Freud e o Socialismo - Erros Comuns, Conflito e Cultura de Paz
É
conhecida a afirmação de Freud que o “comunismo” [1]
não resolveria a questão da violência. Diz Freud: “Os comunistas acreditam
haver encontrado o caminho para a redenção do mal. O ser humano é
inequivocamente bom, bem-disposto para o próximo, mas a instituição da
propriedade privada lhe corrompeu a natureza” (O Mal-Estar na Civilização. Cia. das Letras, 2011: 58). E segue com a tese que o comunismo acredita que a posse de bens
privados de um indivíduo lhe dá poder acima dos demais e o leva a maltratar o
próximo “despossuído que deve se rebelar contra o opressor”. Finalmente, depois
de afirmar “que o seu pressuposto (do comunismo) psicológico é uma ilusão
insustentável” (ob cit: 59), justificado pelo fato da agressividade humana não
ter sido criada pela propriedade e não acabar seja qual for a forma política e
social, ou sistema econômico, e ela começar ainda na criança com o abandono da
satisfação anal (sua propriedade), chega à conclusão que “Se eliminarmos o direito pessoal aos bens
materiais, subsiste o privilégio no âmbito das relações sexuais, que se
torna fonte do mais vivo desgosto e da mais violenta inimizade entre seres que
de outro modo se acham em pé de igualdade.” (ob cit: 59-60. grifos nossos).
Já
se disse que a psicanálise não é, estrito senso, uma ciência. Lacan o afirmou
em 1977, a psicanálise seria um “devaneio cientifico”.[2]
Mas, de fato, o ponto importante é saber se, e em que termos, uma teoria que
tem a responsabilidade da prática que afirma e maior responsabilidade na
prática que nega, mesmo que apenas no plano teórico, pode contribuir para a paz
e justiça social, sem, claro está, submeter os indivíduos a um despotismo
estatal ou de massas. Daí que existem aqui erros importantes na presunção
freudiana, mas que se espalharam entre os cidadãos como propaganda e
ideologia do liberalismo burguês contra o socialismo.
O primeiro erro é
atribuir ao comunismo a ideia do “bom selvagem”, ou do homem cordial, em
natura, sendo que de fato essa ideia está mais ligada a Rousseau, e à sua ideia
que foi a propriedade privada que criou a dominação e a exploração dos
poderosos. Ainda que o marxismo posterior tenha aceitado de várias formas o
cogito de Rousseau, não é o traço de caráter humano que é a essência do
socialismo cientifico desenvolvido posteriormente por Marx e Engels e demais
teóricos marxistas. Isto é, em uma escala de importância, pode-se dizer que a
discussão do homem “bom” ou “mau”, no “socialismo científico” (que aliás Freud
desconhece em sua obra e não diferencia de “comunismo” e de “socialismo real”),
passa sempre pela relação social, pelo homem real produto de determinadas
relações sociais, a começar pelas produtivas, no âmbito da produção, portanto,
a maldade e a agressão são vistas como fenômeno social e não psíquico como
Freud o estuda.
Um
segundo erro, no que nos interessa aqui estudar, é a ideia “banal” e
“superficial” que o chamado comunismo irá eliminar
o direito pessoal aos bens materiais – não existe de fato nada mais
distante da compreensão do socialismo científico. O que o socialismo marxista
colocou em sua teoria é que aquilo que são os bens essenciais à vida dos
homens, produzidos coletivamente, deveriam ser repartidos por todos na medida
de suas necessidades, pressupondo-se que tais necessidades - por exemplo comer,
vestir e morar, educação e saúde, os avanços da ciência e tecnologia etc. -, sejam comuns a todos, e devem ser colocados à disposição de todos. Portanto, ao
contrário, não se trata de tirar as coisas, mas de dá-las a todos de forma a
desenvolverem em igualdade a potencialidade de seus intelectos.
Mas Freud via
outra coisa na socialização da vida humana: “é fácil objetar que a natureza,
dotando os indivíduos de aptidões físicas e talentos intelectuais bastante
desiguais, introduziu injustiças contra as quais não há remédio” (ob cit: 59),
e assim, uma coisa se justifica com a outra, ou seja, como as aptidões são
naturalmente desiguais está justificada a desigualdade material entre os
homens, a dominação e exploração dos poderosos e a desumanidade e verdadeira
agressão do sistema de mercado. Na verdade nada disto é novo, pois basta ler os
utilitaristas ingleses e as escolas filosóficas e econômicas que eles
defenderam e desenvolveram, para ver quanto Freud está aqui totalmente impregnado
do discurso burguês, pouco conciliador e pouco pacifista, na verdade muito preconceituoso.
Para
ilustrar nossa posição, isto é, porque Freud entendia pouco de “socialismo” ou
“comunismo”, basta aqui reproduzir a célebre passagem de Karl Marx: “(...) então (no comunismo) será
possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a
sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas
necessidades" (Marx. Crítica ao programa de Gotha, [1875]. Obras Escolhidas. Alfa-Ômega,1980:214-215. grifos nossos.).[3]
Sem nos estendermos muito, mas ainda na perspectiva de uma determinada “cultura
de paz”, é notório quanta aproximação e cuidado com o outro, quanta não
violência se encontra aqui, primeiro porque “a cada qual, segundo suas necessidades”, encerra em si mesma a
justiça e a prática ética de distributividade essencial a todos os indivíduos,
do ponto de vista material, pois é nesta igualdade que se desenvolverá a
potencialidade espiritual; por outro lado, fica claro que os indivíduos têm direito pessoal aos bens materiais
(diferentemente ao cogito freudiano).
Segundo, consequentemente, porque todos têm direito aos bens materiais,
será “de cada qual, segundo sua capacidade”, o que elimina a
ideia errônea que não haveria condições e motivação para uma vida fértil e
criativa, porque uma forte verve comunitária inibiria o elã e a pulsão pela vida
sofisticada, mantendo todos no mesmo patamar espiritual.
Aliás,
por erros fundantes das interpretações iniciais freudianas, muitas vezes se vê
na dialética compositiva a inibição do Eu e seu desinteresse pela argumentação
e contraditório, quando, na verdade, estabelecidas as regras adequadas, a
paridade de armas e igualdade de participação nos personagens, leva a esse pendor
para o encontro e a construção coletiva da vida que gera o maior interesse pelo
desenvolvimento intelectual.
Toda
a filosofia psicanalítica se baseia na “pulsão” ou desejo de vida (Eros) em
oposição à “pulsão” de morte (Thánatos); neste momento não nos interessa
discutir se existe ou não essa “pulsão”, e se as deduções e ilações freudianas, neste pormenor, são corretas etc. Mas posto que exista mesmo o desejo e a energia sexual, não
interessa ao socialismo acabar com ela, e aqui reside, em nosso entendimento, o
erro dos que se acostumaram, igualmente, a preconizar como “natural” a agressão
e violência humana, pois o que interessa do ponto de vista do socialismo, e de
uma cultura de paz, é a aproximação entre as pessoas e como essa energia pode
ser útil ao sujeito e à coletividade. O
contraditório é uma manifestação dessa pulsão de vida; trata-se de saber como
essa pulsão pode servir ao coletivo no limite de escolha livre do sujeito que
se emancipa da ideia de “concorrência”, disputa e sucesso medido por bens
materiais. Existe alguma dúvida que é a forma mercadoria que potencializa essa
pulsão pelo individualismo, pela reificação da vida nas coisas, nas mercadorias
como sucesso etc? Nas palavras do próprio Freud: “Domado e moderado, como que inibido
em sua meta, o instinto de destruição deve, dirigido
para os objetos, proporcionar ao Eu a satisfação das suas necessidades
vitais e o domínio sobre a natureza.” (ob cit: 67. grifos nossos).
A
compreensão dessa falta de racionalidade, ou melhor, a compreensão da perversa racionalidade
de mercado, deve ser suficiente para se construir uma cultura de paz, e não
acabar necessariamente com o conflito, entendido como a relação humana,
fenômeno social, a pessoa em processo de aprimoramento espiritual. A
criatividade é pulsão de vida e é sexualidade! Se não existem motivos para
acreditar que um sistema político de governo coletivo possa eliminar a aversão
que o espírito subjetivo (Hegel) faz à cultura, por outro lado, tampouco existem
motivos para fazer a condenação a tal governo coletivo como pretendente a eliminar
a paixão de cada indivíduo pela vida, apesar do humano como fenômeno social
tender à civilização.
Não
se trata de domesticar pessoas, e se a forma de mercado o faz em favor de
valores, a forma coletiva de existência não o fará senão em favor do bem-estar
do Ser e do Ser coletivo. O ato civilizatório para o socialismo é, antes de tudo, aproximação e entendimento; o processo civilizatório é, antes
de qualquer coisa, proveniente desse contato, desse encontro. Se um sistema
produtivo é incapaz de recriar as condições de convívio harmoniosas e voltadas
para a conciliação, não tem sentido estender a incapacidade e incompetência
dele (capitalismo) a outras formas e sistemas de produção e vida social
(socialismo). O que é construído pelo homem pode ser desconstruído por esse
homem: como em Hegel, quando o espírito subjetivo se transforma em espírito objetivo, o sistema de
livre concorrência tende a um sistema de planejamento coletivo!
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[1] Apesar de o senso comum usar estas expressões como sinônimas, na filosofia elas são coisas diferentes: Comunismo: fase superior do socialismo, modo de vida absolutamente coletivizado; Socialismo Cientifico: fase de transição entre o capitalismo e o comunismo, não é um modo de vida acabado; Socialismo Real: degeneração do socialismo pós capitalista, que correspondeu de fato ao stalinismo, ao nazismo, ao maoismo, sendo mais um capitalismo de Estado. De fato o socialismo científico nunca foi implantado pela sociedade humana como a teoria o predicou.
[2] “A psicanálise não é uma ciência - ele diz. Não tem
estatuto científico – só o aguarda e o espera... A psicanálise é um delírio –
um delírio do qual se espera que se produza uma ciência... É um delírio
científico, porém isto não significa que a prática psicanalítica produza uma
ciência.” (Lacan, 1976,-7; Seminário de 11 de janeiro de 1977; Ornicar?) –
referido no Diccionario Introductorio de Psicoanálisis Lacaniano - Dylan Evans
[3] Veja-se, em contrapartida, Marx:
“Na fase superior da sociedade comunista, quando
houver desaparecido a subordinação escravizante dos indivíduos à divisão do
trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho
manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira
necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os
seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os
mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se
totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá
inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual,
segundo suas necessidades" (Marx. Crítica ao programa de Gotha,
[1875], 1980:214-215). Para tal discussão, veja-se José Manuel de Sacadura
Rocha, Sociologia Jurídica e Geral,
GEN/ Forense, 2015 – Caps. 8 e 9.
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