Isabellas, Ronaldinhos e Baianos


Existe um autor esquecido - com certeza não conhecido pelas grandes massas! -, chamado Thomas Szasz. Professor de Psiquiatria na Universidade de Nova York, sua obra mais conhecida entre nós chama-se A Fabricação da Loucura, publicada pela Zahar editores. O prof. Szasz é muito pouco venerado por seus colegas psiquiatras e pela comunidade acadêmica de forma geral. Aos cidadãos comuns provavelmente sua obra (que tem 5 outros livros publicados no Brasil pela mesma editora) jamais chegou e chegará. O que afinal defende o prof. Szasz? Que na maioria das vezes a doença mental não passa de uma necessidade social - econômica e política! - a afirmar o que seja "normal". As sociedades humanas sempre precisam afirmar o que lhes serve de referência para uma sobrevivência média desejada. Para isso devem existir comportamentos comprometedores, desviantes e desagregadores. De fato, é propriamente mais correto pensarmos que é a anormalidade que constrói a normalidade e não o inverso! Logo, ainda que com o avanço da civilização exista uma certa tendência a contemplar na normalidade uma gama maior de comportamentos díspares ou mesmo indesejáveis (Durkheim), ainda assim, estamos mais propensos a definir e repudiar o que seja detestável e repulsivo do que a definir racionalmente o que seja possível como alteridade do outro. Neste sentido, a doença mental, a "loucura", é antes de tudo um imperativo para se definir o que é tolerável. O mesmo princípio pode se estender a outros comportamentos que passam a ser úteis como funcionalidade social: criamos as prisões, as casas de correção para menores, os colégios internos, as catequeses eclesiásticas, os asilos e, obviamente, os hospícios! A Fabricação da Loucura permeia todos estes instrumentos de estigmatização, separação, exclusão, e suborna nossas consciências em favor da aceitação dos comportamentos alheios como estereótipos a serem denegridos e combatidos. A sociedade se transforma em um grande campo de concentração com uma sistema panóptico a zelar, não pela convivência e sobrevivência pacífica e harmoniosa dos indivíduos, mas a procurar permanente e sofregamente por bodes-expiatórios. Como Foucault diz, "A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos."
Então, quando um país com carências tão profundas - carências que remetem a necessidades básicas e respeito mínimo à dignidade humana -, se vê envolvido com comportamentos impensados e inauditos, facilmente se deixa levar por essa mistificação medieval da caça às bruxas a expurgar o mal do corpo social, fazendo justiça pelas próprias mãos, condenando sumariamente aquilo que muitas vezes é apenas a película cristalizada do caldeirão de desumanidades e descaso com o cidadão comum. Não que o caso Isabella seja de fácil compreensão e que as experiências sexuais de Ronaldinho, ou o desabafo intempestivo do coordenador da Faculdade de Medicina da Federal da Bahia sejam banais. Mas a veemência com que nos dedicamos e a importância que damos a tais episódios - esparsos por sinal! -, com a anuência perspicaz e persistente dos meios de comunicação e dos grandes baluartes da moralidade social, demonstra como estamos sempre dispostos, não conscientes, mas dispostos a torturar e queimar em praça pública aqueles que com seus infortúnios nos conduzem à paz de espírito na certeza de que somos melhores e sadios. Na verdade, para lá dos episódios mais indesejados cresce forte e perene o desejo incontrolável de no altar celestial fazer sangrar o bode, expiatório de nossas frustrações e fracassos cotidianos! Precisamos dar importância à loucura alheia para fugirmos de nossa própria loucura. Que felicidade pode ser construída com base na moral alimentada pela desgraça alheia, com base no homicídio, na fama e dinheiro que muitas vezes invejamos nos outros, na difamação e exclusão de um coitado pressionado para responder àquilo que toda a sociedade hipocritamente quer esconder. Por exemplo: quem está querendo se perguntar como um aluno depois de 8 anos de estudo de medicina, quando o ENADE lhe foi aplicado, pode tirar nota 2, ou simplesmente como esse aluno chegou ao oitavo ano? Não! Isso já foi esquecido através do escorraçado professor que fala uma besteira, como se o problema da educação no Brasil já tivesse sido resolvido após décadas e décadas de descaso e permissividade. O caso Isabella e o do Ronaldinho envolvido com gays é prioridade: temos que, de forma reiterada, os discutir e nos indignar publicamente, ao invés de discutirmos a miséria, a falta de instrução, a falta de saúde, a falta de transporte, a falta de comida, a falta de responsabilidade no trato da coisa pública e dos recursos e riquezas de nosso país. Mas, sabemos, mais importante do que isto é reforçar permanentemente que somos normais às custas dos devaneios e erros alheios. As mazelas dos outros são sempre mais importantes que nossas responsabilidades!

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