Carta a Uma Amiga Sobre o Direito


Querida amiga, que bons ventos a levem ao sucesso.
Respondo ao tema que me propôs. Espero não ser pretensioso e enfadonho.
Atualmente existem dois “mundos” jurídicos:
1. O que vê o “direito como sistema”, propagandeado pelo neoliberalismo da social-democracia, onde se acredita ser possível fazer justiça de forma tecnocrata, através de processos sistêmicos embasados em rigoroso cumprimento processual e estrita interpretação positivista da lei. É a retomada das velhas – entre nós sempre presentes - teses comteanas do século XIX, misturadas ainda com a sofrível interpretação autoritária de Kelsen. Junte-se a isso um pouco do direito da escola de Chicago com seus postulados cartesianos estatísticos e matemáticos, como em Pareto, e temos um direito e uma justiça que mais uma meia dúzia de anos o estado coloca no software de um robô a quem darão o nome, inadvertidamente, de “Reale”, e ai teremos a certeza da propalada segurança jurídica para além da fabilidade e do controverso.
2. O que vê o “direito como controvérsia” onde o discurso dialético e o contraditório não serão rasgados das páginas do direito constitucional, onde a eqüidade aparece como pressuposto para um direito que se vê sempre como resultado da lide e onde a lógica-jurídica é magistral em conter os desvios e as ambigüidades dos agentes em litígio. Claro está, contra o próprio estado e sua eficiente máquina de “lobotomizar” o ser humano, aqui ainda, deveras, deverá existir a possibilidade de confrontar interesses e desigualdades, tipo de direito este que afinal aí está desde Sócrates em sua argüição contra os Sofistas, realçado por Aristóteles com seu conceito de topoi, menos absoluto para a verdade jurídica, e que foi modernamente reformulado pela “nova retórica” de Perelman. Obviamente, para se aceitar este tipo de direito as sociedades humanas precisariam ser eticamente democráticas, algo que nem as pessoas e menos ainda o estado contemporâneo o deseja ser, haja vista como estamos inseridos na “sempre mesma nova onda” de caça às “bruxas medievais” ou aos “comunistas maccarthystas”, ou a do “Brasil deixe-o ou ame-o”, ou qualquer estupidez e xenofobia deste tipo.
Impressionantemente e contra o discurso oficial, tenho a impressão que querem que sejamos cada vez mais de direita ou de esquerda (mais de direita do que de esquerda!) - ainda que a direita seja essa coisa repulsiva que atende aos interesses das elites subservientes aos grandes empreendimentos transnacionais, ostentando roupagem de democracia neoliberal; ainda que a esquerda seja essa coisa à beira do ridículo paupérrimo do socialismo tupiniquim chavista ou o conchave e o revisionismo da esquerda. Mas existe algo mais impressionante, sintomático da mediocridade de nossos tempos jurídicos: nas faculdades de direito nada disto, salvo raríssimas exceções, é discutido com os “sempre mesmos futuros” operadores do direito, os que vêem como obrigação o julgar e punir. Alguma dúvida do paralelismo entre o “manicômio” e a “penitenciária”? Mas nem Hume em seu utilitarismo imaginaria quão perto estamos de realizar seu ideal pragmático; ele pelo menos ainda tinha coragem para afirmar que a moral era a contrapartida da rudeza do direito e que ambos eram os alicerces da sociedade. Falar de moral e ética hoje é um pleonasmo tal que a “nova retórica” foi acusada de esquecer a ética e se manifestar a favor dos poderosos. Na verdade, defender o contraditório, o direito à defesa, exigir processo tramitado e julgado como apanágio na luta contra o arbítrio, se esvai diante da subserviência acéfala a serviço do tecnicismo científico do totalitarismo – algo muito perto do ideário nazista e stalinista -, que entre nós está historicamente impregnado nos mais rudimentares arquétipos mentais a serviço da escravidão, não só entre o povo inculto, mas irreversível e indesculpavelmente entre os letrados responsáveis pelo ensino do direito no Brasil, mais preocupados com o lucro do que em formar cidadãos críticos e probos (só para não ficar dúvidas, uma escola acabou de aprovar no seu “vestibular” e recebeu matrícula para o curso de direito de um garoto de 8 anos!). Sinal dos tempos, diriam os ascéticos! Imagine as circunstâncias dos que repudiam tudo isso, inclusive o “ideal ascético”!? A situação é tão cáustica que ouso inverter o provérbio: “mais vale ser cego e surdo que ver e ouvir certas coisas”!
Então querida amiga, você que ainda faz parte de uma estirpe em extinção merece algo melhor: pense nisto e veja se tem a ver com os temas que me propõe.
Fico pensando se os estudos anteriores que desenvolvemos ficarão de todo “perdidos”.
Em tempo: visite este endereço e veja como ficaram em livro as aulas de Antropologia Jurídica a que nos dedicamos. Estou procurando editora, mas deixei sua aquisição livre por meio eletrônico (o livro mencionado "Antropologia Jurídica" - hoje na 5ª ed. pela JUSPODIVM - ainda não havia sido publicado; referia-me aqui apenas aos originais que revisava)*.
No mais fico à sua disposição, sabendo que mais do que conversar comigo, deve ver o que seu orientador pensa de tudo isto.
(Não) De qualquer forma, seja feliz!.

* Mantida a grafia conforme publicado em 08/03/2008.

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Livro Ética no Direito

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