Filosofia do Direito e a Construção do "Complexo de Batman" II - De Augustus a Kant
Em Roma, no século V a.C., um conjunto de 10 varões
romanos, os Decênviros, foram a Atenas e se instruíram e familiarizaram-se com
o Código de Sólon, que privilegiava a autocomposição, e defendia em condições
dignas, para a época, as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Esta
verdadeira reforma cidadã ateniense inspirou Roma em um momento que as classes
despossuídas romanas, os Plebeus, lutavam para serem reconhecidas em sua
importância e cidadania. Desta luta e antagonismo entre Plebeus e Patrícios nasceu
em 450 a.C. a Lei das XII Tábuas em Roma, uma revolução jurídico-política
(p.ex., criava os Tribunos da Plebe, Advogados da Plebe), que, se inspirada na
vida ateniense, pode ser considerada em muitos aspectos
revolucionária, haja vista que em Roma a luta de classes se dá entre povo e
aristocracia. Em Atenas, a oposição mais significativa foi entre aristocracia
tradicional e os novos ‘burgueses’. Nos anos seguintes em Roma uma série de
leis – Canuleia (445 a.C.), Licínias (367 a.C.), Hortência (286 a.C.) – só
aumentaram a democracia republicana romana elevando os Plebeus cada vez mais
ao status de cidadãos e à isonomia frente aos Patrícios.
Em 27 a.C., no entanto, houve um retrocesso com a
instauração do Império Romano, pois quando Caio Otávio se torna o primeiro
imperador, com o nome de Augusto – extensão de Augustus, título
maior concedido a um governante até então -, o senado é esvaziado, o cônsul
representante dos Plebeus extinto, e com a criação do senatus consultus,
Augusto governa despoticamente, pois esse Conselho da Coroa, constituído de 20
senadores da confiança do imperador, dominam o senado, fazem as leis conforme
as ordens imperiais e controlam as decisões dos magistrados. Segundo os
doutrinadores aqui está o embrião do que hoje designamos por Jurisdição
Estatal, ‘o poder de fazer e fazer acontecer’. Uma verdadeira interferência do
‘Executivo’ no ‘Legislativo’ e ‘Judiciário’, que possivelmente Montesquieu no
século XVII-XVIII levou em consideração para sugerir a independência dos
poderes do Estado. O historiador Plubius (século I a.C.) descreve que por essa
época a Constituição de Esparta tem especial atrativo em Roma, ainda que aquela
cidade-estado grega não tenha conseguido expandir-se como um Império, segundo
esse historiador romano, justificado pelo desapego dos espartanos pela
propriedade da terra.
Só em 532 de nossa Era, o imperador Justiniano,
verdadeiramente falando, pode retomar as reformas jurídicas necessárias à
consolidação normativa romana, após sufocar a rebelião de Nika. O trabalho de
Justiniano na elaboração do que se chama de Corpus Juris Civilis ou Códex,
é tão importante que até nossos dias se faz presente, não só porque é base do
Direito Romano, mas porque inovou com relação à dinâmica e ao sistema lógico
jurídico que prevalece entre nós, a começar pela ideia que temos de
Constituição. De fato, ao consolidar primeiramente – parte 1ª do Codex -
as várias Constituições desde o imperador Adriano (117-138), Justiniano redigiu
um único código que aproveitou o melhor do Direito Material produzido ao longo
de vários séculos, dando o caráter superior e eficiente de uma Constituição
Imperial. Na nossa tradição latina a formalização extensiva dos códigos segue
este mesmo esforço de compilação das leis.
Além disso, Justiniano empreendeu trabalho hercúleo ao
procurar interpretar e adequar os costumes e as tradições do povo romano para
que os magistrados tivessem outra fonte do Direito que não só a Constituição, o
que vale até nossos dias, visto que os Costumes são, além da Norma, uma fonte valiosíssima
no Direito moderno. Esta parte 2ª do Codex é conhecida por
Digesto ou Pandectista. Aqui valem as seguintes ressalvas: 1. Pandecta é o nome
alemão para o magistrado; quando o Império romano conquistou alguns territórios
do leste europeu – os ‘bárbaros’ -, teve contato com um tipo de Direito pouco
normativo que conservava a oralidade e os costumes, tradições e religiosidade
das antigas civilizações. Os juízes (os Druidas) eram os indivíduos mais
conceituados das comunidades e os tribunais exíguos, sendo as apreciações dos
litígios fortemente alicerçados na resolução de casos anteriores –
analogia legis. Neste sentido, pode-se dizer que o Direito
existente entre esses povos ‘alemães’ era Consuetudinário. Não há como negar a
influência deste tipo de Direito no Digesto, a inclusão dos costumes e
tradições no ordenamento jurídico e a autonomia jurisprudencial do juiz; 2.
Portanto, a Jurisprudência que chega até nós pelo Direito Romano e a influência
dos Costumes como fonte do Direito, está mais para o modelo Pandectista do que
para a escola Analítica inglesa, visto que nesta última esses mesmos costumes
foram classificados e formalizados fortemente a partir da Carta Magna em
(1215), motivo pelo qual pode-se afirmar que Common Law não é
o mesmo que Consuetudinário: no caso inglês os costumes são passados ao Direito
Material, enquanto no nosso caso de tradição latina, os costumes permanecem em aparte do Direito Material, das Leis,
constituindo-se como verdadeira fonte do Direito; 3. É sempre bom referirmo-nos
ao Digesto como parte do Corpus Juris Civilis e não como a sua
totalidade: o Digesto de Justiniano é apenas uma parte do Códex.
Este pormenor é importante porque, como fonte autônoma do Direito, os Costumes,
dão ao juiz autonomia para fundamentar a sentença.
A 3ª parte do Códex de Justiniano
denomina-se de Institutas, que dizem respeito à compilação e
explicação das leis e funcionamento Jurídico, com vistas à sua publicitação,
compreensão, divulgação e ensino. Aquilo que chamamos hoje
de Doutrina, e que se constitui também como fonte do Direito, bem
como a possibilidade do ensino jurídico e do acesso e entendimento das leis,
dos direitos e obrigações, e do funcionamento geral do sistema jurídico – o
Direito Processual-, tem seu embrião nas Institutas de Justiniano.
A Doutrina também se constitui como fonte de nosso Direito.
Finalmente, a 4ª parte do Códex, as Noveles,
são as atualizações ao código, com base no desenvolvimento da vida social, seu
dinamismo e movimento, e é isto que a expressão quer dizer: noveles,
novelas, acontecimentos e fatos sociais reais retratados sem ficção, adaptados
da vida real para os códigos. Aqui podemos ver o início do que o legislador
pretende fazer, por exemplo, ao editar Emendas Constitucionais, no nosso caso,
previstas na própria Constituição Federal de 1988.
Um largo período irá passar desde Justiniano até as grandes
discussões doutrinárias e jurisprudenciais do século XIX, onde o Direito
Moderno foi forjado em seus fundamentos e princípios mais definitivos. Neste
período temos a negritude dos processos inquisitoriais da Inquisição e o
surgimento do Direito Natural da condição humana. Tais institutos jamais saíram
de nosso ordenamento jurídico, para o bem e para o mal. Também relevante neste
longo tempo, que vai do Medievo até o Iluminismo, passando pela Renascença, é a
proposta do Contratualismo, a formação do Estado-Nação, o Mercantilismo e a
ascensão técnico-científica que desemboca no Sistema de Produção Capitalista, e
a luta que a Filosofia trava com o Utilitarismo para se manter crítica e
alimentar o espírito humano contra a irracionalidade.
Cabe à passagem do século XVIII para o século XIX, a
doutrinação a formatar o que seria o Direito Ocidental Moderno. De um lado a
laicização do Direito, necessária ao desenvolvimento livre das forças
produtivas e acumulação de capital, também às custas da venda e compra de
mão-de-obra operária, de outro, em oposição, a consideração da dignidade humana
preconizada pelos defensores do Jusnaturalismo (Grócio, Pufendorf, Domat). De
um lado a hipervalorização da Norma, dos Códigos (Comte, Ihering), de outro, as
escolas de Jurisprudência, mais (Exegese de Napoleão, Analítica de Austin) ou
menos (Pandectista de Puchta, Histórica de Savigny) em conformidade com o
Direito Material. De um lado a Sociologia Criminológica de Lombroso e Ferri, de
outro, a Sociologia Analítica de Durkheim e o Garantismo e a principiologia
despolitizada de Beccaria (1738-1794). Para não falarmos de outros, como a
influência do marxismo e o anarquismo.
Como ilustração, pode-se pensar em Ihering (1818-1892) e
Beccaria. É conhecida a opinião, na obra ‘A Luta pelo Direito’ (1872), de
Ihering com relação à obra de Shakespeare ‘O Mercador de Veneza’. Neste drama
teatral Shakespeare conta a história de um mercador de Veneza, Antônio, que
precisando de dinheiro faz um contrato com um judeu, Shylock, onde consta que
se a quantia acordada não for devolvida no prazo, o credor tem o direito de
cortar uma onça de carne do devedor. Por infortúnio da natureza, o comerciante
perde os barcos em uma tempestade, e desprovido das mercadorias não pode honrar
em tempo hábil o pagamento do empréstimo. O caso vai a juízo e por uma
estratégia das personagens do enredo, o mercador acaba sendo absolvido de ter
sua carne cortada conforme prescrevia o contrato, afinal, para nós, Ato
Jurídico Perfeito. Pois bem, Ihering nos diz que “O que sustentei não foi
que o juiz deveria ter reconhecido a validade do título de Shylock. Afirmei
que, uma vez admitida a sua validade, a eficácia do título não deveria ter sido
frustrada por um ardil infame por ocasião da execução da sentença”.
Portanto, para o autor de ‘A Luta Pelo Direito’, uma vez
aceite como válido o contrato, o mesmo deveria ser respeitado stricto
sensu, em uma interpretação restritiva que, obviamente, resultaria em uma
sentença que fere o mínimo de bom senso, razoabilidade e proporcionalidade, e
nada contribuiria para ideia de justiça, paz social e dignidade humana que
alimentamos no Direito. Mas Ihering chama isto de ‘luta pelo Direito’, em defesa
do Direito. Ou seja, defender o Direito neste autor passa, antes de tudo, pelo
entendimento que a Norma deve ser defendida a qualquer custo, passando por cima
de princípios que, se não observados, transformam o Direito em uma
monstruosidade. De qualquer forma, a ideia positivista e normativista do
Direito quanto às partes do Direito que procuravam a autocomposição, são
desprezados em nome de uma ideia que se julga intocável: respeitar o que
estiver em contrato, garantido o devido processo, acima de direitos humanos
fundamentais, para fornecer segurança jurídica. Assim o garantismo legal se
torna frio, e de verdade, arrasta atrás de si uma percepção que a lei será
cumprida inconteste, quando na verdade a sentença se forma no espírito do juiz
pelo contraditório das partes, quando não à revelia delas.
É bem verdade que Ihering está, ao seu tempo, na
perspectiva de inovar em uma matéria e área da vida humana que até então havia
sistematicamente sido desrespeitada pelos poderosos, pelas monarquias
absolutas, pelos nobres latifundiários: o fundamento da obediência isonômica às
Leis. O garantismo legal ainda hoje se respalda na ideia que a letra fria e a
taxatividade da lei garantem igualdade e equidistância aos agentes em litígio,
partindo da premissa que todos são iguais em condições e propriedades que
livremente se equivalem. Se de um lado a Norma deve ser considerada como
fundamento do Direito moderno e essencial na produção de isonomia e
distributividade no âmbito jurídico, e se não se duvida da importância do Direito
Material e Processual na luta contra o despotismo do soberano, dos poderes, dos
poderosos, por outro lado não se pode perder de vista que ela, a Norma, não é o
próprio Direito, tão-somente uma de suas fontes.
Kant (1724-1804) faz esta mesma observação com relação à
injustiça que se pode cometer quando os contratos, tidos como ‘atos jurídicos
perfeitos’, são inquestionáveis do ponto de vista moral. Um contrato, diz ele,
que renumere um trabalhador depois de um certo tempo, que fixa o valor a ser
pago no ato do contrato, pode fazer com que esse trabalhador seja prejudicado
se houver, digamos, inflação, pois no momento do contrato esse trabalhador
compraria uma quantidade maior de víveres do que aqueles que irá poder comprar
quando receber no final da empreitada. Então Kant reconhece que diante do
Tribunal Civil não há o que reclamar, mas que neste caso um Tribunal de
Consciência poderia solucionar a situação-problema de forma mais ética, digna e
justa. O que prejudicaria a paz social e desprestigiaria o Direito uma solução
razoável e proporcional como esta?
A questão que se coloca para a Filosofia do Direito e a
Doutrina, é que claramente o Direito não pode se submeter à frieza,
objetividade e o dogmatismo normativo. O Direito é permeado por um conjunto de outros
elementos, fontes, princípios e valores que lhe retiram a truculência e a
virulência normativa. Essa principiologia distingue Beccaria de Ihering.
Ihering e o Direito do século XIX parecem ter esquecido que a principiologia
que alicerça o Direito como ato de justiça, não se restringe à validade ou não
dos contratos, mas se faz presente, sobretudo, na lide. Em sua obra ‘Dos
Delitos e das Penas’ (1764), Beccaria inaugurava uma fase de aproximação com
aquilo que hoje temos por ‘princípios do Direito’ baseados em ‘princípios de
direito’. Nessa obra, lida à luz dessa emancipação da vendetta,
pode-se ver o quanto Beccaria havia inovado: Proporcionalidade,
Legalidade, Devido Processo Legal, Licitude de Prova, Presunção de Inocência,
Taxatividade, Juiz Natural, Irretroatividade da Lei, são alguns dos
princípios ‘abolicionistas’ que Beccaria sugere. Estes princípios de direito
dizem respeito a um olhar diferenciado sobre o Direito que historicamente
sempre lutou para se compromissar com as massas. Desta forma, o Direito
adquiriu uma principiologia que o elevou a patamar humano e cidadão, muitas
vezes desde então violentada. Mas sem ética e sem a devida independência e
lisura a Justiça não poderá exercer sua função de isonomia nos contraditórios,
e uma Justiça que não é isenta simplesmente não pode existir e assegurar
qualquer tipo de segurança a um povo.
Quando ainda hoje, quase duzentos e cinquenta anos depois
de Beccaria, vemos tantos defender a punição taliônica, desconsiderar a
dignidade humana no ordenamento jurídico, apreciar e valorizar punições como
Pena de Morte e Prisão Perpétua, menosprezar a responsabilidade estatal de
reeducação e reinserção social do apenado, coisas que Beccaria explicitamente
se colocou contra, acreditamos que só pode existir uma falha de compreensão
cabal com relação aos princípios modernos civilizados que o Direito de há muito
procura, quando não por total fracasso da humanidade ou interesses espúrios.
Ao mesmo tempo, a falta de ética e o descompromisso
indisfarçado com o poder ou o uso da Justiça para conquistar ou preservar
interesses perversos e escusos, leva a que desacreditemos na humanização do
Direito e tendamos a gritar pela aplicação fria da lei, pela vingança e justicialismo, o que basta
para destruir a racionalidade e os laços afetivos dos cidadãos e dos povos:
quanto mais vemos um povo gritar por justiça e a defender incontinente a
aplicação da lei, mais temos certeza da deterioração dos poderes da Nação, inversamente aos poderes do Estado.
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