Cabelo Branco - Crônica de Férias

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Fui cortar o cabelo!
Entrei pela porta de vidro meio aberta e logo na entrada percebi que não ia dar certo. Na cadeira um homem de avental, com o cabelo já cortado “à sargento”, de bata grudada no pescoço, segurava, entre os joelhos, um garotinho franzino de uns sete anos, que parecia apavorado e esperneava relutante gesticulando no ar uma bisnaga de qualquer coisa. Meu amigo cabeleireiro, de máquina na mão direita, e um frasco de perfume na outra, fazia tudo para distrair a atenção do garoto que se recusava a cortar o cabelo.
- Xi, – disse eu sorrindo – vai demorar!
- É! – respondeu o meu amigo cabeleireiro -, estamos numa guerra.
- Tá, já entendi. Vou em casa e já volto – respondi gozando com a cara dos dois.
Uns quarenta minutos depois voltei. Passei pela porta de vidro meio aberta e o salão estava vazio, para minha alegria. Meu amigo cabeleireiro estava atrás do balcão anotando algo.
Fui logo dizendo:
- Acabou a guerra?
- Acabou! – respondeu ele levantando a cabeça e sorrindo.
Sentei na cadeira. Ele veio com o avental preto e branco, passou-o pela minha frente e o grudou no meu pescoço prendendo-o no velcro atrás.
- Como vai ser? – perguntou.
- Como já está! – respondi.
Breve silêncio. Pegou a tesoura no estojo da mesinha com rodas ao lado.
Arremetei:
- Batido atrás das orelhas, mais comprido acima, para cair para os lados, cuidado com os redemoinhos e cuidado que já não tem muito cabelo.
Ele passou a mão esquerda pelo cabelo e disse:
- Tem muito cabelo aqui.
- Tem nada! – respondi teimoso sem sorrir muito. - Tem tão pouco que é melhor não fazer nada diferente, sei lá o que pode sair.
Ele não respondeu. Penteou para cá, penteou para lá, primeiras tesouradas.
Normalmente falo pouco quando estou cortando o cabelo. Sempre lembro quando minha mãe ou meu pai me levavam para cortar o cabelo quando tinha mais ou menos a mesma idade daquele garotinho que vira lutando bravamente contra o bicho-feio-papão-do-barbeiro. Naquele tempo era usada uma máquina de cortar cabelo semelhante à usada ainda hoje para tosquiar ovelhas: uma tesoura com duas lâminas justapostas que acabavam em dentes minúsculos, feito alicate, que o barbeiro enfiava no cabelo da gente e apertava como um quebrador de nozes. E o barulho? Há!, ainda hoje eu sei: nhec, crec, nhec, crec. Como tenho cabelo extrafino imaginem só o sofrimento: a máquina de tortura arrancava meus cabelos ao invés de cortá-los. Depois descobri que aquela maquineta havia sido inventada à semelhança da máquina de tortura usada para punir os condenados no conto “Na Colônia Penal” de Kafka; “É um aparelho singular”. Uma máquina de nhec-crec-nhec-crec de fazer inveja às obras de arte de Kantor e a “máquina de aniquilamento”. Aquela cadeira do barbeiro era para mim “um aparelho singular de aniquilamento”!
Então, não sei por que, sai com esta:
- O pior da velhice é ter a consciência jovem no corpo velho. Estou ficando velho.
Um breve silêncio.
Cabeleireiros nunca ficam em silêncio por muito tempo. Costume herdado dos antigos barbeiros, quando eram bons ouvintes da fragilidade humana, das tentações e problemas das famílias vizinhas. Os barbeiros antigos tinham desenvolvido uma capacidade fantástica de escutar, concordar e discordar sem se envolverem demais, e, por isso mesmo, sem criarem desafetos – obviamente seria péssimo perder um cliente ou vários por ser mal falado entre os vizinhos. Hoje essa arte retórica se perdeu; se perdeu a capacidade de falar e opinar sem interferir, ou interferir parecendo que não está interferindo.
Meu amigo cabeleireiro falou pausadamente, cada pequena frase, a ponto de se ouvir a respiração:
- Você não é velho. Tem muito cabelo aqui. Eu também não tenho muito cabelo e não me sinto velho. Tem muito jovem que vem aqui e que tem menos cabelo, sem cabelos já tão jovens. E vêm aqui uns velhinhos tão cheios de cabelo, mais do que eu e você.
- Tou careca e cheio de cabelos brancos – continuei pessimista, como se não tivesse escutado. - Eu não tinha cabelos brancos na cabeça, agora está cheio.
- E eu?! Faz anos que tenho só cabelos brancos na cabeça - respondeu.
Olhei rapidamente no espelho à minha frente fixando o olhar na imagem refletida da cabeça dele, do meu amigo cabeleireiro. A cabeça estava toda branca com o cabelo cortado muitíssimo baixo, praticamente raspado. Mas todo branco insinuando que era ou fora bastante encaracolado.
Desviei o olhar para baixo a uma leva pressão da mão do cabeleireiro, e disse:
- Já decidi. Quando ficar mais careca vou raspar tudo e pronto. Quem gostar que goste, quem não gostar que não goste.
Mas de onde me saiu aquilo? Nunca tinha sequer pensado nisso. Acho que desabafava outra coisa. Quem gostar? Ou não? Quem? Sei lá!
Perguntei:
- Que idade você tem?
Ele:
- Cinquenta e um anos. E acrescentou: - No corpo também estou todo branco faz anos, igual à sua barba.
- Você é um pouco mais novo do que eu. E continuei: - Eu não - menti. - Só na barba mesmo, tudo branco. No cabelo agora. Mas no corpo continua preto.
Silêncio.
Pensei: “permanecer jovem é ter consciência que está ficando velho”.

Quarenta minutos depois paguei trinta reais e fui embora de laque na franja que meu amigo teimou que deveria ficar em pé, não batida. Passou a máquina um-e-meio na minha barba branca, aparou minhas sobrancelhas quase brancas e os pelos dos meus ouvidos... ainda pretos. Na lotérica ao lado um cartaz pregado na porta dizia: “Mega-sena Acumulou R$ 49.000.00,00 Hoje 1/07”.

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