Do Direito e da Arte de Governar II - A construção da democracia no Brasil pós 88


DOMINAÇÃO, IMPUTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

Escrevi este texto em 19 de novembro de 2010, logo após a eleição do primeiro governo de Dilma Rousseff. Recentemente em minha página do facebook (https://web.facebook.com/professor.sacadura), após as eleições de 2018, diante da perplexidade e frustração dos grupos sociais à esquerda, postei uma série de 10 assertivas procurando indicar, na minha opinião, quais os principais erros do progressismo, desde a redemocratização do nosso país, que levaram ao retrocesso espelhado no resultado direitista e conservador vencedor. A cada uma destas assertivas (ora perguntas, ora afirmações, ora provocações!) tenho procurado, agora, formular algumas teorias à luz da filosofia política e da sociologia contemporânea (https://web.facebook.com/professor.sacadura/photos/a.391108614642920/628630614224051/?type=3&theater). Desta feita, cabe responder à afirmação "VI - A ESQUERDA ERRA QDO VENERA A DEMOCRACIA... O QUE ESTÁ AÍ NÃO É CULPA DE UM PARTIDO, MAS DA ESQUERDA QUE VENERA A LIBERDADE!". O que proponho, aqui, para lá da bipolaridade entre "esquerda" e "direita", é resgatar a história dos últimos 30 anos de democracia constitucional brasileira, porque, claramente, o que se diz "à esquerda" e "à direita", carece, no mais das vezes, de historicidade, de conhecimento dos fatos mais relevantes políticos dessa construção democrática recente entre nós - isto aliado ainda ao fato de existir nas almas mais exaltadas pouca ciência teórica de raiz para balizar as opiniões de uns e de outros. Este texto continua atual - se trocar-se as siglas partidárias e se as colocarmos nos devidos lugares hoje, veremos surgir diante de nossos olhos as figuras de nosso momento e os seus porquês... deixo para os leitores esse interessante jogo de partidos e conjunturas, de pensar quantos erros cometi e quanto acertei. Abaixo, então, como isto tudo começou e exatamente como descrevi e expliquei teoricamente em novembro de 2010:
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"Estava na cara que este mês o pessoal do blog ia querer ler matéria sobre a vitória à presidência da candidata do PT, Dilma Rousseff. Isso me dá a oportunidade de refletir sobre alguns temas abordados nas últimas aulas que ministrei. No mundo contemporâneo a economia, a filosofia, o direito e a política são esferas predominantes, e da sua interconexão, nem sempre harmoniosa, deriva o modelo vigente de governabilidade de uma sociedade em particular e do mundo globalizado. Essas esferas ou blocos (GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade, 1991) misturam-se de forma dialética através de processos de comunicação (LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas, 2009) dinâmicos constituindo uma malha ou rede onde indivíduos e governos são, a todo instante, suscitados a permanecerem atentos e a participarem de alguma forma nos seus destinos, nos destinos dos povos e no destino da humanidade. Isso é bom, pois como sabemos, se a democracia nos alimentam as esperanças de liberdade, igualdade e justiça, por outro lado nos obriga a uma vigilância e construção diuturna onde não existe mais espaço para omissões e desculpas do tipo “não sabia” ou “não era comigo”. Existe uma coisa maravilhosa nas tecnologias de informação atuais: as redes telesociais nos aproximam de tal forma que é impossível que o mal prolifere sem que não interfira em nossa apatia.
O PT, e seus aliados (pelo menos até agora), conseguiram vitórias importantes no último pleito: maioria de deputados na câmara federal, maioria de senadores, maioria de governadores nos Estados, um aumento significativo de deputados nas assembleias legislativas dos Estados (inclusive em São Paulo), e, claro, a eleição da futura e primeira presidente mulher do Brasil. A outra coligação também tem motivos para comemorar: elegeram os governadores dos maiores e mais ricos estados da União (Minas Gerais, São Paulo e Paraná), os maiores colégios eleitorais, vários governos em Estados antes governados pelo PT ou PMDB, apesar de ter perdido espaço significativo no Congresso Nacional. Mas eu acho que o grande fenômeno político pós-ditadura no Brasil é mesmo o PT e o papel surpreendente do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Vou contar um episódio, que foi alvo da entrevista que duas alunas fizeram comigo esta semana, que caracteriza bem a luta pelo poder e a nossa história democrática recente.
No fim da ditadura, em 1984, a Emenda Constitucional do deputado Dante de Oliveira, que permitiria as eleições diretas, foi rejeitada pelo Congresso. Tancredo Neves e o seu vice, José Sarney, foram eleitos pelo colégio eleitoral, conforme rezava a cartilha da ditadura, apesar de naquele momento constituírem oposição ao regime militar. Sinistro desfecho das últimas eleições indiretas para presidente da República, quando o então presidente Tancredo morreu após ter sido eleito, vítima de infecção generalizada devido a uma apendicite. Bem, Tancredo morre e quem assume é José Sarney. Durante o governo Sarney várias tentativas para controlar a inflação e acabar com ela foram efetuadas, como o Plano Bresser em 1987, e o Plano Verão (de Mailson da Nóbrega), que entre outras coisas também mexeu com o bolso dos brasileiros (expurgo da renumeração das poupanças em ambos os casos). Finalmente em 1989 tivemos as primeiras eleições diretas para presidente: concorreram o Fernando Collor e o Luis Inácio Lula da Silva. Naquele tempo, o discurso do PT e do Lula era “esquerdista” e para o povo brasileiro parecia muito radical. De qualquer forma a direita ficou assustada, as velhas oligarquias se juntaram à burguesia nacional e, com o apoio de uma campanha milionária, Fernando Collor vence as eleições (só para lembrar, Collor era do PRN, um partido sem qualquer expressão no cenário político de então), o primeiro presidente eleito diretamente pelo povo após vinte e nove anos desde a última eleição direta (do presidente Jânio Quadros).
O grande problema do Brasil continuava sendo a inflação. O presidente Collor passou para a história como o vilão de um plano econômico que confiscou o dinheiro das poupanças dos brasileiros – o Plano Collor foi anunciado em 1990, com grande adesão e emoção de especialistas renomados (p.ex., Maria da Conceição Tavares). Para quem tinha dinheiro foi um desastre, claro. Mas agora vem o fato que eu queria salientar: o Collor chamou o PSDB para ajudar a acabar com a inflação, antes mesmo do confisco. O PSDB sabia como fazer, mas se recusou a participar do governo Collor e a ajudar a combater a inflação (segundo Fernando Henrique Cardoso, esta foi orientação do falecido Mário Covas). O PSDB gosta de dizer que o PT foi contra o Real, no tempo em que o Lula era deputado federal. Mas o PSDB não gosta de dizer que segurou o Plano Real até que o Collor fosse deposto, com maciça propaganda da rede Globo convocando as “caras pintadas” para a Paulista em nome da decência etc. O que o Collor fez para ser cassado seu mandato? Gastou parte do dinheiro não declarado pelo seu tesoureiro da campanha, Paulo César Farias, no jardim da sua casa em Brasília (se pensarmos naquilo que já houve de escândalos depois disso, uma ninharia de fato). Então, com o impedimento do Collor, aprovado no Congresso (grande parte desse Congresso ainda era composto por políticos da “velha guarda”), o vice assume: a primeira coisa que Itamar Franco (PMDB) fez foi chamar o PSDB e colocar o Fernando Henrique Cardoso como ministro. E assim, finalmente se implantou o Plano Real (1994), e o Brasil pode sair da inflação.
De lá para cá, o PSDB tem se fortalecido como partido tornando-se uma força partidária nacional à custa do Plano Real, que ele recusou ao Collor, mas que serviu para que o FHC se tornasse presidente e se reelegesse. Além disso, era necessário desenvolver o país, muito atrasado com relação à infraestrutura e a serviços públicos. O problema é que a Constituição proibia o livre trânsito do capital estrangeiro em áreas consideradas de segurança e soberania nacional, como comunicações, siderurgia, energia, transportes etc. Por isso o governo FHC teve que promover uma reforma constitucional, motivo pelo qual temos tantas emendas constitucionais. É curioso que muitos dos que apregoam a formulação de uma nova Constituição sejam exatamente aqueles que a emendaram tanto. Não vamos duvidar que o governo FHC criou as bases para que o Brasil pudesse dar a volta por cima, sair da inflação e atraso, em pouco tempo se colocar como uma potência econômica do mundo (5º PIB/ 11º no ranking geral) e se mostrar como um dos países emergentes mais promissores para as futuras gerações (por isso não vou discutir a forma com que se privatizou o patrimônio nacional, se o preço de venda foi justo e a pertinência da moeda com que os investidores internacionais pagaram nossas empresas).
Agora vamos pensar no PT. De radical esquerdista, que apregoava a luta armada e a revolução socialista, o PT “aceitou” a composição com as classes mais abastadas e com certas alas das elites tradicionais e oligárquicas brasileiras. Impressionantemente, Lula, depois de ter perdido três eleições presidenciais (para o Collor, e duas vezes para Fernando Henrique Cardoso), faz uma “revolução” ideológico-partidário no PT, aliando-se a empresários (o vice José Alencar) e a velhas lideranças provenientes da aristocracia regionalista que conviveu muito bem com os militares (como José Sarney). Obviamente que a reforma é mais lulista que petista, quer dizer, mais um aprendizado e opção de governabilidade de Lula do que do próprio partido ao qual pertence, motivo pelo qual houve uma debandada importante de intelectuais orgânicos e fundadores do partido (p.ex., Francisco de Oliveira e Hélio Bicudo), estes mais socialistas afinal do que o próprio Lula.
Este abandono dos quadros fundadores e diretivos do PT é um dos motivos, senão o mais importante, dos desmandos que logo no inicio do governo Lula o PT foi protagonista, como o escândalo do Mensalão do Valério (ou valerioduto) denunciado pelo então deputado federal do PTB, partido aliado do governo, Roberto Jefferson (segundo o qual o governo pagava aos partidos aliados para que orientassem os seus deputados no Congresso a votar nos projetos do governo e a rejeitar os que a oposição sugeria), e posteriormente das manipulações pouco ortodoxas e transparentes do ministro José Dirceu da Casa Civil (que perdeu o cargo junto com Antonio Palocci, denunciados por um caseiro que afirmava os ter visto em reuniões em uma casa em Brasília, e depois teve seu sigilo fiscal e bancário quebrado), processos que, aliás, José Dirceu ainda não se livrou. Sem uma ética partidária monitorada pela probidade inquestionável da filosofia que portam os fundadores, o corpo diretivo, os que ocupam cargos importantes e os filiados de forma geral, tendem a substituir os princípios e os ideais pelo fisiologismo e pelos benefícios pessoais.
Quando um partido formado a partir de quadros vira um partido de massas, esses quadros precisam manter-se fieis às ideologias e aos princípios programáticos que levaram à sua fundação. Antonio Gramsci cunhou esses intelectuais de orgânicos, precisamente para designar a força intelectual e de princípios que o partido moderno (o Príncipe moderno) deve ostentar com sabedoria e dedicação diante dos desafios de governabilidade e do embate de forças no cenário político. Uma classificação comum com relação aos partidos modernos, do ponto de vista de sua organização interna, é precisamente o partido de quadro e o partido de massa. O de quadro prima pela “qualidade” de seus filiados enquanto o de massa está mais interessado na “quantidade” de membros. Claro que esta classificação é apenas didática, visto que um partido de quadros não precisa ser pequeno do ponto de vista de seus associados e adeptos, e mesmo que o quisesse, não poderia por força das forças que estão movendo as peças nas sociedades de massas e por força também da legislação, que exige um mínimo de representatividade. Da mesma forma, um partido de massa não pode prescindir de quadros intelectuais importantes o suficiente para que o partido mantenha-se firme quanto a seus ideários e princípios e principalmente que saiba mover-se com sabedoria no tabuleiro do jogo político. Tanto PT como PSDB são hoje partidos de massa, assim como os grandes partidos do cenário nacional, como o PMDB, e não há dúvida de que se partidos menores quiserem ter algum prestigio e influência nas decisões e destinos do país precisam ser de massa, tanto quanto permanecer com suas ideologias e princípios de qualidade, como no caso do PV ou do PSOL. Sem quadros significativos os partidos tendem à fisiologia do poder, e sem um número importante de filados e simpatizantes os partidos modernos sujeitam-se ao raquitismo político sem condições de representarem uma parcela da sociedade civil, motivo último pelo qual existem: tendem a serem organizações parasitárias que financiam projetos pessoais e interesses espúrios de uns poucos.
Se o PT, que no início era mais um agrupamento de várias facções de esquerda saídas do enfrentamento à ditadura militar, e abrigava todo o tipo de ideologia socialista, cresceu e se transformou em um partido de massa e um fenômeno com penetração nacional, mais fenomenal é a trajetória do presidente Lula da Silva. Não concordo muito com a ideia de que a história do PT se confunde com a história de Lula, ainda que obviamente exista uma relação histórica indissociável. Lá no inicio o Lula era um metalúrgico que ousou enfrentar as elites e as multinacionais para fazer greve, isso quando o pacto entre militarismo e imperialismo obrigava o Brasil a sofrer na carne a tirania que nos curvava indignamente diante dos poderosos, lá fora e aqui dentro. Saído das catacumbas em que vivem as classes miseráveis e trabalhadoras, sobrevivente do descaso e desprezo com que se trata neste país os excluídos, Lula foi de esfomeado semianalfabeto a metalúrgico, de metalúrgico a líder sindical, de líder sindical a preso político, de preso político a estudioso do socialismo, do socialismo a presidente de partido, de presidente de partido a deputado federal constituinte, e daí a presidente da República por duas vezes. E se isso não bastasse, contra todas as previsões e contra todas as imposições menos dignas das elites e dos poderosos, sai de um segundo mandato com mais de 80% de popularidade e faz seu sucessor, a primeira mulher presidente da República Federativa do Brasil. “Fenômeno” talvez seja pouco para designar esta trajetória impar na vida das pessoas e mais ainda na vida política das nações.
Não há dúvidas que como brasileiros temos o privilégio de termos candidatos da envergadura de um José Serra e Marina Silva disputando eleições. De podermos nos ressuscitar na ideologia inabalável de um Plínio de Arruda Sampaio e na sobriedade e inteligência de Cristóvam Buarque, ou mesmo na coragem de uma Heloísa Helena. A vida destes personagens é um estímulo a todos, principalmente aos jovens, para que acreditem na política e tenham orgulho do Brasil e de serem brasileiros. Mas a minha geração lutou lado a lado com estes personagens e outros que já se foram (Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Teotônio Villela, Henfil, Glauber Rocha, Ulisses Guimarães, Miguel Arraes, Bentinho, Helder Câmara, Evaristo Arns) para que tivéssemos orgulho de sermos brasileiros com liberdade e justiça social. Apesar dos sustos e dos percalços, de situações desanimadoras e reprováveis, o fato é que, como a Dilma falou, o presidente Lula realizou parte de nossos sonhos, e nos fez crer que é possível falar para nossos filhos, netos e alunos que o amor e a fraternidade, a solidariedade e a justiça podem sim ser construídos pelos brasileiros.
O carisma do presidente Lula é fundamental. Várias vezes me referi a ele como a encarnação daquilo que Maquiavel via como essencial ao bom governante: a virtude e a perspicácia política. Muitas vezes se apregoa o carisma como algo inato ao governante. Sem dúvida que o governante carismático, por características de sua personalidade e caráter, tem facilidade em governar porque em última análise ele estará sempre respaldado pelo povo, o último e definitivo baluarte da legitimidade do soberano (Getúlio Vargas se baseou no seu carisma para instaurar sua ditadura, com algum sucesso; Jânio Quadros, sem sucesso, renunciou acreditando que por seu carisma o povo o levaria de volta ao poder). Mas pensando nas lições de Max Weber, aprendemos que a dominação carismática no Estado moderno dificilmente será suficiente para garantir estabilidade e eficiência ao plano de governo. Segundo Weber, nas sociedades democráticas, onde predomina a liberdade, as leis e o desenvolvimento material, os cidadãos não estão dispostos a abrir mão de sua soberania a não ser em troca de benefícios pessoais concretos, reais e efetivos.
Nas sociedades industriais modernas, onde o liberalismo burguês conseguiu níveis importantes de justiça social, os indivíduos preferem e aceitam um tipo de dominação racional legal, ou seja, o poder deve ser exercido pelo governante de forma que o cidadão veja racionalidade nas suas decisões, racionalidade essa que é percebida concretamente se estiver contida pelo direito e, ao mesmo tempo, trazer dividendos materiais – qualidade de vida, acesso aos frutos da ciência, possibilidade de consumo. Dito de outra forma, tanto a soberania do tipo tradicional – dominação tradicional é a exercida pelo soberano por herança, hereditariedade, costume –, como a do tipo carismática, só têm possibilidade de sucesso nas sociedades industrialmente desenvolvidas se trouxerem aos cidadãos retornos mensuráveis consideráveis à sua qualidade de vida, sem que com isso se possa prescindir da legalidade que, por segurança, deve policiar o poder em seus atos de governo. Então, por mais carisma que o presidente Lula, ou outro governante possa ter, ele será avaliado e medido democraticamente pelas conquistas de bem-estar que proporciona aos cidadãos. Sem os efeitos da atenção que o governo deu aos brasileiros mais desprotegidos e sem as conquistas de riqueza e consumo da classe média, e dos mais abastados, o lulismo não poderia almejar os sucessos fantásticos dos últimos anos. Por isso mesmo, a ilicitude foi e será daqui para frente, cada vez mais, a preocupação que os partidos e os governantes devem ter presente com pena de perderem o que conquistaram junto à sociedade e seus eleitores (p.ex., as denúncias de corrupção e favoritismo no governo Lula levaram ao segundo turno as eleições).
Se o PSDB e o PT chegaram a uma situação de quase hegemonia partidária no cenário político nacional é porque, de formas e em momentos diferentes, atenderam às expectativas dos cidadãos brasileiros, ao passo que partidos outrora majoritários como o DEM (antigo PFL) ou mesmo o PTB que já foi um partido de expressão, continuam a praticar uma política retrógrada e oligárquica. Não perceberam que com o fim da ditadura militar o Brasil que os brasileiros queriam e necessitavam era outro. Alguns veem no bipartidarismo tendencial um mal ou um perigo á democracia. Em blog anterior eu chamei a atenção que em potencias mundiais tem secularmente coexistido este tipo de situação. Os partidos do ponto de vista de sua organização externa podem ser únicos, bipartidários e pluripartidários. Os partidos únicos são indesejados na moderna teoria do Estado, haja vista que a democracia fortalece-se na oposição de forças e ideologias, e segundo Montesquieu, essa oposição e esse embate de forças acaba controlando os apetites exacerbados e a corrupção no poder. Ora, se países como os EUA e a Inglaterra podem de fato conviver democraticamente com o bipartidarismo, porque o Brasil não poderia? Por outro lado isto não significa que partidos menores não possam coexistir e mesmo crescer meio à polaridade entre PT e PSDB, com o PMDB procurando se beneficiar de uma posição menos exposta, mas significativa (mal acabou as eleições e o PMDB já manobrou no Congresso para que exista um “bloco” dos partidos de apoio ao governo para pressionarem o PT na formação dos ministérios da presidente Dilma e os futuros cargos de presidência da Câmara Federal e do Senado – por acordo, os presidentes dessas casas são do partido que tem maior bancada, no caso da próxima legislatura, PT na Câmara e do PMDB no Senado).
Não devemos negligenciar a representatividade dos pequenos partidos e de seu poder de manobra, ora se unindo aos grandes ora agindo nos bastidores. Para Stuart Mill o importante era que toda a sociedade, todas as classes e todos os grupos sociais, excluídos e minorias, pudessem estar inseridos no contexto da democracia liberal burguesa, e assim participar do sufrágio universal. Esta organização pluripartidária permite “acompanhar” as forças em debate no contexto social e prestigiar a cidadania de forma tal que ninguém e nenhum grupo ou minoria se sinta alijado do processo de desenvolvimento e inserção na riqueza social, com pena de que se assim não for sempre haverá motivação para ações as mais ensandecidas e descabidas. A história da humanidade mostrou que quando indivíduos acreditam que não têm mais nada a perder, estão dispostos a se organizarem em torno de um líder e de um projeto megalomaníaco (o caso do nazismo ou da revolução cultural de Mao). Entretanto, nenhum de nossos partidos atuais tem pretensões de no âmbito de atuação, ser partido universal, quer dizer, partido que tem pretensões de se expandir para outros países. Isso não quer dizer que não participem de associações internacionais, como no caso de partidos de esquerda – Associação Internacional dos Trabalhadores -, ou da Social Democracia - também chamada de Terceira Via. Nossos grandes partidos atuais têm âmbito de atuação nacional, sendo alguns apenas representativos em determinadas regiões geográficas ou dentro de um Estado – atuação regional, ou mesmo em pequenas localidades – atuação local, como no caso de partidos iminentemente municipais.
Daqui para frente a garantia da democracia no Brasil virá da capacidade da sociedade brasileira controlar duas variáveis fundamentais: 1. os anseios legítimos de bem-estar social em relação ao poder soberano do Executivo (principalmente no caso do futuro governo que ao que parece governará com facilidade legislativa devido à maioria de sua base de apoio no Congresso - neste sentido a “traição” do PMDB pode ser um benefício à democracia; 2. os apetites doutrinários e executórios do Judiciário. Podemos entender melhor isto se contrapormos direito subjetivo – de Max Weber - a direito objetivo – de Hans Kelsen.
Primeiro, não é porque um governo tenha sido e possa ser eficiente e bem sucedido que não deva ser controlado e limitado. Soberania é indiscutivelmente apanágio do povo, como nossa Constituição prediz no seu Art.1; Parágrafo Único: “Todo o poder emana do povo" e é exercido por seus representantes. O problema é que para as massas excluídas e para aqueles que a duras penas ascenderam na condição social – classe média -, a igualdade pode ser mais atrativa do que a liberdade. Nisto se acomoda as grandes situações históricas de autoritarismo, ditaduras, fascismo e totalitarismo (ARENDT, Hannah. O Sistema Totalitário, 1978), ou seja, na miséria e no egoísmo. Todo o cuidado é pouco: a democracia é uma condição ética de existência.
Agora temos nas sociedades contemporâneas um fenômeno jurídico interessante: o direito objetivo se sobrepõe fortemente ao direito subjetivo, em grande parte, lógico, devido à violência de nossas sociedades atuais e de uma espiral desumana de vingança – o bandido se vinga do sujeito de bem e o cidadão de bem se vinga ou quer vingança na mesma moeda do bandido. Disto resulta que pouca ou nenhuma diferença se percebe mais entre o bem e o mal, pois a diferença é se a truculência é oficial, portanto legal, ou não. E nessa situação, a legalidade de há muito se tornou sinônimo de legitimidade por si só, e a dominação do Estado parece ser sempre de direito democrático. No caso de Kelsen, por exemplo, um dos mais renomados filósofos do direito do século XX, e idolatrado por uma parte importante de nossos doutrinadores jurídicos como o fundador do direito moderno com seu positivismo jurídico, a imputação é o que caracteriza o direito, quer dizer, entre o fato social e o ato jurídico perfeito, a lei se interpõe no sentido de “codificar” e “legitimar” o fato como ilícito. Mas como haverá sempre a necessidade de interpretar o fato social real - a ele atribuir, pelo silogismo e sentido, e pela analogia jurisprudencial, levando em consideração as determinações da ação humana, atenuantes e agravantes, o teor de periculosidade e ilicitude -, pode ser que juridicamente se chegue à absolvição ou simplesmente exclusão de ilicitude. Ora, o que Kelsen quis dizer com a afirmativa de que o direito é o mundo do dever-ser, e não do ser, é que a imputação, o ato de agravamento jurídico do fato sub judice, não é pura causalidade, ou se se quiser, não leva a uma necessária condenação.
Em outros termos, eu diria que o que a lei faz é criar prescritivamente – antes do fato – expectativas de conduta com antecipada sapiência de possíveis sanções ou punições. Expectativas de conduta são próprias de um enunciado que corresponde na argumentação jurídica de Weber ao direito subjetivo, vez que onde existem expectativas existe de forma igual a possibilidade do agente social racionalmente pensar sobre as consequências de seus atos e escolher – imaginando que existe uma sociedade de liberdade, democrática – sua conduta. A lei pode condenar, mas não pode impedir o ato do sujeito. O sujeito é sempre o que escolhe, e dessa decisão sua decorre a possibilidade da lei e do direito chegar à conclusão, pelo julgamento indiciado em provas e pelo controverso, que ali existe um ato ilícito com sujeição de determinada pena.
Na verdade, antes do ato consumado pelo agente social, o que existe é apenas uma “nuvem jurídica”, de onde se espera que os cidadãos escolham as condutas tidas como desejadas ou adequadas. Mas nada pode juridicamente antecipar a decisão do sujeito, do cidadão, do contribuinte, do portador último da soberania. E neste ato decisório soberano, algo passível de imputação, se funda e resguarda ao mesmo tempo a liberdade. Assim, Weber cunhou a força do judiciário e do Estado, de coerção jurídica, haja vista que ele está a pensar em sociedades livres e não em ditaduras, pois nestas, obviamente, a lei e a discussão jusfilosófica pouca serventia tem, já que ao poder exacerbado e absoluto a lei apenas serve e não controla. O problema é que os homens modernos preferem aceitar que o conceito de direito objetivo implica na concretude e completude jurídica no sentido de que a lei posta é a lei cumprida, e assim a prescrição vira de fato uma imposição, a regulação jurídica solapa a emancipação, legítima e essencial ao livre desenvolvimento da potencialidade humana, construção da própria humanidade".

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