremos sem saber porquê"; questão de ética que se sobrepõe à estética: a beleza, assim como o ideal ascético, não podem esconder, tampouco transmutar, o horrível e desculpar a bestialidade que produzimos. Não há justificativas nem negativas, nem são necessárias: somos o que somos e o que fazemos ("Você será conhecido para sempre pela trilha que deixa para trás" - ditado Sioux).
O quê ou quem obrigou o capitão Jim a dar sua vida pelos outros na tentativa de resgatar sua honra (Lord Jim - Joeph Conrad)? O que impediu Afonso Henriques de prestar vassalagem ao rei de Leão e Castela? O que conduziu Egas Moniz, seu aio, a se apresentar ao rei para ser enforcado por não ter conseguido manter sua palavra (para impedir que Portucale fosse invadida pelo rei, ele havia prometido que Afonso Henriques lhe prestaria vassalagem)? O que fez com que Leônidas com apenas 300 espartanos enfrentasse o exército descomunal de Xerxes, o Deus-Rei persa? Porquê Getúlio Vargas se suicidou? O que conduziu um operário e um negro ao poder mais alto de suas nações?
Existe um conto de Balzac, A Obra-prima Desconhecida, onde três homens de idades e gerações diferentes se deixam consumir pelo amor à arte, no caso a pintura magistral de mestre Frenhofer, onde técnicas inauditas de sombra e luz fariam desaparecer a diferença entre a realidade e a pintura. O preço dessa obsessão pela pintura os fez trocar a beleza real e apaixonada da jovem Gilette pela arte. Uma troca que acaba em tragédia, frustração, desesperança e desamor. Arte é arte, e a mais detestável beleza ainda será a beleza de uma natureza real. Enrique Dussel faz crítica igual a Schopenhauer, quando para este a libertação do sofrimento leva-nos a superar a vontade de viver pela vida contemplativa, o êxtase estético ou a santidade ascética. "Sua filosofia da história é absolutamente pessimista, negativa (...) Diante da dor inevitável, as vítimas da dominação histórica permanecem imobilizadas (...) O aparentemente crítico tornou-se reacionário" (Ética da Libertação).
O que Obama tem de diferente? Absolutamente nada: o que ele é e o que poderá fazer são nada na medida em que não pode ser traduzido pelo incognoscível divino nem sentenciado por pesquisa científica alguma. Onde não há missão não há obrigação. Onde não há obrigação existe, contudo, necessidade, necessidade de dormir, necessidade de acordar, de respirar, chorar, indignar-se, necessidade de vida real. O que volta e meia uns ou outros nos fazem acreditar é na honra. Precisamos sobreviver e é bem possível que o evolucionismo de Darwin esteja certo quanto a isso, da mesma forma como parece inegável que nesse trajeto estamos desejosos de deus para nos ajudar no árduo caminhar, ou mais epicuriano, para transformar o egoísmo em compaixão. Mas existe algo que supera a necessidade: a mãe de nossa superação e condição humana não está na adaptação e aprimoramento fisiológico, nem no medo do ininteligível, mas mais, muito mais, no fato de que somos o único ser capaz de negar o instinto e o medo para dignificar a honra. Existe tanta honra na natureza quanto em deus, se é que existe uma hierarquia aqui. Não somos ingênuos: acreditamos nos homens para nossa honra. Sabemos que seremos julgados: mais tarde ou mais cedo teremos que responder para aquele que nos olha do espelho. Sem corpo para culpar ou supliciar, sem ciência e sem deus, aqueles olhos serão o juízo final!

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